ENFERMAGEM, CIÊNCIAS E SAÚDE

Gerson de Souza Santos - Bacharel em Enfermagem, Especialista em Saúde da Família, Mestrado em Enfermagem, Doutorado em Ciências da Saúde - Universidade Federal de São Paulo. Atualmente professor do Curso de Medicina do Centro Universitário Ages - Irecê-Ba.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Alergia ao latex


INTRODUÇÃO

A borracha natural de látex ou simplesmente látex é um produto que está muito presente em nosso dia a dia, entra na composição de produtos que utilizamos em casa, no trabalho e lazer. Os primeiros relatos de reações alérgicas induzidas pelo látex são de 1980 , mas com o estabelecimento das medidas de proteção universal e prevenção de doenças , a padronização do uso de luvas de látex fez aumentar o número de relatos rapidamente (1). Anafilaxia e as primeiras mortes atribuídas à exposição ao látex foram documentadas pôr Slater em 1989 (2). Neste mesmo ano análises mostravam que 0,5 % dos casos de choque intraoperatórios eram devido à alergia ao látex. Dois anos depois este número passou à 12,5 % (3). Em 1997 o FDA ( Food and Drug Administration) recebeu notificações de cerca de 2.300 casos de reações alérgicas envolvendo produtos médicos com látex , sendo 225 casos de Anafilaxia, 53 paradas cardíacas e 17 mortes (4) . Dados recentes apontam para uma sensibilidade ao látex de 12,5% a 15,8% entre a população de médicos anestesiologistas (5).

Figura 1: exposição ocupacional - trabalhador da área de saúde.

A borracha natural é extraída da seiva da Seringueira ( Hevea braziliensis), nativa do Brasil, mas atualmente muito cultivada e comercializada no Oeste da África e Sudeste Asiático. É uma mistura complexa de polisoprene, lipídios, fosfolípides, e proteínas. Durante sua manufatura são adicionados vários produtos químicos como: amônia, thiocarbonetos, anti-oxidantes e radicais de enxofre para vulcanização (6). O agente alergênico mais importante parecem ser as proteínas de látex.

Figura 2: Seringueira.

Atualmente foram identificadas sete tipos de proteínas sensibilizadoras que receberam classificação de alergenos (Hev b-1 a b-7) pela União Internacional de Sociedades de Imunologia. Uma proteína de 14 kiloDaltons, 14kd ( fator de alongamento da borracha) parece ser a responsável pela maioria das reações alérgicas entre profissionais de saúde. Outras populações com alta incidência apresentam maior sensibilidade à proteína 27kd. A quantidade de proteínas presentes nas luvas de látex varias muito entre lotes de mesmo fabricante e mais ainda entre marcas diferentes, de 3 a 337mcg/g de látex, isto devido a desnaturação das mesmas durante a produção; os índices aumentam nas luvas com talco ou pó lubrificante(Cornstarch)(7).

As vias de exposição e sensibilização podem ser resultado de contato com a pele e membranas mucosas ou pôr via inalatória, ingestão, injeção parenteral ou inoculação pelos ferimentos. As luvas de látex são as principais fontes de antígenos entre as equipe médicas (8). As partículas de poeira ou talco presentes nas luvas formam ligações com as proteínas e podem transportá-las pelo ar na forma de aerossóis. Nas salas cirúrgicas, como ocorrem trocas freqüentes de luvas os níveis de partículas no ar podem ser muito altos determinando sintomas que vão desde conjuntivites, rinites, tosse , rouquidão, sibilos e até broncoespasmo (9).

Os estudos sobre a prevalência das reações alérgicas ao látex variam muito dependendo da população estudada e dos métodos utilizados para estabelecer a sensibilidade ao antígeno. Mas mesmo com estas variações existem alguns grupos bem estabelecidos onde o risco é elevado.

GRUPOS DE RISCO:

1.Pacientes com história de múltiplos procedimentos cirúrgicos.

Este grupo inclui principalmente pacientes com malformações geniturinárias congênitas ( extrofia vesical, válvula de uretra posterior, malformações de bexiga ), mielomeningocele, espinha bífida, atresia esofágica, Arnold Chiari tipoII, ânus imperfurado, sindrôme de “VATER”( alteração vertebral, ânus imperfurado, fistula traqueoesofágica, displasia renal) (10).

