ENFERMAGEM, CIÊNCIAS E SAÚDE

Gerson de Souza Santos - Bacharel em Enfermagem, Especialista em Saúde da Família, Mestrado em Enfermagem, Doutorado em Ciências da Saúde - Universidade Federal de São Paulo. Atualmente professor do Curso de Medicina do Centro Universitário Ages - Irecê-Ba.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

DIARRÉIAS NA INFÂNCIA


Diagnóstico diferencial da diarréia na criança
Luciana Rodrigues Silva

Uma das características mais especiais do epitélio gastrointestinal é a rápida e contínua diferenciação e renovação dos enterócitos. A biologia molecular abre novos horizontes sobre a organização e funcionamento deste epitélio, acrescentando às funções digestivas, absortivas e secretórias, funções imunológicas, nervosas e endócrinas, que por sua vez ampliam o entendimento dos processos fisiopatológicos envolvidos na determinação das doenças.
A produção fecal de uma criança é de 5 a 10 g/kg de peso de fezes por dia, proporcionalmente mais que um adulto, que por sua vez produz 100 a 200 g diárias. Um dos fenômenos que ocorrem na diarréia é o aumento do volume de fezes. Há que se considerar que a diarréia é um sintoma e não uma doença. Durante o episódio diarréico ocorre um desequilíbrio entre os processos de absorção e secreção, e então as fezes ficam amolecidas ou liquefeitas, com aumento do número de evacuações. Diarréia pode ser um quadro auto-limitado e benigno ou até um que ameace a vida do paciente. Também pode ocorrer numa criança eutrófica ou num paciente criticamente comprometido, com repercussões diferentes.
A diarréia aguda na infância representa um problema significativo de saúde, particularmente nas crianças de baixa idade, que vivem em precárias con-dições sócio-econômicas. As crianças pequenas são as que pagam maior tributo a esta patologia; 85% das mortes por diarréia acontecem em crianças no primeiro ano de vida. A criança tem como principais características dois processos dinâmicos, representados pelo crescimento e desenvolvimento. Estes processos, para ocorrerem de modo adequado, dependem de vários fatores. Em muitas situações, podem surgir intercorrências que prejudicam a evolução natural destes processos. A diarréia é sem dúvida uma das mais freqüentes causas na parada do processo de crescimento e muitas vezes se associa nitidamente com o desencadeamento ou piora da desnutrição. As conseqüências da diarréia a curto e longo prazo são mais graves nas crianças de baixa idade. A doença diarréica aguda compreende um grupo de condições clínicas, cuja manifestação comum é a presença de fezes de consistência diminuída associada ao aumento do número de dejeções e se caracteriza por ser um quadro auto-limitado, durando no máximo até quinze dias.
Os fatores que contribuem para a diarréia aguda são múltiplos e estão descritos na tabela 4-1.
Fatores implicados na determinação da diarréia aguda da criança
. Condições desfavoráveis de gestação e má-nutrição
materna
. Baixo peso ao nascer
. Desmame precoce
. Precárias condições de habitação, saneamento e higiene
. Contaminação fecal de água e alimentos
. Falta de informação e baixa escolaridade dos pais
. Predária condição sócio-econômica
. Condição nutricional e imunológica desfavoráveis
. Idade da criança
. Grau e extensão da lesão do tubo digestivo
. Falta de orientação adequada após o desmame
. Acesso precário aos Serviços de Saúde
. Falta de orientação técnica dos profissionais
. Preconceitos culturais
Durante o episódio diarréico ocorrem fenômenos que contribuem para piorar o estado nutricional, tais como: perda excessiva pelas fezes, falta de apetite, dieta inadequada, suspensão prolongada da alimentação, antibioticoterapia intempestiva, bloqueio na absorção de nutrientes, alteração na secreção, motilidade e sais biliares e ainda intolerâncias alimentares.
