ENFERMAGEM, CIÊNCIAS E SAÚDE

Gerson de Souza Santos - Bacharel em Enfermagem, Especialista em Saúde da Família, Mestrado em Enfermagem, Doutorado em Ciências da Saúde - Universidade Federal de São Paulo. Atualmente professor do Curso de Medicina do Centro Universitário Ages - Irecê-Ba.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Diagnóstico e classificação do diabetes melito


Resultado de imagem para diabetesResultado de imagem para diabetes
 Definição e epidemiologia
diabetes melito (DM) compreende um grupo heterogêneo de distúrbios metabólicos que têm em comum a hiperglicemia. Pode resultar de defeitos na secreção de insulina, sua ação, ou de ambas as condições. O boletim da International Diabetes Federation, de 2014, reporta uma prevalência mundial de 387 milhões de indivíduos com diagnóstico de DM, sendo 13 milhões de casos no Brasil. Esses números vêm crescendo devido ao aumento da expectativa de vida e da prevalência de obesidade e de sedentarismo.
O DM deve ser considerado em todos os pacientes que apresentam poliúria, polidipsia, polifagia, perda de peso e visão turva, podendo, também, manifestar-se com complicações agudas, como cetoacidose e síndrome hiperosmolar hiperglicêmica, ou mesmo com evidências de complicações crônicas. Deve-se, também, suspeitar da doença em pacientes que apresentam fatores de risco, como apresentado no Quadro 1.1.
Classificação
Atualmente, a classificação é baseada na etiologia da doença, e não em seu tratamento, substituindo os antigos termos insulino-dependente e não insulino-dependente pelos termos diabetes melito tipo 1 (DM1) e diabetes melito tipo 2 (DM2), respectivamente. A classificação se divide em quatro tipos (Quadro 1.2). O DM1 é responsável por cerca de 5 a 10% dos casos de DM e é decorrente, na maioria dos casos, da destruição autoimune das células β das ilhotas pancreáticas, acarretando a deficiência de secreção pancreática de insulina. É caracterizado, portanto, por um estado de dependência da aplicação de insulina exógena para evitar o quadro de cetoacidose diabética e para preservação da vida nesses pacientes. O pico de incidência é na adolescência, mas pode acometer qualquer faixa etária. O início do quadro é, em geral, abrupto, com sintomas marcados de poliúria, polidipsia e emagrecimento. Devido à etiologia autoimune do DM1, pode ocorrer associação com outras doenças autoimunes, como a tireoidite de Hashimoto, a insuficiência suprarrenal e a doença celíaca. Um subtipo de DM1, entendido como um extremo de evolução mais lenta no espectro da doença, é o LADA (do inglês latent autoimmune diabetes in adults), que se caracteriza por apresentar instalação insidiosa do quadro de dependência à insulina, demorando anos, por vezes, até manifestar-se com quadro de cetoacidose diabética. O DM2 representa 90 a 95% dos casos de DM e, apesar de não existir um completo entendimento do padrão de herança genética, é marcado pela presença de um componente hereditário importante. Acomete indivíduos, em geral, acima dos 45 anos, mas pode ser identificado em indivíduos mais jovens e até em crianças. O DM2 resulta da combinação da diminuição de ação da insulina nos tecidos-alvo com a diminuição relativa da secreção pancreática de insulina, que ocorre precocemente no quadro. O paciente com DM2 apresenta um quadro clínico mais silencioso e, algumas vezes, pode vir a ser diagnosticado já pelos sintomas das complicações crônicas, como cegueira e uremia. Cerca de 80% dos pacientes com DM2 apresenta o quadro de síndrome metabólica, a qual é definida pela presença de dois ou mais dos seguintes critérios: medida da cintura alterada (homens
com cintura acima de 94 cm e mulheres acima de 80 cm), triglicerídeos ≥ 150 mg/dL, HDL baixo (< 40 mg/dL em homens e < 50 mg/dL em mulheres), pressão arterial sistólica (PAS) ≥ 130 mmHg ou pressão arterial diastólica (PAD) ≥ 85 mmHg (ou uso de anti-hipertensivos) e glicemia ≥ 100 mg/dL.
