ENFERMAGEM, CIÊNCIAS E SAÚDE

Gerson de Souza Santos - Bacharel em Enfermagem, Especialista em Saúde da Família, Mestrado em Enfermagem, Doutorado em Ciências da Saúde - Universidade Federal de São Paulo. Atualmente professor do Curso de Medicina do Centro Universitário Ages - Irecê-Ba.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

FERIDAS PROVOCADAS POR TRAUMATISMOS

Os pacientes portadores de ferimentos atendidos nos serviços de urgência dos grandes centros urbanos são, na sua quase totalidade, vítimas de agressões ou de acidentes, que ocasionam feridas caracterizadas como traumáticas. É de grande interesse que esses ferimentos sejam classificados do melhor modo possível, quanto ao seu tipo, extensão e complicações. Não raro, existem conotações médico-legais, por se tratarem de casos que envolvem processos criminais, acidentes de trânsito, acidentes de trabalho etc. Feridas traumáticas são todas aquelas infligidas, geralmente de modo súbito, por algum agente físico aos tecidos vivos. Elas poderão ser superficiais ou profundas, dependendo da intensidade da lesão. Conceitualmente, considera-se como superficial um trauma que atinja pele e tecido subcutâneo, respeitando o plano aponeurótico; considera-se profundo o traumatismo que atinja planos vasculares, viscerais, neurais, tendinosos etc.

Os ferimentos conseqüentes ao trauma são causadores de três problemas principais:
hemorragia, destruição tissular mecânica e infecção. O tratamento das feridas traumáticas tem evoluído desde o ano 3000 a.C.; já naquela época, pequenas hemorragias eram controladas por cauterização. O uso de torniquetes é descrito desde 400 a.C. Celsus, no início da era cristã, descreveu a primeira ligadura e divisão de um vaso sangüíneo. Já a sutura dos tecidos é documentada desde os terceiro e quarto séculos a.C. Na Idade Média, com o advento da pólvora, os ferimentos se tornaram muito mais graves, com maior sangramento e destruição tissular; assim, métodos drásticos passaram a ser utilizados para estancar as hemorragias, como a utilização de óleo fervente, ferros em brasa, incenso, goma-arábica; logicamente, estes métodos em muito aumentaram as infecções nas feridas pela necrose tissular que provocam. A presença de secreção purulenta em um ferimento era indicativa de “bom prognóstico”. Os métodos “delicados’” para tratamento das feridas foram redescobertos pelo cirurgião francês Ambroise Paré, em 1585 — passouse, então, a realizar o desbridamento das feridas, a aproximação das bordas, os curativos e, principalmente, baniu-se o uso do óleo fervente.

Em 1884, Lister introduziu o tratamento anti-séptico das feridas, o que possibilitou um
extremo avanço na cirurgia; no século XX, a introdução das sulfas e da penicilina e, posteriormente, de outros antibióticos determinou uma redução importante nas infecções em feridas traumáticas, facilitando o tratamento e a recuperação dos pacientes.

II. Aspectos Biológicos da Cicatrização das Feridas
Nos últimos anos, a teoria básica da cicatrização das feridas evoluiu de modo surpreendente. A cicatrização é uma seqüência de respostas e de sinais, na qual células dos mais variados tipos (epiteliais, inflamatórias, plaquetas e fibroblastos) saem de seu meio natural e interagem, cada qual contribuindo de alguma forma para o processo cicatricial. Os eventos cicatriciais são dinâmicos, de ordem celular, bioquímica e fisiológica. Sabe-se que a resposta inflamatória que se segue a qualquer lesão tissular é vital para o processo de reparo. É correto, pois, afirmar que sem resposta inflamatória não ocorrerá cicatrização. A própria lesão tem um efeito considerável na forma de reparo subseqüente. Assim, por exemplo, uma ferida cirúrgica limpa, que foi suturada de forma anatômica e de imediato, requer síntese mínima de tecido novo, enquanto uma grande queimadura utiliza todos os recursos orgânicos disponíveis para cicatrização e defesa contra uma possível infecção, com uma importante reação inflamatória no local.

Deve-se enfatizar que a reação inflamatória normal que acompanha uma lesão tecidual é um fator benéfico, pois sem ela não ocorrerá cicatrização; somente uma reação inflamatória exagerada, com grande edema local, será maléfica, levando a retardo no processo cicatricial. Para facilitar a discussão dos eventos que ocorrem no processo de cicatrização, dividiremos as feridas clínicas, de acordo com o tipo de tratamento realizado, em dois tipos: feridas simples fechadas e feridas abertas (com ou sem perda de substância).

Feridas fechadas.
Por definição, considera-se como ferida fechada aquela que pôde ser suturada quando de seu tratamento. São as feridas que mais nos interessam do ponto de vista prático, pois são as mais comumente observadas nos ambulatórios de pronto-socorro. Na seqüência da cicatrização das feridas fechadas, temos a ocorrência de quatro fases: fase inflamatória, fase de epitelização, fase celular e fase de fibroplasia.