Figura 3: Doença de Arnold-Chiari - herniação das tonsilas cerebelares através do Forame Magno ( setas azuis ). A seta amarela aponta para a medula espinhal.

Um estudo entre paciente com espinha bífida mostrou 60% de sensibilidade através da história clínica e testes laboratoriais e cutâneos, embora nem todos demonstraram sintomas alérgicos durante os procedimentos realizados (11). Mais recentemente, o Dr.Fernandes vem conduzindo um levantamento no Hospital da A.A.C.D.(Associação de Assistência à Criança Deficiente) em São Paulo onde através de metodologia mais específica encontrou cerca de 25,8% de sensibilidade nas crianças com mielomeningocele acompanhadas na instituição. Os dois maiores fatores de risco nesta população são as freqüentes exposições e história de atopia prévia (12).

Figura 4: Mielomeningocele

2.Profissionais da Saúde.

Dependendo da metodologia encontramos prevalência variando de 2,9% à 17% entre profissionais de saúde, mas ela pode ser bem maior, pois segundo relatos atualizados do FDA ,dos eventos adversos relacionados ao látex, 70% envolvem agentes da saúde que em muitos casos estão também na condição de pacientes em tratamento ou hospitalizados. O Colégio Americano de Alergia, Asma e Imunologia(ACAAI) classificou a alergia ao látex como um grande problema de saúde pública e uma doença ocupacional. Entre os trabalhadores ,histórico de atopia, eczema ou dermatite de contato em mãos associadas ao uso freqüente de luvas descartáveis estão associadas ao aumento do risco de desenvolver reações alérgicas importantes.

3.Outros indivíduos com exposição ocupacional.

Figura 5: exposição ocupacional - trabalhador da indústria da borracha.

Os trabalhadores da industria da borracha e outros profissionais com manipulação dos produtos (cabeleireiros, jardineiros) devem apresentar níveis de sensibilização semelhantes aos do meio médico.

4.Indivíduos com antecedentes de febre do feno, rinites, asma ou eczema(atopia).

Atopia parece ser o principal fator de risco predisponente .

5.Indivíduos com antecedentes de alergia a determinados alimentos.

Algumas frutas tropicais( abacate, banana, kiwi,) e castanhas parecem possuir algumas proteínas semelhantes, algumas até idênticas, às proteínas encontradas no látex (13).

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

Existem três tipos distintos de reações que podem ocorrer com o contato ao látex:

Dermatite de contato irritativa.

Figura 6: Dermatite de contato.

É a manifestação mais comum e freqüente, corresponde a 80% das queixas daqueles trabalhadores que utilizam luvas. É resultado da ação direta do látex ou substâncias químicas irritantes sobre a pele, podendo ser potencializado pelo degermante e procedimentos de lavagem das mãos para cirurgia. Esta reação não é mediada pelo sistema imunológico e não é uma reação alérgica verdadeira, mas as lesões produzem perda da integridade da pele e podem permitir absorção das proteínas e sensibilização posterior.

Figura 7: Luvas de látex.

Hipersensibilidade tardia, Tipo IV.

Também chamada de dermatite mediada por células-T ,dermatite alérgica ou reação anafilactóide, envolve diretamente o sistema imune. Entre todas as reações imunológicas às luvas, 84% são do Tipo IV. Normalmente são produzidas por resposta à alguns aditivos químicos utilizados na produção das luvas e não pela sensibilização às proteínas. A pele desenvolve um eritema urticariforme que aparece geralmente 72 horas após o contato inicial e pode evoluir para uma dermatite bolhosa. Não existem repercussões sistêmicas.

Hipersensibilidade imediata, Tipo I.

Também chamada de reação anafilática ou reação mediada por células IgE. O antígeno induz a produção de imumoglobulinas classe E (IgE) específicas. Na reexposição ao agente a ligação dos anticorpos com o antígeno ativa um gatilho para uma cascata de eventos que promovem degranulação de mastócitos e basófilos com liberação de mediadores inflamatórios como: histamina, ácido aracdônico, leucotriênos e prostaglandinas. As reações ocorrem geralmente alguns minutos após o estímulo, mas em pacientes anestesiados são relatadas reações até 30 minutos após a indução. Os sintomas desenvolvem intensidade e gravidade variadas, se manifestando desde eritemas, coceira, tosse, rouquidão, dispnéia, sibilância, conjuntivite, edema de via aérea, broncoespasmo e até choque com colapso circulatório e parada cardíaca (14).