Por vezes, alguns pacientes podem não ser claramente classificados com DM1 ou DM2. Pacientes com DM2 podem apresentar-se com cetoacidose, especialmente na vigência de outra comorbidade, e pacientes com DM1 podem ter início tardio e progressão insidiosa. Em casos de dúvida, pode ser realizada a medida da reserva pancreática de insulina por meio da dosagem de peptídeo-C
(níveis < 0,9 ng/mL indicam DM1 e acima desse valor sugerem DM2). Os anticorpos anti-insulina, anti-ilhotas e antiGAD (descarboxilase do ácido glutâmico, do inglês glutamic acid decarboxylase) estão presentes no DM1, espelhando a autoimunidade. A positividade dos anticorpos prediz a necessidade de insulina, e sua solicitação está indicada nos casos de dúvida diagnóstica, que ocorrem especialmente quando a instalação do quadro de DM ocorre após os 30 anos de idade. O antiGAD tem seu melhor desempenho nos indivíduos com
início da doença acima dos 20 anos de idade e é o mais duradouro (até 10 a 15 anos de doença), sendo o anticorpo de escolha para o diagnóstico de LADA.
Na categoria de “outros tipos específicos”, na
subclassificação de defeitos genéticos da célula β, tem-se o tipo MODY (do inglês maturity onset diabetes of the young), que representa um tipo monogênico de DM, com padrão de herança autossômico dominante. Acomete indivíduos abaixo dos 25 anos e caracteriza-se por defeito genético na secreção de insulina, havendo heterogeneidade nos seis subtipos de MODY já descritos, cada um com peculiaridades quanto à gravidade da hiperglicemia e à presença das complicações do DM. Outro subtipo nessa categoria é o MIDD (do inglês maternally inherited diabetes and deafness), caracterizado pela presença de mutação no DNA mitocondrial, que provoca diminuição da secreção de insulina pelo pâncreas. É caracterizado por herança materna e presença de surdez. Os demais subtipos estão listados no Quadro 1.2. Duas categorias de risco aumentado constituem o pré-diabetes: glicemia de jejum alterada e a tolerância diminuída à glicose.
Diagnóstico
O diagnóstico de DM pode ser feito com os procedimentos listados a seguir e, na ausência de sintomas, deve ser sempre confirmado:
• Glicose plasmática de jejum (8 horas);
• Teste oral de tolerância à glicose (TOTG): glicose em jejum e 2 h após ingerir 75 g de glicose;
• Glicose plasmática casual;
• Hemoglobina glicada (HbA1c) por meio de método certificado e calibrado pelo DCCT (Diabetes Control and Complications Trial).
Na Tabela 1.1, são apresentados os valores empregados para o diagnóstico do diabetes com os diferentes procedimentos. Os testes para diagnóstico de DM devem ser repetidos
para descartar erro laboratorial, exceto se o diagnóstico é inequívoco clinicamente, como na presença de crise hiperglicêmica ou na presença de sintomas clássicos e uma glicemia casual ≥ 200 mg/ dL. É preferível que o mesmo teste seja repetido para confirmação. Se dois testes diferentes forem
realizados, e os resultados forem discordantes, recomenda-se repetir o teste alterado, sendo feito o diagnóstico com base no teste confirmado. O TOTG-75 g deve ser feito de forma padronizada (Quadro 1.3) e deve ser indicado sempre que valores intermediários de glicemia forem encontrados (glicemia jejum ³ 100 e < 126 mg/dL) ou ocorrência de valores inferiores a 100 mg/dL na presença de dois ou mais fatores de risco (Quadro 1.1) para o diabetes nos indivíduos  45 anos. Em 2010, a dosagem da HbA1c, que reflete o nível de controle glicêmico dos últimos 2 a 3 meses e que é, portanto, recomendada no acompanhamento do tratamento do paciente, teve seu uso também indicado pela American Diabetes Association (ADA) para definir o diagnóstico de DM. As restrições para seu uso com esse fim baseiam-se na falta de padronização do método, sendo indicado o emprego de método certificado e calibrado pelo DCCT. O ponto de corte sugerido é o valor de 6,5%, que se associa com incidência aumentada de retinopatia. 