1. Fase inflamatória. Após o trauma e o surgimento da lesão, existe vasoconstrição local, fugaz, que é logo substituída por vasodilatação. Ocorrem aumento da permeabilidade capilar e extravasamento de plasma próximo ao ferimento. A histamina é o mediador inicial que promove esta vasodilatação e o aumento da permeabilidade. Ela é liberada de várias células presentes no local: mastócitos, granulócitos e plaquetas. O efeito da histamina é curto, durando aproximadamente 30 minutos. Pesquisas recentes têm atribuído extraordinária responsabilidade às plaquetas, no início da fase inflamatória da cicatrização. Vários outros fatores têm sido implicados na manutenção do estado de vasodilatação que se segue a esta fase inicial; entretanto, parecem ser as prostaglandinas (liberadas das células locais) as responsáveis pela continuidade da vasodilatação e pelo aumento da permeabilidade.
Em alguns outros vasos próximos ao local da lesão tissular, ocorrem fenômenos de coagulação, mediados pelas plaquetas, com formação de trombos. Estes, por sua vez, em uma fase um pouco mais tardia, passam a levar a uma maior formação e proliferação de fibroblastos. Existem diversos fatores plaquetários, entre eles o de número 4 (PF4), que estimula a migração de células inflamatórias e de fibroblastos; além dele, o fator de crescimento derivado plaquetário (PDGF) é capaz de atrair monócitos, neutrófilos, fibroblastos e células musculares lisas. O PDGF também é capaz de estimular a síntese de colagenase por fibroblastos, uma etapa essencial no processo de cicatrização. O fator de crescimento básico de fibroblastos (bFGF), um fator não-plaquetário, apresenta sua concentração de pico no interior da ferida no primeiro dia após o ferimento, em modelos animais. A migração de leucócitos no interior da ferida é intensa, pelo aumento da permeabilidade capilar. Inicialmente, predominam os granulócitos, que, após algumas horas, são substituídos por linfócitos e monócitos. Os monócitos, ao lisar tecidos lesados, originam macrófagos, que fagocitam detritos e destroem bactérias. Sabe-se que os monócitos e os macrófagos representam papel importante na síntese do colágeno; na ausência destes dois tipos de células, ocorre redução intensa na deposição de colágeno no interior da ferida. Agentes inibidores das prostaglandinas, como a indometacina, diminuem a resposta inflamatória ao evitar a manutenção do estado de vasodilatação; conseqüentemente, podem levar à desaceleração da cicatrização.

2. Fase de epitelização. Enquanto a fase inflamatória ocorre na profundidade da lesão, nas bordas da ferida suturada começam a surgir novas células epiteliais que para lá migram. Desta forma, em 24-48 horas, toda a superfície da lesão estará recoberta por células epiteliais. Finalmente, com o passar dos dias, as células da superfície se queratinizam. O fator de crescimento da epiderme (EGF) é importante nesta fase.

3. Fase celular. Em resposta à lesão, fibroblastos — células com formato de agulha e de núcleos ovalados, derivados de células mesenquimais —, residentes nos tecidos adjacentes, proliferam por três dias e no quarto dia migram para o local do ferimento. No décimo dia os fibroblastos tornam-se as células predominantes no local. Os fibroblastos têm quatro diferentes ações no interior de uma ferida: primeiramente, proliferando; depois, migrando; em seguida, secretando o colágeno, tecido matricial da cicatriz; e, por último, formando feixes espessos de actina como miofibroblastos. A rede de fibrina que se forma no interior da ferida serve como orientação para a migração e o crescimento dos fibroblastos, fornecendo-lhes o suporte necessário. O fibroblasto não tem capacidade de lisar restos celulares; assim, a presença de tecidos macerados, coágulos e corpos estranhos constitui uma barreira física à sua proliferação, com conseqüente retardo da cicatrização. Daí, a necessidade absoluta de se realizar um bom desbridamento de qualquer lesão, removendo-se tecidos necrosados, coágulos etc. Uma neoformação vascular intensa se segue ao avanço dos fibroblastos. Esta angiogênese tem um papel crítico para o sucesso da cicatrização das feridas. Acredita-se, atualmente, que a angiogênese seja regulada por fatores de crescimento locais, entre eles o fator de crescimento básico de fibroblasto (BFGF) . Os monócitos e os macrófagos também estão associados à produção de fatores estimulantes à neoformação vascular. A fase celular da cicatrização dura algumas semanas, porém o número de fibroblastos vai diminuindo progressivamente até a quarta ou quinta semana após a lesão. Neste período, a rede de neovascularização já se definiu por completo. O colágeno, secretado pelos fibroblastos, proporciona força e integridade aos tecidos do corpo. Desta forma, quando há necessidade de um reparo tissular, é exatamente na deposição e no entrecruzamento do colágeno que irá basear-se a força da cicatriz.

4. Fase de fibroplasia. É a fase caracterizada pela presença do elemento colágeno, proteína insolúvel, existente em todos os animais vertebrados. O colágeno é secretado pelos fibroblastos numa configuração do tipo “hélice tripla”. Mais da metade da molécula é composta por apenas três aminoácidos: glicina, prolina e hidroxiprolina. Para a síntese das cadeias de colágeno é necessária a hidroxilação da prolina e da lisina. Esta hidroxilação, que ocorre ao nível dos ribossomos, requer enzimas específicas, as quais necessitam de vários co-fatores, tais como oxigênio, ascorbato, ferro e alfacetoglutarato. Desse modo, é fácil entender por que uma deficiência de ácido ascórbico ou a hipoxemia pode levar ao retardo da cicatrização, pela menor produção das moléculas de colágeno. As primeiras fibras de colágeno surgem na profundidade da ferida, cerca de cinco dias após o traumatismo. Com o passar dos dias, feixes de colágeno dispostos ao acaso vão gradativamente ocupando as profundezas do ferimento. Esses feixes originam uma estrutura bastante densa e consistente: a cicatriz. Com o aumento do número de fibras colágenas na cicatriz, esta se vai tornando mais resistente. Feridas cutâneas, por exemplo, continuam a ganhar resistência de forma constante por cerca de quatro meses após a lesão. O controle da síntese do colágeno ainda continua sendo de difícil explicação. Sabe-se que o processo desta síntese é particularmente dependente do oxigênio. As feridas musculares adquirem resistência mais lentamente; os tendões são ainda mais lentos do que os músculos neste ganho de resistência. Apesar desta recuperação da resistência, quase nunca a cicatriz adquire a mesma resistência do tecido original; a cicatriz tem também menor elasticidade que o tecido que veio a substituir. A fase de fibroplasia não tem um final definido — sua duração varia conforme o local da lesão, sua profundidade, o tipo do tecido lesado, e se existem ou não as deficiências já escritas anteriormente (oxigenação, ácido ascórbico etc.).