A diarréia aguda é extremamente freqüente na criança e na maioria das vezes é infecciosa, no entanto outras causas podem estar relacionadas e devem ser
investigadas. É fundamental que o pediatra tenha conhecimento da fisiopatologia e dos possíveis diagnósticos diferenciais envolvidos.
A etiologia da diarréia aguda na infância pode estar relacionada com agentes infecciosos como vírus, bactérias e parasitas, ou agentes não infecciosos, como intolerância a dissacarídeos, proteínas, uso de drogas e outras condições que menos freqüentemente podem iniciar a apresentação do quadro com uma diarréia. Alguns fatores podem determinar o prolongamento do quadro diarréico, salientando-se: tratamento inadequado durante o episódio agudo, dieta incorreta, intolerância a carboidratos e proteínas, desmame precoce, baixa idade, desnutrição, episódios diarréicos anteriores, ambiente contaminado, hospitalização, supercrescimento bacteriano, tipo e virulência do agente infeccioso e deficiência de micronutrientes. (3,6)
São condições que determinam diarréia na infância:
Infecções -
rus - Rotavírus, Adenovírus, Astrovírus, Calicivírus, Vírus Norwalk
Bactérias - Shigella, Salmonella, E. coli (toxigênica, enteropatogênica, invasiva, enterohemorrágica, enteroaderente), Campylobacter, Yersinia, Aeromonas, Staphylococcus, Vibrio cholerae, Vibrio parahemolyticus, Bacillus cereus, Clostridium botulinum, Clostridium difficili, Pleisiomonas Parasitas - E. histolytica, Giardia lamblia, Ascaris, Cryptosporidium, Isospora, Strongyloides, Enterozyton bienensi Fungos Dietéticas - Superalimentação, intolerância aos carboidratos (lactose, sacarose, maltose, glicose, galactose), intolerância às proteínas (leite, soja), intolerância ao glúten (doença celíaca), dietas hiperosmolares Anatômicas e Mecânicas Intestino curto, retocolite ulcerativa, doença de Whipple, enterocolite necrozante, linfangiectasia, alça cega, má-rotação, semi-obstrução intestinal, fístulas entéricas
Bioquímicas –
Abetalipoproteinemia, deficiência de enteroquinase, retenção de quilomícrons, cloridorréia congênita, diabetes, uremia, má-absorção seletiva de vitamina B12
Desnutrição proteico-calórica
Imunológicas
Hipogamaglobulinemias, deficiência de IgA, AIDS, Wiskott- Aldrich, Ataxia-teleangiectasia, Imunodeficiências combinadas
Pancreatopatias e Hepatopatias
cirrose, atresia biliar, pancretite crônica, fibrose cística, deficiência de sais biliares
Endocrinopatias e Doenças Metabólicas
Hipertireoidismo, hiperplasia adrenal congênita, doença de Addison, hipoparatireoidismo, Doença de Wolman, uremia, cistinose, tirosinemia, Zollinger-Ellison, deficiência de zinco, hiperplasia de célula não beta, galactosemia, má-absorção de metionina, Doença de Gaucher, Doença de Niemann-Pick
Neoplasias
Carcinóide, ganglioneuroma, neuroblastoma, Zollinger-Ellisson, polipose, linfoma, mastocitose, adenocarcinoma, tumores secretores de VIP (substância vasoativa intestinal)
Tóxicas
Arsênio, chumbo, fosfatos orgânicos, sulfato ferroso, laxantes, antibióticos, cogumelos, quimioterapia, radioterapia, antibióticos (eritromicina, clindamicina, ampicilina, cefalosporinas), antiácidos com magnésio, sorbitol presente no acetaminofen, cimetidina, digoxina, colchicina)
Vasculares
Insuficiência de artéria mensentérica, hipertensão portal, isquemia intestinal
Suspensão de narcóticos
Psicogências
Cólon irritável
Outras
Hemorragia gastrointestinal, apendicite, peritonite, polipose familiar, corpo estranho, Doença de Hirschsprung, gastroenterite eosinofílica, esvaziamento rápido após cirurgias, síndrome de deprivação materna, acrodermatite enteropática, esclerodermia, neurofibromatose, Doença de Whipple, disautonomia familial (Riley-Day) .Entre as causas mais comuns de diarréia aguda estão: Infecções virais, bacterianas e parasitárias, intolerâncias alimentares, quadros pós-antibioticoterapia, distúrbios motores e psicogênicos. Entre os quadros mais graves de diarréia encontram-se: síndrome hemolítico-urêmica, desidratação grave, intoxicações alimentares, sepse, colite pseudomembranosa, gastroenterites do recém-nascido, doença de Hirschsprung, megacólon tóxico da doença intestinal inflamatória, crise celíaca e intussuscepção. Também não deve ser esquecido que eventualmente podem abrir o quadro clínico com diarréia: apendicite, doenças inflamatórias intestinais e intoxicações.