 

Situações especiais
CRIANÇAS: Para o diagnóstico do diabetes em crianças que não apresentam um quadro característico de cetoacidose diabética, são adotados os mesmos procedimentos e pontos de corte da glicemia empregados para os adultos. Quando houver a indicação de um TOTG, utiliza-se 1,75 g/kg de peso de glicose (máximo 75 g). A indicação para rastrear o diagnóstico em crianças é a presença de sobrepeso (IMC acima do percentil 85 ou peso acima de 120% do ideal para altura), aliada a pelo menos dois fatores de risco adicionais, como história familiar, etnia de risco, outros sinais de resistência insulínica ou história de DM na sua gestação. A avaliação deve iniciar aos 10 anos de idade ou na puberdade (se esta for antes dos 10 anos), devendo ser repetida a cada três anos.
GESTANTES: Todas as gestantes devem ser avaliadas com a glicemia de jejum no primeiro trimestre da gestação, com a finalidade de detectar o diabetes pré-gestacional (diabetes na gestação, conforme nomenclatura da Organização Mundial da Saúde [OMS]). O diagnóstico deve ser feito com o critério empregado para adultos não gestantes (glicemia de jejum ≥ 126 mg/dL). As gestantes com glicemia entre 92 mg/dL e 125 mg/dL recebem o diagnóstico de diabetes gestacional. 
Uma glicemia de jejum abaixo de 92 mg/dL exclui o diagnóstico nesse momento, e as gestantes deverão ser reavaliadas no segundo trimestre com o TOTG 75 g. No segundo trimestre, o TOTG é interpretado com os pontos de corte apresentados na Tabela 1.2, critério referendado pela maior parte das entidades oficiais (Sociedade Brasileira de Diabetes [SBD]; Organização Mundial da Saúde [OMS]; International Association of Diabetes and Pregnancy Study Groups [IADPSG]; American Diabetes Association [ADA]), sendo um ponto de corte
alterado suficiente para o diagnóstico do diabetes gestacional.
Fonte: Bulletin International Diabetes Federation. 2014 [capturado em 25 outubro 2016]. Disponível em: http:// www.diabetes.org.br/images/pdf/atlas idf-2014.pdf.
 

sábado, 15 de outubro de 2016

O CAMINHO PARA A INSULINA

   

  A história do reconhecimento do diabetes e o caminho para a descoberta da insulina está repleta de acontecimentos maravilhosos e de erros notórios, de descobertas felizes e inesperadas e de trabalhos fúteis, de vitórias e derrotas. A primeira grande evidência de uma descrição dos sintomas de diabetes na literatura mundial foi registrada no papiro de Ebers, cuja data é de 1550 a.C.. Esse fato liga a descrição de poliúria a Imhotep, cidadão dedicado à medicina, arquitetura e mágica, que foi alto sacerdote e ministro do Faraó Zosser em 3000 a.C. (15). Dois médicos gregos na Era Romana, Galeno (130-201 d.C.), que praticava em Roma, e Arateus da Capadócia, delinearam a doença posteriormente. Acredita-se que Arateus seja o autor das melhores descrições médicas da literatura antiga, apesar de terem restado apenas fragmentos de seus documentos. Em seu trabalho Doenças Crônicas e Agudas, ele criou o termo diabetes significando “sifão”, para explicar a “liquefação da carne e dos ossos em urina”.A próxima descrição magistral de diabetes grave de Arateus data de 150 d.C. e representa a soma de todos os nossos conhecimentos até a segunda metade do século XVII: O diabetes é uma afecção maravilhosa, não muito freqüente entre os homens, e se caracteriza pela liquefação da carne e dos membros em urina. Seu curso possui natureza fria e úmida, como na hidropisia. O curso é comum, ou seja, os rins e a bexiga; pois os pacientes nunca param de produzir água e o fluxo é incessante, como na abertura de aquedutos. Portanto, a natureza da doença é crônica, levando um tempo bastante longo para se formar: porém a vida do paciente é curta, se a constituição da doença se estabelecer completamente, pois a liquefação é rápida e a morte mais rápida ainda. Em 1674, Thomas Willis, médico, anatomista e professor de filosofia natural em Oxford descobriu (pelo sabor) que a urina de indivíduos com diabetes era adocicada. Na realidade, esse fato foi uma redescoberta, pois, embora ele desconhecesse na época, um documento Hindu antigo, elaborado por Susruta na Índia, por volta do ano 400 a.C., descreveu a síndrome diabética com características de “urina com sabor de mel”. Willis não conseguiu definir com precisão a natureza química da substância “adocicada”, levando em consideração que várias substâncias químicas poderiam ter sabores igualmente doces ao paladar. Matthew Dobson, de Manchester, Inglaterra, foi quem demonstrou, em 1776, que pessoas com diabetes realmente expelem açúcar na urina. Depois de ferver a urina até secar, ele observou que o resíduo, um material cristalino, tinha a aparência e sabor de “açúcar mascavo”. 