Sabe-se ainda que as cicatrizes continuam remodelando-se com o passar dos meses e anos, sofrendo alterações progressivas em seu volume e forma. Essa remodelação ocorre através da degradação do colágeno, que é mediada pela enzima colagenase. A degradação do colágeno é tão importante quanto a sua síntese no reparo das feridas, para evitar um entrecruzamento desordenado de fibras e levar à formação de uma cicatriz excessiva. Em certas condições patológicas, tais como nos quelóides, na cirrose hepática e nas feridas intra-abdominais, observa-se exatamente uma deposição exagerada de colágeno, não destruído pela colagenase. Sabe-se que existem sete tipos distintos de colágeno no ser humano: os tipos I e II são os principais existentes nas lesões da pele.

Feridas abertas. Como mencionado anteriormente, as feridas abertas podem ocorrer com ou sem perda de substância. Clinicamente, um ferimento deixado aberto se comporta de modo completamente diverso de um ferimento que foi suturado. Numa ferida aberta (não suturada), observa-se a formação de um tecido de aspecto granular
fino no interior da lesão — o chamado tecido de granulação —, que surge cerca de 12-24
horas após o trauma. Neste tipo de ferimento, um novo componente passa a ter importância
— é a contração. O miofibroblasto é a célula responsável por este fenômeno, fazendo com
que a pele circunjacente à ferida se contraia, não ocorrendo a produção de uma “pele nova”,
para recobrir o defeito. A contração é máxima nas feridas deixadas abertas, podendo
inclusive ser patológica (ocasionando deformidades e prejuízos funcionais), dependendo do
local do ferimento e da extensão da lesão. Recobrir uma ferida com um curativo ou com um
enxerto de pele é uma boa maneira de se evitar a contração patológica.
Excisões repetidas das bordas da lesão (“avivarem-se” as bordas) fazem diminuir bastante o
fenômeno da contração, fazendo com que a proliferação das células epiteliais seja mais
ordenada e que a cicatriz final tenha mais força (normalmente, a cicatriz epitelizada de uma
ferida que foi deixada aberta e que cicatrizou por segunda intenção é bastante frágil).
Glândulas sudoríparas e sebáceas e folículos pilosos favorecem a formação de uma junção
bastante forte entre a epiderme e a derme; como esta estrutura não existe na cicatriz da
ferida deixada aberta, sua ausência contribui para a pequena resistência desta epiderme. A
enxertia precoce e a técnica de fechamento retardado das feridas (no segundo ou terceiro
dia após a lesão, caso não se observe infecção) são também boas formas de se evitar a
contração patológica nas feridas deixadas abertas.
Não se devem confundir as expressões contração e retração; esta última se refere à retração
tardia da cicatriz, que ocorre principalmente em determinadas circunstâncias, como nas
queimaduras e nas lesões em regiões de dobras de pele.
III. Tipos de Cicatrização das Feridas
A. Cicatrização por primeira intenção. É aquela que ocorre quando as bordas de uma ferida
são aproximadas — o método mais comum é a sutura. A contração, nesses casos, é mínima,
e a epitelização começa a ocorrer dentro de 24 horas, sendo a ferida fechada contra a
contaminação bacteriana externa.
B. Fechamento primário retardado. Na presença de lesão intensamente contaminada, o
fechamento desta deve ser protelado, até que se verifiquem as respostas imunológicas e
inflamatórias do paciente. Utilizam-se ainda antibióticos e curativos locais. No segundo ou
terceiro dia, ao observarmos que não se apresenta contaminação no ferimento, este poderá
ser fechado.
Um exemplo de fechamento primário retardado seria a utilização deste procedimento após a
remoção de um apêndice supurado — uma cirurgia na qual o índice de abscessos de parede
pós-operatória é alto, quando o fechamento primário simples (primeira intenção) é utilizado
(ver Cap. 31, Apendicite Aguda). Confirmada, em torno do terceiro dia, a ausência de
infecção de pele ou de tecido subcutâneo, procede-se à sutura desses planos.
C. Fechamento por segunda intenção. É a cicatrização por meio de processos biológicos
naturais. Ocorre nas grandes feridas abertas, principalmente naquelas em que há perda de
substância tecidual. Neste tipo de ferida, a contração é um fenômeno que ocorre mais
intensamente, como já explicado.
IV. Fatores Que Influenciam na Cicatrização das Feridas
Sabemos que são vários os fatores que podem levar à alteração na cicatrização das feridas,
sejam eles ligados ao tipo de traumatismo, ao próprio paciente, a algum tratamento em
curso, ou a algum tipo de medicação em uso.
A. Nutrição. Ocorre retardo na cicatrização de feridas em doentes extremamente
desnutridos (quando a redução do peso do paciente ultrapassa um terço do peso corporal
normal). É bem-estabelecida a relação entre cicatrização ideal e um balanço nutricional
positivo do paciente.
B. Depressão imunológica. A ausência de leucócitos polimorfonucleares pode, pelo retardo
da fagocitose e pela lise de restos celulares, prolongar a fase inflamatória e predispor à
infecção. Além disso, no caso específico da ausência de monócitos, sabe-se que a formação
de fibroblastos estará prejudicada.
C. Oxigenação. A síntese do colágeno depende de oxigênio para formação de resíduos
hidroxiprolil e hidroxilisil. Uma anoxia, até mesmo temporária, pode levar à síntese de um
colágeno pouco estável, com formação de fibras de menor força mecânica. Além disso,
feridas em tecidos isquêmicos apresentam-se com infecção mais freqüentemente do que
aquelas em tecidos normais.
D. Volume circulante. A hipovolemia e a desidratação levam a menor velocidade de
cicatrização e a menor força da cicatriz. Entretanto, a anemia não altera, por si só, a
cicatrização.
E. Diabetes. A síntese do colágeno diminui bastante na deficiência de insulina, como pôde
ser comprovado em experimentos em modelo animal. São também menores a proliferação
celular e a síntese do DNA, que explica a menor velocidade de cicatrização no diabético.
Além disso, existe um componente de microangiopatia cutânea, acarretando menor fluxo
tissular, com conseqüentes menor oxigenação e menor pressão de perfusão local. A
infecção da ferida é um sério problema nesses pacientes. O componente de arteriosclerose
pode ainda se fazer presente no diabético, concomitantemente, agravando ainda mais o
quadro.
F. Arteriosclerose e obstrução arterial. Também levam ao menor fluxo para o local do
ferimento, com retardo cicatricial. Em alguns pacientes, como já comentado anteriormente,
a arteriosclerose associa-se à microangiopatia diabética, principalmente em pacientes mais
idosos, com lesões dos membros inferiores.
G. Uso de esteróides. Estes têm um efeito antiinflamatório potente, fazendo com que a
cicatrização se proceda de forma mais lenta, sendo a cicatriz final também mais fraca. A
contração e a epitelização ficam muito inibidas.
H. Quimioterapia. Os agentes quimioterápicos agem em várias áreas, retardando a
cicatrização: levam à neutropenia (predispondo à infecção); inibem a fase inflamatória
inicial da cicatrização (ciclofosfamida); interferem na replicação do DNA; interferem nas
mitoses celulares e na síntese protéica.
I. Irradiação. A irradiação leva à arterite obliterante local que, por sua vez, causa hipoxia
tecidual. Existem diminuição na população de fibroblastos e, conseqüentemente, menor
produção de colágeno. As lesões por irradiação devem ser excisadas em suas bordas
avivadas e, em seguida, tratadas.
J. Politraumatizados. Um paciente politraumatizado, com inúmeras lesões, em choque, com
hipovolemia e hipoxemia tecidual geral, é um bom candidato a ter seus ferimentos
superficiais infectados. Se isto ocorrer, haverá retardo cicatricial. Quanto mais grave e
prolongado o estado de choque, maior será a dificuldade de cicatrização de lesões
múltiplas.
L. Tabagismo. A associação entre o uso de cigarros e o retardo na cicatrização é bem
reconhecida. Os efeitos já documentados dos constituintes tóxicos do cigarro —
particularmente a nicotina, o monóxido de carbono e o cianido de hidrogênio — sugerem
vários mecanismos em potencial pelos quais o fumo pode determinar o retardo cicatricial.
A nicotina é um vasoconstritor que reduz o fluxo sangüíneo para a pele, resultando em
isquemia tissular. A nicotina também aumenta a aderência plaquetária, favorecendo a
ocorrência de trombose da microcirculação. Além disso, a proliferação de hemácias,
fibroblastos e macrófagos é reduzida pela nicotina. Já o monóxido de carbono diminui o
transporte e o metabolismo do oxigênio. O cianido de hidrogênio inibe os sistemas
enzimáticos necessários ao metabolismo oxidativo e ao transporte de oxigênio em nível
celular. Clinicamente, tem sido observada a cicatrização mais lenta em fumantes com
feridas resultantes de trauma, doenças da pele e cirurgia. Os fumantes deveriam ser
recomendados a parar de fumar antes de cirurgias eletivas ou quando estivessem se
recuperando de ferimentos resultantes de trauma, doenças diversas da pele ou de cirurgia de
emergência.