Há alguns dados que podem sugerir os agentes causadores do quadro diarréico, tais como: Salmonella (AIDS/Doença inflamatória intestinal/Anemia falciforme), Giardia lamblia (Deficiência de IgA/hipogamaglobulinemia), Cytomegalovirus (transplantados), Cryptosporidium (AIDS/exposição a animais), Pseudomonas/Candida (neutropenia), Clostridium difficile (hospitalizados/uso recente de antibióticos), Vibrio vulnificus (cirrose), Vibrio (ingestão de mariscos), Campylobacter/Yersinia (exposição a animais), Shigella (tenesmo), Yersinia (dor em fossa ilíaca direita), Shigella/E.coli enterohemorrágica (síndrome hemolítica urêmica) e Salmonella/Shigella/Campylobacter/Yersinia (síndrome de Reiter). (11,12) Outro aspecto que pode ser sugestivo é que algumas intoxicações alimentares são mais comuns em determinadas épocas do ano: nos meses quentes as mais prevalentes são Salmonella, Shigella e Staphylococcus aureus. Em alguns países, o Campylobacter jejuni é mais prevalente nos meses de primavera e outono. Surtos relacionados com Clostridium botulinum ocorrem mais no verão e outono, enquanto que Clostridium perfringens acontece mais no verão. Por outro lado, as infecções pelo vírus Norwalk e pelo Bacillus cereus ocorre durante todo o ano.
Outro aspecto a ser enfatizado diz respeito a algumas condições de maior risco para a doença diarréica, tais como: os hepatopatas crônicos têm risco 80 vezes maior e mortalidade 200 vezes maior que a população geral de apresentar diarréia por Vibrio vulnificus. Pacientes com AIDS e outras imunodeficiências, uso de corticóides, insuficiência renal crônica, neoplasias, diabetes, ou condições acompanhadas de sobrecarga de ferro têm maior risco de doença e morte. Assim como aqueles que usam por longos períodos antagonistas dos receptores-H2 e que foram submetidos à resseção gástrica, pela diminuição da acidez gástrica. (c,D). Outros pacientes de alto risco são
os transplantados, falcêmicos, que utilizam próteses ortopédicas ou cardíacas e os sépticos.
Algumas pistas epidemiológicas também podem sugerir o agente causador do quadro diarréico: creches (Shigella, Campylobacter jejuni, Cryptosporidium, Giardia lamblia, Rotavírus, Clostridium difficile); hospitalização e uso recente de antibióticos (C. difficile); piscina (Giardia, Cryptosporidium, Norwalk); viagem (diarréia do viajante); intercurso sexual anal (doenças sexualmente transmissíveis); animais de fazenda (Cryptosporidium); mariscos (Vibrio); queijo (Listeria); hamburger (E.coli enterohemorrágica); atrroz (Bacillus cereus); alimentos em conserva (Clostridium perfringens). (10). Na tabela 4-2 estão relacionados os alimentos e os enteropatógenos a eles mais relacionados como determinantes de quadros diarréicos.