A descoberta de Dobson logo começou a influenciar os médicos em relação às principais causas da doença e aos principais órgãos envolvidos. Naquela época, a visão predominante era dos rins como fonte principal do problema, considerando que os sintomas e os sinais mais surpreendentes eram a freqüência e o grau de micção. Alguns observadores clínicos também observaram uma tendência de aumento da bexiga, que atualmente sabemos resulta da intensa infiltração de adiposidade no órgão em pessoas com diabetes fora de controle. Em um estudo de caso, que também apresentou uma descrição detalhada de descobertas post mortem, Thomas Cawley registrou, em 1788 (sem comentários específicos), um caso de pâncreas atrofiado pelo excesso de pedras na autópsia feita em um paciente diabético. Essa deve ter sido a primeira referência publicada sobre o pâncreas em relação ao diabetes em seres humanos, embora não se tenha chegado a qualquer conclusão em relação à etiologia.
John Rollo, Cirurgião Geral da Royal Artillery, foi quem aplicou pela primeira vez, em 1797, a descoberta da glicosúria por Dobson no estudo metabólico quantitativo do diabetes. Auxiliado por William Cruickshank, “boticário e químico da ordenança”, Rollo delineou a primeira abordagem racional sobre o tratamento dietético da doença, mudando a visão predominante na época de que a fonte primária do distúrbio era nos rins, para sua visão que sugeria como fonte o trato gastrointestinal. Rollo estudou o Capitão Meredith, um homem corpulento com diabetes de início na vida adulta e glicosúria grave. Rollo fez registros diários sobre a qualidade e a quantidade de alimentos ingeridos por Meredith, pesando o bolo de açúcar obtido por meio da fervura da urina que expelia diariamente. Rollo observou que a quantidade de açúcar expelida variava diariamente, dependendo do tipo de alimento ingerido. Os materiais de origem “vegetal” (pães, grãos, frutas) aumentavam o nível de glicosúria, ao passo que os materiais de origem “animal” (carne, por exemplo) resultavam na excreção relativamente baixa de açúcar. Rollo e Cruickshank concluíram, portanto, que a glicosúria tinha importância secundária no processo de “sacarificação” dos materiais de origem “vegetal” (alimentos contendo carboidratos no estômago e o fluxo de açúcar no corpo), ou seja, o órgão “mórbido” no diabetes não era o rim mas o estômago, que aumentava a produção de açúcar a partir dos materiais de origem “vegetal”. Conseqüentemente, o tratamento indicado foi dieta baixa em carboidratos e alta em gordura e proteínas. Essa prescrição dietética sofreu alterações significativas somente com o advento da insulina.