Classificação
As feridas podem ser classificadas de várias maneiras; se as relacionarmos com o tempo de
traumatismo, serão chamadas de agudas ou crônicas. Já se as abordarmos de acordo com o
meio ou o agente causal das lesões, elas poderão ser classificadas de outras maneiras.

As feridas contusas resultam da ação de instrumento contundente; as feridas cortantes ou
incisas são resultado da ação de instrumento cortante, e assim sucessivamente. Uma ferida
cortocontusa resulta da ação de um instrumento contundente que provoque uma contusão e
um corte local.
A. Feridas incisas. São provocadas por instrumentos cortantes, tais como navalhas, facas,
bisturis, lâminas de metal ou de vidro etc. O trauma é causado pelo deslocamento sobre
pressão do instrumento na pele. Suas principais características são: predomínio do
comprimento sobre a profundidade; bordas regulares e nítidas, sendo geralmente retilíneas;
o tônus tecidual e a sua elasticidade fazem com que ocorra o afastamento das bordas da
lesão.
Podemos subdividir as feridas incisas em três tipos: (a) simplesmente incisas — nelas, o
instrumento penetra na pele de forma perpendicular; (b) incisas com formação de retalhos
— o corte é biselado, com formação de um retalho pediculado, e o instrumento penetra de
maneira oblíqua à pele; (c) com perda de substância — nelas, uma certa porção do tecido é
destacada.
Em uma ferida incisa, o corte começa e termina a pique, fazendo com que exista uma
profundidade igual de um extremo a outro da lesão (como na ferida cirúrgica); nas
chamadas feridas cortantes, as extremidades da lesão são mais superficiais, enquanto a
parte mediana do ferimento é mais profunda.
B. Feridas cortocontusas. Em um ferimento cortocontuso, o instrumento causador da lesão
não tem gume tão acentuado como no caso das feridas incisas; um exemplo seria um corte
por enxada no pé — é a força do traumatismo que causa a penetração do instrumento. Uma
ferida cortocontusa pode ser ocasionada por um instrumento que não tem nenhum gume,
mas que, pela força do impacto, faz com que ocorra a solução de continuidade na pele.
C. Feridas perfurantes. São provocadas por instrumentos longos e pontiagudos, tais como
agulhas, pregos, alfinetes etc., podendo ser superficiais ou profundas. No caso de uma
ferida perfurante adentrar uma cavidade do corpo, como a cavidade peritoneal, ela receberá
o nome de cavitária. Uma ferida perfurante pode ainda ser transfixante, ao atravessar um
membro ou órgão. A gravidade de um ferimento perfurante varia de acordo com o órgão
atingido. Um exemplo caracteristicamente marcante seria a perfuração do coração por um
estilete, que pode causar a morte do paciente. Este mesmo estilete, penetrando em outro
local, como na face lateral da coxa, pode não vir a trazer qualquer conseqüência maior.
D. Feridas perfurocontusas. São causadas principalmente pelos projéteis de arma de fogo.
Suas principais características são:
1. O orifício de entrada de uma bala apresenta uma orla de contusão e uma orla de enxugo;
se o tiro tiver sido dado à queima-roupa, bem próximo do paciente, ocorrerá também uma
zona de chamuscamento ou de tatuagem. O orifício de saída geralmente é maior do que o
de entrada; não apresenta orla de contusão e de enxugo; muitas vezes, próximo ao orifício de saída, existem fragmentos de tecidos orgânicos e outros materiais (pano, couro etc.),
carregados pela bala.
2. Cargas de chumbo (ferimentos por cartucheira) produzem um tipo de ferida
perfurocontusa um pouco diferente: neste caso, a lesão também tem um componente de
laceração, pois inúmeros projéteis atingem uma área pequena no corpo do paciente.
E. Feridas lacerocontusas. Os mecanismos mais freqüentes são: (a) compressão: a pele, sob
a ação de uma força externa, é esmagada de encontro ao plano subjacente; (b) tração: por
rasgo ou arrancamento tecidual, como em uma mordedura de cão.
Como características das feridas lacerocontusas, citamos: bordas irregulares infiltradas de
sangue, ângulos em número de dois ou mais e a presença de bridas (“pontes”) de pele ou de
vasos sangüíneos unindo os dois lados da lesão.
São freqüentes as complicações sépticas, pela ocorrência de necrose tecidual.
F. Feridas perfuroincisas. São provocadas por instrumentos perfurocortantes, que possuem
ao mesmo tempo gume e ponta, como, por exemplo, um canivete, um punhal etc.
As lesões podem ser superficiais ou profundas e, como nas feridas perfurantes, recebem o
nome de cavitárias ao atingirem as cavidades serosas do corpo.