Tabela 4-2 – Alimentos e associações com determinados alimentos
Carne de boi e porco - Salmonella, S. aureus, C. perfringens, E.coli enterohemorragica, B. cereus, Y. enterocolytica, L. monocytogenes, Brucella, T. spiralis
Carne de ave – Salmonella, S. aureus, Camylobacter, C. perfringens, L. monocytogenes
Ovos – Salmonella, S. aureus
Leite e queijo – Salmonella, Campylobacter, E. coli (EIEC, EHEC), Y. enterocolytica, Streptococcus grupo A, Brucella, L monocytogenes.
Verduras – C. botulinum, Salmonella, Shigella, B. cereus, vírus Norwalk
Peixe - C. botulinum, Ciguatera, veneno escombróide, Diphyllobothrium latum, Anisakiase
Mariscos – V. parahaemolytico, V. cholerae, hepatite A, vírus Norwalk e símiles, veneno paralítico, veneno neurotóxico
Comida chinesa - B. cereus, veneno glutamato monosódico
Mel – C. botulinum
Entre os agentes que têm sido relacionados com a diarréia do viajante, por ordemn de freqüência decrescente encontram-se relatados: E. coli enterotoxigenica, E. coli enteroaderente, Shigella, Salmonella, Campylobacter, Aeromonas, Vibrio, Rotavírus, E. histolytica, G. lamblia, e Cryptosporidium. Durante a diarréia aguda, ocorrem alterações no transporte de água e eletrólitos no trato digestivo, tendo como conseqüência distúrbios nos mecanismos digestivo, absortivo e secretório do intestino. Os resultados do processo diarréico são variáveis, uma vez que o quadro clínico pode ser leve com discretas repercussões sistêmicas, até formas graves acompanhadas de febre, vômitos, desidratação significativa e até óbito. O comprometimento do estado nutricional é também uma conseqüência importante sobretudo naqueles pacientes já desnutridos, de baixa idade e que fazem episódios sucessivos, além daqueles que recebem o tratamento incorreto.
A integridade do tubo digestivo é fundamental para que suas funções sejam exercidas de maneira adequada. De acordo com o grau de lesão da mucosa intestinal os processos de absorção e secreção estarão alterados. Nas crianças de baixa idade, a recuperação das infecções entéricas é mais demorada, uma vez que a migração de enterócitos é mais lenta e os mecanismos locais de defesa são ainda incipientes, portanto estas crianças apresentam maior chance de prolongar o quadro diarréico. Os níveis enzimáticos são mais baixos e as lesões propiciam a passagem de macromoléculas, facilitando o aparecimento de intolerâncias alimentares.
Por outro lado, as reservas da criança jovem são escassas, o que determina desidratação e desnutrição mais freqüentemente. O leite materno exerce um papel protetor primordial no tubo digestivo, pois é rico em lactobacilos, lactoferrina, lisozima, IgA secretória, além dos polimorfonucleares e outros fatores que impedem a proliferação e a adesão dos enteropatógenos.
O desnutrido é predisposto às infecções pela depressão do seu sistema imunológico, além de freqüentemente estar exposto aos alimentos e água contaminados.
As complicações mais freqüentes e manifestações não habituais relacionadas com os enteropatógenos mais comuns estão na Tabela 4-3. (e)
7 Tabela 4-3 Complicações mais freqüentes e manifestações não habituais relacionadas com os enteropatógenos mais comuns
Shigella – Enteropatia perdedora de proteínas, meningite, convulsão, pneumonite, síndrome hemolítica-urêmica, síndrome de Reiter (artrite, uretritte, conjuntivite), eritema nodoso, colite pós-infecciosa, reação leucemóide, apendicite, miocardite.
Salmonella não tifóide – bacteremia e infecção extra-intestinal, osteomielite, pneumonia, arterite, meningite, estado de portador, colecistite, c;alculos, colite pós-infecciosa.