Embora Rollo suspeitasse da presença excessiva de açúcar no sangue de pessoas com diabetes, naquela época não havia provas convincentes da existência de hiperglicemia. William Wollaston (1766-1828), químico e médico renomado, tentou medir o “açúcar” no sangue, porém não obteve sucesso em sua detecção, possivelmente porque presumiu que tivesse as mesmas características químicas que o açúcar usado como adoçante. Em 1815, Chevreuil mostrou que o açúcar do sangue se comportava quimicamente como se fosse açúcar de “uva” (dextrose ou glicose). Os métodos específicos de análise utilizados para medir a glicose, como a principal “substância redutora” no soro e na urina , somente foram desenvolvidos no período de 1914 a 1919. As previsões de Rollo foram confirmadas, ou seja, no diabetes qualquer aumento no nível de açúcar no sangue provoca a excreção de açúcar e a “origem” do diabetes está fora dos rins. 


O legado de Lavoisier
Um conjunto de experimentos iniciados no final do século XVIII aprofundou os conhecimentos dos princípios metabólicos básicos da fisiologia humana, com conseqüências de longo alcance para a medicina em geral e para o diabetes em particular. Antoine Lavoisier (1743-1794) criou o conceito de quociente respiratório e, com auxílio de estudos calorimétricos, mediu o consumo de oxigênio em repouso, em diferentes condições, tais como durante a ingestão de alimentos e no trabalho. Entretanto, seus estudos foram interrompidos após sua morte na guilhotina durante a Revolução Francesa. Uma geração depois de Lavoisier, o Barão Justus von Liebig (1803-1873) avançou no
campo da química fisiológica, classificando os alimentos em três categorias: proteínas, carboidratos e gorduras. De acordo com a descrição de Rosen, Liebig mostrou como as proteínas eram usadas para construir ou reparar o organismo, ao passo que os carboidratos e as gorduras eram usados como combustíveis. Ele calculou a quantidade
de oxigênio necessária para queimar as diferentes classes de alimentos e mostrou como a energia era liberada sob a forma de calor. Carl Voit, em um trabalho de 1865, descreveu o trabalho de seu mestre nos seguintes termos: “Liebig foi o primeiro a determinar a importância das transformações químicas no corpo humano. Ele afirmava que fenômenos tais como movimentos e atividades, que chamamos de vida, resultam da interação entre o oxigênio, os alimentos e os componentes do corpo. Ele percebia claramente a relação entre metabolismo e atividade, e que não somente o calor, mas todos os movimentos derivavam
do metabolismo…”. O trabalho de Voit, tal como foi executado por seu discípulo, Max Rubner, na Alemanha, e por seus discípulos norteamericanos, Graham Lusk e W. O. Atwater, possibilitou a realização de estudos mais precisos sobre as atividades metabólicas e a aplicação dos resultados em problemas clínicos e teóricos. Entre 1888 e 1890, Rubner finalmente conseguiu produzir provas experimentais incontestáveis de que o princípio da conservação de energia se aplicava em sistemas vivos. Essa descoberta foi confirmada para seres humanos por Atwater e Benedict em 1903 (28). Em 1874, as únicas respirações observadas na cetoacidose diabética foram descritas por Adolph Kussmaul
como profundas e com longas pausas entre a expiração e a inspiração.
Em meados do século XIX, os médicos da Inglaterra, França e Alemanha desviaram suas atenções para o pâncreas e descreveram casos de diabetes por meio de descobertas post mortem de pâncreas doentes, atrofiados ou cheios de pedras. Apesar das especulações sobre o papel desse órgão no diabetes, as evidências não foram convincentes, pois na grande maioria de pacientes com diabetes o tamanho e a aparência do pâncreas eram normais nas autópsias. Como o pâncreas era considerado apenas uma glândula puramente exócrina, a descoberta de lesões patológicas nesse órgão, em um pequeno grupo de indivíduos com diabetes, foi interpretada apenas como um fenômeno fortuito.