Figura 8: Eosinófilo, envolvido nas reações de hipersensibilidade

DIAGNÓSTICO

O diagnóstico de sensibilidade ao látex é determinado por anamnese detalhada com dados positivos em um questionário específico e/ou exame físico detalhado buscando reações dérmicas ou alérgicas, associados a testes laboratoriais "in vivo" e "in vitro".

O teste diagnóstico mais indicado para determinar reações de sensibilidade Tipo IV são testes cutâneos com "patchs" padronizados que contém fragmentos de produtos que contém látex.

A reação tipo I é investigada por testes sorológicos buscando detectar anticorpos. O FDA aprovou quatro testes para a IgE específica do látex que utilizam as tecnologias classificadas como "RAST"( Radioallergosorbent Test) e "EAST" (Enzymeallergosorbent Test). Comercialmente são conhecidos como : Ala-STAT, Immunolite, Pharmacia Coated Allergen Particle test(CAP) e HY-TEC (15). Infelizmente estes teste mostram índices de falso negativo de cerca de 30%, embora alguns trabalhos mostrem maiores vantagens no teste CAP na investigação das equipes médicas. Os teste de inoculação cutânea de frações de antígeno apresentam altíssimos índices de sensibilidade e especificidade, mas ainda não existem testes standard em kits comerciais, isto devido ao perigo potencial destes testes produzirem reações severas em pacientes sensibilizados previamente (16).

A melhor conduta para evitar complicações no período perioperatório seria identificar previamente os pacientes dos grupos de risco e/ou com história sugestiva e achados laboratoriais e prevenir totalmente o contato com o látex. Para tanto é necessário um esforço conjunto multidisciplinar e apoio das instituições para estabelecer rotinas e padronizações que vão além das salas de cirurgia. A A.S.A (American Society of Anesthesiology) realizou em 1999 uma "task force" que sugere algumas medidas:

1 - Os cuidados aos pacientes devem ser planejados e coordenados pelas várias equipes: anestesia, cirurgia, enfermagem , fisioterapia.

2 - Sempre que possível as cirurgias eletivas devem ser agendadas para o primeiro horário do dia, isto previne níveis muito altos de antígenos de látex na forma de aerossóis na sala cirúrgica..

3 - Os pacientes devem ser identificados com braceletes ou colares de alerta e os prontuários devem conter avisos de "Alergia ao látex" para os pacientes com diagnóstico estabelecido e "Alerta ao látex" para aqueles com suspeita.

4 - Pesquisar e listar todos os produtos padronizados na instituição que tenham látex na sua composição, estes produtos devem ser substituídos ou totalmente afastados. Esta lista é a base fundamental para produzir um ambiente sem látex nas salas cirúrgicas e enfermarias. Aqui seguem alguns itens que fazem parte de uma checagem inicial de uma sala cirurgia:

a - Partes internas e externas do equipamento de anestesia .

Figura 9: Cânula naso-faríngea ( látex )

b - Luvas,tubos endotraqueais e conecções "látex free".

c - Máscaras, balões de ventilação, circuitos respiratórios (usar de silicone, polivinilcloridato ou de borracha preta que seja velha e bem lavada previamente).

d - Remover as tampas de borracha de medicamentos , não furar a borracha com agulhas.

Figura 10:Tampa de medicação contendo látex - sua perfuração com agulhas pode contaminar soluções e sensibilizar pacientes ao látex.

e - Não utilizar seringas com êmbolos de borracha, usar seringas descartáveis com silicone ou seringas de vidro.

f - Evitar garrotes ou torniquetes com borracha.

g - Cuidado com manguitos de medida de pressão arterial( as borrachas devem ser encapadas ou protegidas com algodão).

h - AMBU ( verificar se as válvulas e o balão não são de látex ).

i - Verificar os introdutores de medicação nos soros e equipos, evitar punções repetidas e trocar soluções cada 6 horas.

j - Deixar adrenalina diluída (0,01mg/ml ou 1:100.000) para uso imediato.

k - Verificar equipamento de cirurgia.