Salmonella typhi – dissociação pulso-temperatura, alteração do nível de consciência, manchas róseas na pele, máculas em abdômen, miocardite, ulceração intestinal e colônica, sangramento e perfuração intestinal, hepatoesplenomegalia, supressão de medula óssea, recidiva da doença, estado de portador
Campylobacter jejuni – Aborto séptico, colecistite aguda, pancreatite, cistite, síndrome Guilliam Barre, artrite
C. fetus – meningoencefalite, artrite séptica, pneumonia, cardite, tromboflebite, aneurisma micótico aórtico, aborto séptico, febre recorrente, mialgia
Yersinia enterocolytica – poliartrite, síndrome de reiter, eritema nodoso, faringite, sepse, tireoidite, pericardite, glomerulonefrite
Clostridium difficile – enteropatia perdedora de proteína, megacólon tóxico
Já o quadro de diarréia persistente, se caracteriza por apresentar duração superior a 15 dias, e geralmente segue uma diarréia infecciosa e ocorre sobretudo em crianças pequenas. Nos lactentes há maior prevalência antes dos seis meses de idade, quando as defesas do trato digestivo ainda são incipientes, dando maior chance à instalação e perpetuação dos enteropatógenos e das lesões decorrentes de sua presença, além dos distúrbios hidroeletrolíticos e comprometimento nutricional mais significativos e freqüentes, o que determina conseqüências graves sobretudo relacionadas com desnutrição e mortalidade dos pequenos pacientes. Na tabela 4-4 estão as causas que determinam a perpetuação do quadro de diarréia aguda e na tabela 4-5 estão as crianças com maior risco de desenvolverem diarréia persistente.
Tabela 4-4 Causas que contribuem para a perpetuação da diarréia aguda:
- Má-absorção de carboidratos dissacarídios e, nas formas mais graves, até monossacarídios, a depender do grau de lesão da mucosa.
- Persistência do agente etiológico. Os agentes mais freqüentes são a E. coli enteropatogenica, o rotavírus e a Shigella.
- Intolerância às proteínas heterólogas, sobretudo às do leite de vaca.
- Má-absorção de sais biliares, especialmente se há lesão no íleo terminal.
- Supercrescimento bacteriano do intestino delgado.
- Tratamento incorreto da diarréia aguda.
Tabela 4-5 – Crianças de risco para apresentarem diarréia persistente:
- Desmame precoce
- Baixa idade
- Desnutrição protéico-calórica
- Infecção por E. coli enteropatogênica
- Uso inadequado de antibióticos
- Não reconhecimento por parte do médico de pacientes com alto risco para prolongarem um quadro agudo de diarréia.
- Baixo peso ao nascer
- Episódios repetidos de diarréia ou diarréia prévia prolongada
- Gravidade do quadro agudo de diarréia
- Deficiência de vitamina A e micronutrientes
- Conduta inadequada na diarréia aguda
- Hospitalização
- Más condições de vida
Por outro lado, a diarréia crônica tem conceito temporal ainda controverso. A maioria dos autores admite tratar-se de diarréia crônica quando a criança apresenta diarréia por um período maior que trinta dias ou quando ocorrem pelo menos três episódios num período de tempo menor que dois meses. A diarréia crônica na infância é na verdade uma síndrome, que pode ser determinada por inúmeras patologias, representadas por alterações anatômicas, bioquímicas, funcionais do tubo digestivo e/ou seus anexos.
A diarréia aguda pode ser classificada de diversas maneiras. A classificação mais simples divide a diarréia aguda em infecciosa e não infecciosa.
Pode-se também classificá-la em alta e baixa. A diarréia é alta quando há acometimento do intestino delgado, caracterizando-se por poucas dejeções, de grande volume, podendo haver restos alimentares. A diarréia baixa é aquela que traduz o envolvimento do intestino grosso, com grande número de dejeções, pouco volumosas, com tenesmo, podendo haver presença de sangue e pus. Pode ainda ser mista quando houver envolvimento de ambos os segmentos do intestino.