G. Escoriações. Ocorrem quando a lesão surge de forma tangencial na superfície cutânea,
com arrancamento da pele. Um exemplo comum seria o de uma queda com deslizamento
sobre uma superfície irregular, como no asfalto.
H. Equimoses e hematomas. Nas equimoses não ocorre solução de continuidade da pele,
porém os capilares se rompem, proporcionando um extravasamento de sangue para os
tecidos.
O hematoma é formado quando o sangue que se extravasa pelo processo descrito forma
uma cavidade.
I. Bossas sangüíneas. São hematomas que vêm a constituir uma saliência na superfície da
pele. São freqüentes, por exemplo, no couro cabeludo.
VI. Tratamento
Uma anamnese sucinta é realizada, procurando-se determinar a causa e as condições nas
quais ocorreram as lesões. É importante que seja feito um exame clínico geral objetivo,
observando-se as mucosas, a pulsação, a pressão arterial, as auscultas cardíaca e
respiratória, para que sejam descartados fatores complicantes em relação ao tratamento que
será estabelecido. Os passos no tratamento deverão obedecer à seguinte ordem:
A. Classificação da ferida. Verificamos há quanto tempo ocorreu o ferimento, se existe ou
não perda de substância, se há penetração em cavidades, se há perda funcional ou se existem corpos estranhos. A realização de exames complementares, como radiografias ou
exames de laboratório, deverá ser feita na medida do necessário, avaliando-se caso a caso.
B. Realização da anti-sepsia. Ao redor da ferida, na maior parte dos casos, é suficiente a
limpeza com PVP-I a 10% (Povidine®), sendo este removido posteriormente com irrigação
por soro fisiológico.
O ferimento deve ser meticulosamente limpo, basicamente com soro fisiológico.
Compostos como o Soapex®, PVP-I, ou similares podem ser utilizados em casos de
ferimentos muito sujos (p. ex., por terra, ou nas moderduras de animais), desde que venham
a ser completamente removidos em seguida, por irrigação copiosa de soro fisiológico. A
água oxigenada é um bom agente para remoção de coágulos de ferimentos maiores, do tipo
laceração. Entretanto, deve ser evitado o seu contato íntimo com a superfície lesada, por ela
provocar necrose celular — seu uso deve ser limitado apenas ao redor do ferimento. Caso o
contato da água oxigenada com a lesão ocorra, deve-se irrigar novamente o ferimento com
soro fisiológico.
A irrigação vigorosa de uma ferida, utilizando-se soro fisiológico sob pressão em bolus,
injetado através de seringas de 35 a 65 ml de capacidade, e usando-se agulha calibre 19, é
um método bastante eficaz para diminuir a contagem bacteriana no interior do ferimento. O
volume médio de soro fisiológico injetado em uma lesão é de aproximadamente 150 a 250
ml. Esta técnica se tem mostrado bastante eficaz na prática, e gera pressões de 15 a 40 psi
(libras/polegada2). Em contraste, o uso de frascos plásticos de soro fisiológico, sobre os
quais é exercida pressão manual, conectados a agulha calibre 19, é capaz de gerar pressão
de 2,0 a 5,5 psi. É possível a conclusão de que esta última técnica (uso de frascos plásticos)
está desaconselhada quando há necessidade de irrigação de alta pressão.
C. Fazer anestesia. Este procedimento varia para cada tipo de ferida, ou seja, desde uma
simples infiltração de anestésico local até anestesia geral. O uso de lidocaína tamponada ou
de lidocaína aquecida torna o processo de anestesia local menos doloroso, podendo estas
técnicas serem usadas em feridas traumáticas sem aumentar os índices de infecção (ver
Cap. 1 para informações mais abrangentes acerca dos agentes anestésicos).
D. Hemostasia, exploração e desbridamento. Nas hemorragias, a conduta varia de acordo
com a gravidade da lesão e o local onde se encontra o paciente (via pública, rodovia,
hospital etc.). Fora do ambiente hospitalar, na presença de sangramento externo importante,
a primeira medida a ser tomada é a compressão da lesão. No hospital, em hemorragias
simples, bastam o pinçamento e a ligadura do vaso. A técnica de garroteamento com um
manguito pneumático é boa opção para lesões nos membros. Devemos lembrar, entretanto,
que neste caso o manguito não deve permanecer insuflado por mais de 30 minutos. O uso
de torniquetes feitos com madeira, cordas, ou tecidos, aplicado na raiz dos membros, é
contra-indicado pelo alto número de complicações vasculares que provoca, notadamente a
trombose venosa profunda.
A exploração da ferida é o passo seguinte após realização da hemostasia. Verifica-se até
que ponto houve lesão; a seguir, procede-se ao seu desbridamento, removendo partes
necrosadas e corpos estranhos.