Na França, Claude Bernard tomou conhecimento das descobertas e das especulações sobre o possível papel do pâncreas no diabetes. Para testar essa hipótese, ele ligou dutos pancreáticos de cachorros e/ou os injetou óleo ou parafina para bloquear todas as secreções, provocando uma profunda atrofia da glândula. Considerando que permaneceram apenas alguns filamentos semelhantes a um tecido fibroso sem vida, Bernard presumiu que a atrofia era completa. A despeito desse fato, os animais não apresentaram glicosúria ou qualquer outra indicação da presença de diabetes. Esses experimentos também foram realizados por Moritz Schiff, cujos resultados foram negativos. Esse ponto de vista “antipancreático” foi incomensuravelmente reforçado pela opinião competente dos principais fisiologistas da época. As descobertas de Bernard sobre a glicosúria, depois da “punção” no IVº ventrículo, despertaram a atenção para a possibilidade de que alterações no sistema nervoso central pudessem estar relacionadas ao diabetes sob o ponto de vista etiológico. Lesões no cérebro poderiam provocar hiperglicemia através da ação dos nervos “viscerais” sobre o fígado.
A busca da causa do diabetes
Entre 1840 e 1860, estudos fisiológicos sobre o metabolismo em relação ao diabetes começaram a progredir, principalmente na França, sob a liderança de Claude Bernard. A descoberta sensacional de que a glicose do sangue se originava parcialmente do glicogênio, como uma
“secreção” do fígado, identificou o fígado como órgão central no diabetes e explicou como um paciente diabético, cujo fígado estava nos estágios finais de cirrose, poderia ser “curado” da hiperglicemia e da glicosúria.


As duas forças exponenciais que participaram das discussões em torno de um fator “pancreático” na etiologia do diabetes foram Apollinaire Bouchardat e E. Lancereaux. Bouchardat, que foi treinado em química orgânica e um pioneiro no estudo da fermentação, além de professor de saúde pública, realizou estudos meticulosos de longo prazo sobre o diabetes em seres humanos. Esses estudos tiveram início em 1835 e, em 1875, foram reunidos em um único livro com o título De la Glycosurie ou Diabète Sucré. Além de seguir os fundamentos essenciais do regime dietético de Rollo no tratamento de diabetes, adicionou um braço terapêutico extremamente importante, incentivando o trabalho físico, observando efeitos benéficos do trabalho muscular sobre a glicosúria e a hiperglicemia. Além disso, sua experiência clínica o ensinou a distinguir pelo menos dois tipos diferentes de diabetes: o tipo grave em pessoas mais jovens com respostas insuficientes ao regime; e o tipo em pessoas mais velhas e obesas para os quais a terapia de dieta e exercícios físicos funcionou admiravelmente. Com base no comportamento clínico dos dois tipos de diabetes e nas descobertas post mortem, Bouchardat concluiu que a forma mais grave era a de origem pancreática.
Lancereaux e seus discípulos chegaram a conclusões idênticas sobre a etiologia e introduziram os termos diabète maigre (diabetes dos magros) e diabète gras (diabetes dos gordos) para as duas formas clínicas comuns da doença. Considerando que o diabète gras era o tipo mais freqüente, agora é possível entender porque os danos pancreáticos graves foram encontrados com menor freqüência. Portanto, a etiologia pancreática do diabète maigre se tornou um postulado aceitável, mesmo que ainda não fosse possível ter uma noção exata dos mecanismos envolvidos no processo. O conceito de que o corpo possui glândulas que liberam seus produtos diretamente para o sangue (glândulas sem dutos ou glândulas “sangüíneas”) ganhou terreno substancial por meio do estudo sobre castração de Berthold de 1849, da descrição clínica da doença de Addison, em 1849, e da amputação experimental da glândula supra- renal realizada por Charles Brown-Séquard em 1856.
A ERA DA INSULINA - Período de 1922 a 1960



 
No período decorrido desde a descoberta da insulina até a década de 1950, os efeitos da disponibilidade do produto foram percebidos de três maneiras notáveis: melhoria na expectativa de vida de pacientes com diabetes tipo 1, surgimento de interesse na compreensão do mecanismo da ação da insulina sobre o metabolismo intermediário e aumento no reconhecimento das síndromes que passamos a avaliar como complicações crônicas do diabetes. Uma combinação de fatores assegurou tempo de vida mais longo para os pacientes acuados pela doença, começando com a quase eliminação dos óbitos causados por coma diabético, que coincidiu com a melhoria nos meios de tratamento das complicações do diabetes. O controle hormonal no metabolismo da glicose foi totalmente esclarecido, com progressos na compreensão do papel desempenhado pelos tecidos hepáticos, adiposos e musculares no estado de diabetes fora de controle. O sucesso na definição de toda a rede endócrina, de maneira especial a demonstração da importância do eixo pituitária-supra-renal, deu ao campo da endocrinologia o status de especialidade.  