Outra classificação da diarréia aguda baseia-se nos mecanismos fisiopatológicos determinantes, que podem estar presentes de modo isolado ou mais freqüentemente combinados. De acordo com esta classificação, a diarréia aguda pode ser: osmolar, secretória ativa, secretória passiva, por alteração da absorção iônica, por alteração da permeabilidade e motora.
A diarréia osmolar é provocada por excesso de osmolaridade dentro da luz intestinal, havendo por conseguinte pressão osmótica superior à do plasma, o que promove passagem de água e eletrólitos para dentro do lúmen. Esta quantidade aumentada de líquidos produzida supera a capacidade de absorção, o que determina a emissão de fezes liquefeitas. Os solutos intraluminais não-absorvíveis não só retêm fluidos na luz intestinal como também estimulam a peristalse. As principais causas de diarréia osmolar são:
A) Superalimentação com carboidratos determinando sobrecarga de nutrientes em relação à capacidade absortiva
B) Ingestão de solutos não-absorvíveis como laxantes à base de magnésio, fosfato, sulfato e lactulose, que exercem ação osmótica sobre a mucosa intestinal
C) Deficiência enzimática, principalmente das dissacaridases, enzimas importantes na digestão dos açúcares, que quando não absorvidos funcionam como osmoticamente ativos. Dentre as deficiências das dissacaridases, a mais comum é a de lactase. Esta deficiência pode ser congênita (extremamente rara) ou transitória (extremamente freqüente). A deficiência adquirida ocorre comumente de modo transitório no curso dos episódios diarréicos ou em outras condições acompanhadas de lesão da borda em escova dos enterócitos, pois é aí que esta enzima se localiza. Ocorre também o componente osmolar nas diarréias infecciosas acompanhadas de reparação lenta da mucosa. Nas últimas porções do intestino, os açúcares sofrem ação das bactérias que os fermentam, havendo produção de ácido lático, com diminuição do pH fecal e estímulo da secreção, o que agrava o quadro diarréico.
Clinicamente, a diarréia osmótica se caracteriza por distensão abdominal, desconforto e cólicas, ausência de febre, fezes amolecidas, explosivas, fétidas e ácidas, com osmolaridade elevada, pH abaixo de 5 e presença de substâncias redutoras. A diarréia osmótica persiste enquanto a substância continua a ser ingerida e cede quando esta é eliminada da dieta. Devido à acidez fecal, é freqüente o encontro de irritação e assadura perianal significativa.
Na diarréia secretória, que representa o principal mecanismo envolvido nas infecções, ocorre hipersecreção de água e eletrólitos para dentro do lúmen intestinal, a partir de estímulos representados por toxinas, substâncias especiais, hormônios ou invasão de microrganismos. A diarréia secretória pode ser ativa ou passiva.
Na diarréia secretória ativa não há solução de continuidade na mucosa intestinal, que permanece íntegra. O que acontece é que determinados estímulos (toxinas da Escherichia coli toxigênica e do Vibrio cholerae, prostaglandinas, ácidos biliares, gastrina, peptídio vasoativo intestinal) ativam o mecanismo secretor ao nível das criptas das vilosidades. Estas substâncias se acoplam a determinados receptores específicos, havendo ativação da adenilciclase e maior produção de AMP e GMP cíclico, ativando a bomba eletrolítica, havendo grande secreção intestinal. A absorção permanece íntegra, o que enfatiza o uso da hidratação oral com solução glicoeletrolítica. A diarréia secretória ativa caracteriza-se por emissão de grande quantidade de fezes líquidas, caracterizadas como "água de arroz", que leva facilmente à desidratação. Em geral não há febre, ou quando há, é baixa. Não há lesão da mucosa nem sangue ou leucócitos nas fezes.