E. Sutura da lesão. É iniciada pelos planos mais profundos. Para a musculatura, utilizam-se
fios absorvíveis do ácido poliglicólico (Dexon®) ou da poliglactina (Vicryl®), 2-0 ou 3-0.
Esta sutura é feita com pontos separados em X ou em U. Geralmente, não há necessidade
de se suturar separadamente a aponeurose em ferimentos do tipo encontrado
ambulatorialmente, sendo ela englobada na sutura muscular. Caso se faça a sutura da
aponeurose separadamente, poderão ser utilizados fios absorvíveis ou inabsorvíveis,
indistintamente (Fig. 2-1).
Na sutura do tecido celular subcutâneo, utilizam-se fios absorvíveis (categute simples ou a
poliglactina), 2-0, 3-0 ou 4-0, com pontos separados. A pele é suturada com fio
inabsorvível 3-0 a 6-0, dependendo da região (p. ex., face — utilizar fio 6-0,
monofilamentado) (Fig. 2-2).
Suturas contínuas ou mesmo intradérmicas devem ser evitadas nos casos de ferimentos
traumáticos. A sutura da pele não deve ser feita sob tensão. Um outro cuidado é o de que
não devemos deixar os chamados “espaços mortos” durante a rafia dos planos profundos. A
Fig. 2-3 mostra um tipo de sutura intradérmica.
A Fig. 2-4 mostra uma sutura de pele em chuleio contínuo (esta é uma técnica pouco usada,
de uso muito ocasional).
A sutura com pontos em U, como descrito acima, é mais usada em planos profundos; seu
uso em suturas de pele é restrito a casos em que uma maior hemostasia é necessária. A
sutura com pontos Donati é usada em feridas de pele, quando se deseja uma maior
aproximação das bordas da lesão (Fig. 2-5).
Feridas de pequena extensão e pouco profundas poderão ser apenas aproximadas com uso
de adesivo cirúrgico de tipo Micropore®, conforme mostra a Fig. 2-6.
A aproximação de espaços subcutâneos com pontos em excesso poderá favorecer a
infecção local. Caso a lesão do tecido subcutâneo seja superficial, este não deverá ser
suturado.
O uso de curativos tem a vantagem de prevenir a desidratação e a morte celular, acelerando
a angiogênese, aumentando a lise do tecido necrótico e potencializando a interação dos
fatores de crescimento com suas células-alvo; a manutenção de um meio úmido no curativo
se tem mostrado um poderoso aliado na cicatrização das feridas, sendo infundadas as
preocupações de que a umidade favoreceria a ocorrência de infecção. A manutenção de um
meio seco no local do ferimento não apresenta vantagens. Curativos hidrocolóides
(Comfeel®; Duoderm®) são usados com vantagens em áreas com grandes perdas de
substâncias, propiciando uma melhor cicatrização por segunda intenção.
Em relação a pomadas antibióticas tópicas, seu uso é discutido.
Ferimentos simples suturados podem ser limpos com água e sabão durante o banho, 24
horas após a sutura da lesão, sem qualquer risco de aumento da taxa de infecção.