Figura 11: Sonda vesical (látex )

l - Evitar produtos cirúrgicos com látex ( luvas, drenos tipo Penrose, cateter urinário ,instrumental específico, clamps de borracha, cateter vascular, garrotes e equipamento de irrigação.(17)

Figura 12: Dreno de Penrose (látex ).

m - A profilaxia medicamentosa é de utilidade duvidosa. Alguns autores recomendam uso de difenidramina, cimetidina e metilpredinisolona pré-operatório (18), mas outros questionam que a pré- medicação atenuaria apenas a resposta imune inicial e não a anafilaxia , não incentivando seu uso rotineiro .(19)

TRATAMENTO DAS REAÇÕES ALÉRGICAS AO LÁTEX

A dermatite de contato e as reações tipo IV são controladas com sucesso afastando os agentes irritantes da pele e aplicando corticóides tópicos.

As manifestações alérgicas sistêmicas, tipo I, apresentam uma grande variedade de sintomas e sinais e o tratamento depende da seriedade do quadro clínico mas é extremamente importante identificar e remover o agente desencadeante. As reações mais brandas como a rinite e eritemas respondem ao uso de antihistamínicos e corticoesteroides nasais e sistêmicos. As reações mais severas com comprometimento das vias aéreas podem requerer tratamento agressivo com antihistamínicos , esteroides, bloqueadores H2, oxigênio, broncodilatadores, intubação traqueal e principalmente adrenalina.

No caso de anafilaxia deve ser padronizado protocolo de tratamento específico que visa a rapidez e eficiência no atendimento. A A.S.A sugere o seguinte protocolo:

Terapia inicial

1. Parar imediatamente a administração ou reduzir a absorção do agente agressor( verificar vias de contato, inclusive mucosas e via inalatória).

2.Remover todo látex do campo cirúrgico.

3.Trocar as luvas.

Figura 13: Luvas "látex-free".

4.Descontinuar administração de antibióticos e/ou sangue e derivados.

5.Manter a ventilação com oxigênio e FiO2 de 100%.

6.Intubação traqueal ( quando necessária).

7.Administrar 25-50ml/kg de peso de cristalóide.

8. Administrar adrenalina:

a)intravenosa: 0,1mcg/kg ou aproximadamente 10 mcg em um adulto(hipotensão) e 0,1mg/kg no colapso circulatório com parada cardíaca.

b)subcutânea: ( na falta de acesso venoso) 300mcg .

c)endotraqueal: de 5 a 10 vezes a dose intravenosa ou 50-100mcg no adulto( 10 ml de solução 1:10.000).

d)inalação com dosímetro: 3 inalações de 0,16 à 0,20mg de adrenalina.

e)nebulização: 15 gotas de solução de adrenalina a 2,25% em 2 ml de solução salina.

9.Desligar todos os agentes anestésicos

10. Colocar avisos de "Alerta Látex" na entrada da sala de cirurgia e limitar a entrada de materiais e pessoas.

Terapia secundária

1.Administrar antihistamínicos: Difeniframina 1mg/kg EV ou IM( dose máxima de 50mg) e Ranitidina 1mg/kg EV (dose máxima de 50mg).

2.Administrar corticoides: Hidrocortisona 5mg/kg de ataque e depois 2,5mg/kg cada 4 à 6 horas ou Metilpredisolona 1mg/kg de ataque e 0,8mg/kg cada 4 à 6 horas.

3.Administrar aminofilina (para broncoespasmo) 5-6mg/kg de ataque e infusão contínua de 0,4-0,9mg/kg/h. ( Monitorizar nível sangüíneo)

4.Administrar Beta-2 agonistas inalatórios (broncoespasmo).

5.Administrar drogas vasoativas contínuas para manter níveis pressóricos:

a)adrenalina: 0,02-0,05mcg/kg/min.

b)noradrenalina: 0,05mcg/kg/min.

c)dopamina: 5-20mcg/kg/min.

d)isoproperenol: 0,02-0,05mcg/kg/min.

6.Administrar Bicarbonato de sódio 0,5-1mg/kg inicialmente e depois corrigir pela análise do sangue arterial. (20)

fonte: http://www.anestesiologia.com.br/artigos.php?itm=23