Na diarréia secretória passiva ocorrem alterações na mucosa, podendo surgir lesão no epitélio por invasão de patógenos, promovendo maior passagem de água e eletrólitos para dentro da luz e processo inflamatório da submucosa. Em algumas circunstâncias a destruição ocorre só na camada epitelial como no caso dos Rotavírus. Em outras oportunidades, na diarréia secretória passiva há invasão da mucosa com proliferação bacteriana com destruição e eventualmente invasão da corrente sanguínea com bacteremia, como é o caso de Shigella, Salmonella, E. coli enteroinvasora, E.coli enterohemorragica, Campylobacter e Yersinia. É comum nestes quadros invasivos o aparecimento de febre, fezes disentéricas com presença de leucócitos e sangue nas fezes. No mecanismo por alteração da absorção iônica, ocorre inibição da absorção do íon envolvido, havendo simultaneamente a não absorção de água, sendo o exemplo deste mecanismo a cloridorréia congênita. A diarréia é profusa com elevadas concentrações de cloro nas fezes, sendo um quadro grave devido às complicações que podem surgir como alcalose e hipocloremia.
A diarréia por alteração da permeabilidade pode acontecer em várias circunstâncias como na doença celíaca, doenças intestinais inflamatórias, enterites alérgicas, linfangiectasia, obstrução intestinal e aumento de ácidos biliares.
A diarréia motora pode ocorrer isolada ou combinada com outros mecanismos fisiopatológicos. A diarréia pode ocorrer quando há aumento de motilidade ou diminuição da mesma. Em ambas as situações há alteração no contato entre os nutrientes e a mucosa e além da predisposição ao de supercrescimento bacteriano. A motricidade alterada pode ser um dos fatores na gênese do processo diarréico, influenciando o grau de absorção e induzindo secreção reflexa.
Baseando-se em critérios clínicos, pode-se ainda dividir a diarréia aguda em inflamatória (ou sanguinolenta) e não-inflamatória (ou aquosa). As diarréias inflamatórias em geral são mais graves que as não-inflamatórias, embora estas possam promover perda de volume considerável. Entre as diarréias inflamatórias estão as causadas por Shigella, Salmonella, Amebíase, Campylobacter, Yersinia, E.coli enteroinvasiva e enterohemorrágica e Clostridium difficile; estas formas cursam com leucócitos presentes nas fezes, podendo também apresentar sangue oculto ou vivo. Entre as causas das diarréias não inflamatórias agudas estão os vírus, Vibrio cholerae, Giardia, E. coli enterotoxigenica e as fezes não apresentam leucócitos e sangue. A diarréia por Rotavírus é extremamente prevalente, sobretudo no lactente logo após o desmame, embora possa ocorrer em outras faixas etárias; acompanha-se freqüentemente de febre, vômitos e manifestações respiratórias. Em algumas circunstâncias a diarréia por Rotavírus pode apresentar sangue misturado nas fezes, mas não é o habitual.
As diarréias agudas mais comuns são as infecciosas, que são adquiridas através da ingestão de água e alimentos contaminados com microrganismos e/ou toxinas produzidas por microrganismos. Esta contaminação fecal da água, alimentos e das mãos promove habitualmente a disseminação das enteroinfecções. Fatores relacionados com o agente (quantidade do inóculo, adesão, produção de toxinas, capacidade de invasão), com o hospedeiro (integridade da mucosa, pH gástrico, muco, sistema imunológico) e com o ambiente (exposição a enteropatógenos) estão diretamente relacionados com o aparecimento da doença diarréica e sua apresentação clínica. Hospedeiros portadores de imunodeficiências são mais susceptíveis aos enteropatógenos, podendo desenvolver quadros fatais de diarréia.
Em algumas situações não se identificam os agentes etiológicos das diarréias e em outras, são identificadas associação de patógenos. Nos últimos anos têm-se identificado novos agentes causadores da diarréia infecciosa dentre os quais estão: astrovírus, Aeromonas, Pleisiomonas, Isospora e microsporídios.