VII. Lesões Específicas
A. Mordeduras (de cão, humanas etc.). Em princípio, não devem ser suturadas, por serem
ferimentos potencialmente contaminados; entretanto, nos casos de grandes lacerações, e
dependendo do local acometido, após anti-sepsia e desbridamento rigorosos, podem ser
necessários alguns pontos para aproximação das bordas. A cobertura antibiótica é
obrigatória em todos os casos de mordeduras.
Naquelas lesões muito profundas, atingindo até o plano muscular, com esgarçamento
tecidual, a conduta correta é aproximar os planos profundos com fios absorvíveis, os quais,
por serem degradados, não mantêm um estado infeccioso local (diferentemente dos fios
inabsorvíveis), deixando-se a pele sem sutura.
B. Ferimentos por arma de fogo. São comuns os ferimentos à bala que atingem somente
partes moles (p. ex., face lateral da coxa). A decisão de se retirar o projétil deve ser
avaliada em cada caso, levando-se em consideração, principalmente, sua profundidade, a
proximidade de estruturas nobres, o risco de infecção e se sua presença está levando ou não
a algum prejuízo funcional.
Caso haja apenas um orifício (no caso, o de entrada), este não deve ser suturado,
procurando-se lavar bem o interior do ferimento. No caso de dois orifícios (entrada e saída),
um deles poderá, se assim o médico desejar, ser suturado após a limpeza. A cobertura
antibiótica em ferimentos por arma de fogo é discutível. A bala, em si, é estéril, devido ao
seu calor, porém pode levar para o interior da ferida corpos estranhos, como couro,
fragmentos de roupas etc., e que podem ser de difícil remoção; nestes casos, indica-se
antibioticoterapia.
C. Lesões por pregos. São lesões perfurantes encontradas em ambulatórios de urgências
com uma certa freqüência, sendo de maior gravidade as produzidas por pregos
enferrujados. A importância desse tipo de ferida decorre da possibilidade de, em indivíduos
não-imunizados, ou com desbridamento local malfeito, ela levar ao tétano. As lesões por
pregos devem ser desbridadas sob anestesia e deixadas abertas. Deve-se enfatizar que uma
limpeza superficial, sem desbridamento, expõe o paciente ao risco de contrair tétano.
VIII. Complicações.
As complicações mais comuns das feridas ambulatoriais são: má exploração ou
desbridamento; contaminação do instrumental usado ou do próprio profissional; presença
de espaço morto e sua decorrente contaminação; má ligadura de vasos sangüíneos com
formação de hematomas e possível contaminação; sutura da pele sob tensão, formando
áreas de isquemia com posterior deiscência da sutura; fatores ligados ao próprio tipo de
ferimento (lacerações extremas, contaminação grosseira), que, apesar de um tratamento
muito bem feito, pode não apresentar o melhor resultado desejável; fatores ligados ao
próprio paciente ou ao uso de medicamentos, tais como diabetes, isquemia da região
afetada (p. ex., arteriosclerose nos idosos), uso de corticosteróides, deficiência de vitamina C e mesmo fatores relacionados a baixas condições de higiene e tratamento inadequado da
lesão.
Na maioria das complicações, esta é de tipo infeccioso, com formação de abscesso,
seguindo-se deiscência da sutura. O tratamento requer drenagem dos abscessos,
antibioticoterapia, curativos e acompanhamento médico. Nos curativos de feridas
infectadas, deverão ser sempre priorizados o desbridamento e a irrigação copiosa das lesões
com soro fisiológico. Curativos específicos deverão ser usados em cada caso, dependendo
do tipo da lesão. A utilização de açúcar ou mesmo de mel, em algumas situações
específicas, poderá ser útil, uma vez que esses produtos têm propriedades antimicrobianas,
inibindo o crescimento de bactérias gram-negativas e gram-positivas.
IX. Infecções Cirúrgicas em Pacientes Traumatizados.
Qualquer infecção depende fundamentalmente de dois fatores: da natureza do agente
invasor e dos mecanismos de defesa do hospedeiro. Podem-se acrescentar dois outros
fatores: os ligados ao próprio tipo de ferimento e aqueles ligados ao atendimento médico
prestado. De acordo com o grau de contaminação, as feridas podem ser classificadas da
seguinte maneira:
A. Feridas limpas. São produzidas exclusivamente em ambiente cirúrgico. Verifica-se
ausência de trauma acidental, ausência de inflamação, técnica cirúrgica asséptica correta,
observando-se que, durante o ato operatório, não foram abertos os sistemas respiratório,
alimentar e geniturinário.
B. Feridas limpas-contaminadas. São freqüentemente encontradas em ambulatórios de
pronto-socorro — um exemplo típico é o de uma ferida incisa produzida por faca de
cozinha. Nela não existe contaminação grosseira.
C. Feridas contaminadas. São aquelas em que já se observa algum tipo de reação
inflamatória mais importante, ou, ainda, em que tenham decorrido mais de seis horas após o
trauma. Também entram neste grupo feridas em que tenha havido contato com terra ou com
material fecal, as mordeduras e as feridas nas quais um desbridamento completo não foi
conseguido.
D. Feridas infectadas. São aquelas nas quais se observa a presença de pus no seu interior,
macroscopicamente, ou que apresentam demasiados sinais de infecção.
A importância desta classificação está na indicação de antibioticoterapia, pois, de rotina,
prescrevem-se antibióticos (esquema para tratamento) para as feridas contaminadas e
infectadas. Nos casos de feridas limpas e limpas-contaminadas, administram-se antibióticos
somente nos seguintes casos: comprometimento circulatório no local do ferimento (p. ex.,
lesão em membro inferior de portador de microangiopatia diabética); baixa resistência do
paciente (por doença debilitante crônica ou por uso de drogas); ferimento em junção
mucocutânea; ferimentos da mão em geral; paciente com hipotensão ou choque
prolongado; feridas perineais ou em área genital.

Ao se indicar um antibiótico em caso de ferimento contaminado ou infectado, não se está
pensando em profilaxia, e sim em tratamento, já que temos a certeza da presença de
bactérias no interior da lesão.
Nunca é demais lembrar que um antibiótico, por mais potente e de amplo espectro que seja,
não substitui um tratamento malfeito da ferida.
X. Profilaxia do Tétano.
O tétano é causado pela toxina tetânica, secretada pelo organismo Clostridium tetani. A
infecção é geralmente pequena e localizada, sendo a neurotoxina a responsável pelos
sintomas da doença. Dois são os mecanismos pelos quais ocorre a disseminação da toxina:
o primeiro, através de vasos sangüíneos e linfáticos, e o segundo, através dos espaços
perineurais dos troncos nervosos, até o sistema nervoso central.
O C. tetani é um anaeróbio que requer um baixo potencial local de oxirredução, a fim de
que seus esporos possam germinar. Assim, a mera presença do C. tetani ou de seus esporos
em uma ferida não quer dizer que a doença irá ocorrer. Uma infecção bacteriana no
ferimento, por exemplo, pode levar a uma baixa do potencial de oxirredução local, surgindo
então a doença. Uma vez os organismos iniciem a sua multiplicação, eles produzirão a
exotoxina e poderão manter as condições necessárias para a multiplicação continuada. O
período de incubação do tétano varia de 48 horas a vários meses, sendo a gravidade da
doença inversamente proporcional ao período de incubação. A maioria dos casos tem este
período compreendendo a faixa de uma a duas semanas.
Os ferimentos onde o tétano surge são dos mais variados tipos possíveis. Por vezes,
ferimentos simples são negligenciados, e deles surge a doença. Outras vezes, o foco pode
estar em uma simples extração dentária, ou em uma úlcera varicosa crônica de membro
inferior.
São os seguintes os princípios usados na prevenção do tétano: (a) desbridamento da lesão;
(b) uso de toxóide tetânico (imunização ativa); (c) uso de antitoxina (imunização passiva) e
(d) antibioticoterapia.
O Colégio Americano de Cirurgiões fornece algumas orientações para os ferimentos
sujeitos ao tétano:
A. Princípios gerais. Cabe ao médico determinar a profilaxia adequada para cada paciente.
1. Cuidados meticulosos com a ferida são indispensáveis, com remoção de tecido
desvitalizado e corpos estranhos.
2. Todo paciente com uma ferida deve receber toxóide tetânico adsorvido por via
intramuscular no momento da lesão (como uma dose imunizante inicial ou como reforço
para imunização prévia), a menos que tenha recebido um reforço ou tenha completado sua
série inicial de imunizações nos últimos 12 meses.