A descoberta da insulina mudou para sempre o tratamento do diabetes.  A partir de 1923, após a chegada ao mercado de um nível adequado de suprimento de insulina comercial, seguiu-se o desenvolvimento de procedimentos para purificar e padronizar o medicamento. Por volta de 1926, a insulina cristalina, nas concentrações de 10, 20 e 40 unidades por milímetro se tornou disponível em todo o mundo. A tarefa de purificar a insulina continuou durante décadas, iniciando com os esforços para evitar a presença de agentes contaminadores como o glucagon. A partir de 1936, o uso da protamina e do zinco prolongou a ação da insulina. Na década de 1970, o automonitoramento da glicose no sangue se tornou um padrão de tratamento. A utilização de ferramentas da biologia molecular viabilizou mudanças posteriores, que permitiram a produção de insulina humana e produtos análogos que alteram as características de absorção. Essas variações na insulina, aliadas ao advento de agulhas mais finas e menos dolorosas, facilitaram os programas de várias injeções, que aprimoraram o controle da glicose. Também foram disponibilizados sistemas de aplicação com bombas. Atualmente, é difícil para os indivíduos envolvidos com o diabetes entender totalmente as mudanças que ocorreram desde a introdução da insulina. O primeiro paciente de Joslin a receber insulina foi Elizabeth Mudge, enfermeira, que foi tratada pela primeira vez em 7 de agosto de 1922, no New England Deaconess Hospital, em Boston. Ela não saía de seu apartamento há nove meses, porém, depois de seis semanas de terapia com insulina, ela conseguia andar quase sete quilômetros diariamente, e ainda viveu 25 anos após o tratamento. Com relação à época da pré-insulina, o Dr. Joslin observou, “Costumava contar os dias que minhas crianças diabéticas viveriam”. Esse fato foi enfatizado por um episódio que aconteceu na década de 1940 nos consultórios apinhados de gente da Joslin Clinic, localizado na Bay State Road, quando uma criança começou a fazer um pouco mais de barulho. O Dr. Joslin disse, “Faça todo o barulho que desejar. Nós adoramos crianças barulhentas. Durante vários anos não havia crianças normais. Elas eram muito quietas e, depois de uma ou duas visitas, não retornavam” (L. P. Krall, comunicação pessoal).
 Antes do uso da insulina, a maioria dos pacientes jovens com diabetes falecia imediatamente após o diagnóstico. A experiência da Joslin Clinic mostrou que a causa mais comum dos óbitos era a cetoacidose (63,8% até 1914 e 41,5% até agosto de 1921). As melhorias que ocorreram de 1914 a 1921 provavelmente foram o resultado da introdução, por volta de 1915, da terapia de “semi-inanição”, de Frederick Allen. Embora os pacientes com diabetes tipo 1 pudessem, algumas vezes, sobreviver durante anos usando essa forma de terapia de inanição, a maioria morria antes do tempo. Comparativamente, nos países afluentes, a taxa de mortalidade por coma é atualmente um evento raro, embora em alguns países em desenvolvimento as taxas de mortalidade ainda estejam próximas do nível predominante na época da pré-insulina.
Quando Joslin escreveu o prefácio da terceira edição do livro Tratamento do Diabetes Melito, no final de 1923, a experiência que ele havia adquirido se baseava em 3.000 casos e o uso da insulina havia se estendido para um ano. Ele escreveu: “Em comparação com a última década, atualmente o médico precisa tratar duas vezes mais pessoas
com diabetes… Das 48 crianças tratadas nesse período, 46 permanecem vivas… e imagino como Bouchardat, Cantani, Kulz, Lepine e outros santos do diabetes teriam adorado este ano!”.

Fonte: A história do diabetes Donald M. Barnett e Leo P. Krall