A grande maioria dos pacientes com diarréia aguda não tem desidratação, no entanto a desidratação é sempre um risco que pode ocorrer nas crianças com diarréia e é a complicação mais freqüente. A desidratação ainda representa causa significativa de morte em crianças menores de um ano, apesar dos avanços e incentivos à rehidratação oral. A maior incidência de desidratação ocorre nas crianças menores de um ano, devido às características da composição corpórea das crianças neste grupo etário. As perdas por diarréia são proporcionalmente maiores quanto menor o peso da criança.
As crianças com diarréia aguda devem ser classificadas de acordo com o quadro 1, quanto ao seu estado de hidratação, para a orientação adequada do seu tratamento. De acordo com esta classificação as crianças podem se enquadrar em três grupos: sem desidratação, com algum grau de desidratação e com desidratação grave.
Quadro 1- Avaliação do estado de Hidratação do paciente com diarréia. 1. Observe
Condição
Bem, alerta
Irritado, intranqüilo, com sede
Comatoso, deprimido, hipotônico **
Olhos
Normais
Fundos
Muito fundos
Lágrimas
Presentes
Ausentes
Ausentes
Boca e língua
Úmidas
Secas
Muito secas
Sede
Bebe normal
Sedente, Bebe com avidez
Bebe mal ou não é capaz **
2. Explore
Sinal da prega
Desaparece rapidamente
Desaparece lentamente
Desaparece muito lentamente
Pulso
Cheio
Rápido e débil
Muito débil ou ausente **
Enchimento capilar *
Normal (até 3 segundos)
Prejudicado (de 3 a 8 segundos)
Muito prejudicado (mais de 8 segundos) **
Fontanela
Normal
Deprimida
Muito deprimida
3. Decida
Não tem sinais de desidratação
Se apresentar dois ou mais sinais acima tem desidratação
Se apresentar dois ou mais sinais incluindo pelo menos um sinal ** tem desidratação grave.
Bibliografia
1. Murch SH. The molecular basis of intractable diarrhoea of infancy. Baillieres Clin. Gastroenterol 1997; 11:413-40.
2. Goulet O, Kedinger M, Brousse et al.Intractable diarrhoea of infancy with epithelial and basement membrane abnormalities. J Pediatr 1995;127:212-9.
3. Wharton BA. Gastroenterological problems in developing countries. In: Anderson CM, Burke V, eds. Paediatric Gastroenterology, Oxford:Blackwell; 1975.
4. Barbieri D, Koda Y. Doenças Gastroenterológicas em Pediatria. Ed. Atheneu, 1996.
5. Silva L, Mota E, Santana C. Diarréia Aguda na Criança. Ed. Medsi, 1990.
6. Sabrá A. Diarréia aguda e crônica em Pediatria. Ed. Cultura Médica, 1994.
7. Emanuel Lebenthal. Chronic Diarrhea in Children, Nestlé Nutrition Workshop Series volume 6, 1994.
8. Murch SH. Toward a molecular understanding of complex childhood enteropathies, J Ped Gast Nut S4:S10, may-jun 2002.
37
9. Guerrant RL, Loh JA, Williams EK. Acute infectious diarrhea – epidemiology, pathogenesis, diagnosis, treatment and prevention. Pediatr Infect Dis 1996;5:353,458.
10.Spirit, Mitchell – Diarrhea in the critically ill patient, in Acute care of Abdomen, Williams and Wilkins, 1998.
11. Perla LH, Taylor MB, Vender RJ. Miscellaneous Colonic Emergencies. In: Gastrointestinal Emergencies, 2nd Edition, 1997.
12. Silva, L.R., Guerra, I. Diarréia aguda e Desidratação in Pronto Atendimento pediátrico, 219-238, editora Medsi, 2000
38