3. Deve-se pensar na necessidade de imunização passiva com imunoglobulina humana
(homóloga), levando-se em consideração as características da ferida, as condições sob as
quais ela ocorreu e o estado prévio de imunização ativa do paciente.
4. Todo paciente com ferida deve receber um registro por escrito da imunização realizada,
deve ser instruído a portá-lo todo o tempo e, quando indicado, completar a imunização
ativa. Para uma profilaxia exata do tétano, é necessária uma anamnese precisa e
imediatamente disponível em relação à imunização ativa prévia.
5. A imunização básica com toxóide adsorvido exige três injeções. Está indicado um
reforço do toxóide adsorvido 10 anos após a terceira injeção ou 10 anos após um reforço de
ferida interveniente.
B. Medidas específicas para pacientes com feridas
1. Indivíduos previamente imunizados
a. Quando o paciente foi ativamente imunizado dentro dos últimos 10 anos:
(1) Para a maioria, administrar 0,5 ml de toxóide tetânico adsorvido como reforço, a menos
que exista a certeza de que o paciente recebeu um reforço nos últimos 12 meses.
(2) Naqueles com feridas graves, negligenciadas ou antigas (mais de 24 horas), propensas
ao tétano, administrar 0,5 ml do toxóide adsorvido, a menos que haja certeza de que foi
fornecido um reforço nos últimos seis meses.
b. Quando o paciente tiver sido ativamente imunizado há mais de 10 anos, não tendo
recebido qualquer reforço no período seguinte:
(1) Na maioria dos casos, administrar 0,5 ml do toxóide tetânico adsorvido.
(2) Naqueles com feridas graves, negligenciadas ou antigas (mais de 24 horas), propensas
ao tétano:
(a) Administrar 0,5 ml do toxóide tetânico adsorvido.
(b) Administrar 250-500 unidades de imunoglobulina tetânica (humana), IM
(Tetanobulin®; Tetaglobuline®). Utilizar seringas, agulhas e locais diferentes.
(c) Considerar a administração de oxitetraciclina ou penicilina.
2. Indivíduos não-imunizados anteriormente
a. Nas feridas pequenas, limpas, nas quais o tétano é extremamente improvável, administrar
0,5 ml do toxóide tetânico adsorvido (dose imunizante inicial).
b. Para todas as outras feridas: (1) Administrar 0,5 ml do toxóide tetânico adsorvido (dose imunizante inicial).
(2) Administrar 250-500 U de imunoglobulina tetânica humana.
(3) Considerar a administração de oxitetraciclina ou de penicilina.
As seguintes considerações podem ser tecidas acerca das condutas acima:
Para crianças, a dose de imunoglobulina humana é de 4-5 U/kg de peso corpóreo, até um
total de 100-200 U.
No caso de não estar disponível a imunoglobulina humana, o uso da imunização passiva
com antitoxina tetânica eqüina deve ser considerado, caso o paciente não seja sensível a ela,
na dose de 5.000-10.000 U IM; somente se a possibilidade de tétano ultrapassar o perigo da
reação à antitoxina tetânica heteróloga, ela deve ser utilizada. Caso o paciente seja sensível
à antitoxina heteróloga, esta não deverá ser administrada. Não deve ser tentada a
dessensibilização, pois esta não tem valor.
A imunização ativa de pacientes com mais de 7 anos é obtida com uma dose inicial de
toxóide adsorvido por fosfato de alumínio — 0,5 ml por via intramuscular. Uma segunda
dose é administrada 4-6 semanas após a primeira, e uma terceira injeção é feita 6-12 meses
depois.
A antibioticoterapia com penicilina é eficaz contra as células vegetativas do C. tetani. Podese
empregar a oxitetraciclina quando o paciente é alérgico à penicilina. O antibiótico deve
ser administrado nas três primeiras horas após o ferimento.
XI. Escolha de Antibióticos em Pacientes Traumatizados.
Considerando as indicações expostas anteriormente neste capítulo, passa-se, nos casos
indicados, à escolha de um agente antimicrobiano. Sempre ocorre a dúvida do melhor
agente a ser prescrito. A não ser nos casos de infecção já instalada, causada por
microrganismo específico, a escolha deve ser por um agente de largo espectro, com rápido
e eficaz poder de ação, e de custo acessível para o paciente. Desse modo, a escolha recai
mais freqüentemente na penicilina ou em um de seus derivados semi-sintéticos.
Em relação à penicilina oral, esta é mais comumente usada na forma de penicilina V (Penve-
oral®), administrando-se um comprimido de 500.000 UI a cada seis horas, no adulto,
por um período de 7-10 dias. Apesar de sua absorção no trato gastrointestinal ser algo irregular, é uma escolha simples e barata de antibioticoterapia, ideal para casos mais
simples.
Na opção de se utilizar penicilina parenteral, aplica-se um frasco de penicilina G benzatina
de 1.200.000 UI (Benzetacil®), IM, aplicando-se, no outro braço ou glúteo, um frasco de
Despacilina® de 400.000 UI (que contém 300.000 UI de penicilina G procaína e 100.000
UI de penicilina G potássica), também IM. Isto é feito para que ocorra nível sangüíneo
eficaz nas primeiras horas, necessário principalmente nos casos em que se suspeita de
contaminação pelo bacilo do tétano em paciente não-imunizado. Caso o paciente seja
alérgico à penicilina ou a seus derivados semi-sintéticos, ficam como opções as
cefalosporinas (podem apresentar reação cruzada), a oxitetraciclina, o cloranfenicol, a
eritromicina, a lincomicina e a associação sulfametoxazol + trimetoprim (Bactrim®).

FONTE: ERAZO - Manual de Urgências em Pronto-Socorro 6ª Edição - 2006.