ENFERMAGEM, CIÊNCIAS E SAÚDE

Gerson de Souza Santos - Bacharel em Enfermagem, Especialista em Saúde da Família, Mestrado em Enfermagem, Doutorado em Ciências da Saúde - Universidade Federal de São Paulo. Atualmente professor do Curso de Medicina do Centro Universitário Ages - Irecê-Ba.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

DOENÇAS HEPÁTICAS

Epidemiologia

As doenças hepáticas são causas muito comuns de morbilidade e de mortalidade. O consumo crónico de álcool é, actualmente, a causa mais frequente das doenças hepáticas e contribui para a maioria dos cerca de 100 mil casos estimados de mortes anuais, nos Estados Unidos. O vírus da hepatite B é uma das infecções virais crónicas mais comuns no Mundo, com cerca de 170 milhões de pessoas infectadas. Nos países desenvolvidos, é relativamente pouco comum, com uma prevalência de 1 para 550 pessoas no Reino Unido e nos Estados Unidos.

Cerca de 300 milhões de pessoas em todo o Mundo têm infecção crónica de hepatite C. Ao contrário do vírus da hepatite B, a infecção da hepatite C não está essencialmente confinada aos países em desenvolvimento, com 0,3 a 0,7 % da população do Reino Unido infectada.


O carcinoma hepato-celular primário é um dos tumores mais comuns no Mundo. Tem especial prevalência nas regiões da Ásia e da África Sub-Sariana, devido à frequência das infecções crónicas provocadas pelos vírus da hepatite B e C.

Causas e Factores de Risco

Classificação comum
• Hepatocelular: Predominância de características de lesões hepáticas, com inflamação e necrose (por exemplo nas hepatites virais, na doença hepática alcoólica, na cirrose)
• Colestática (obstructiva): Predominância de características de inibição do fluxo da bílis (por exemplo, pedras na visícula biliar, obstrução maligna, cirrose biliar primária, muitas doenças hepáticas induzidas por fármacos ou químicos)
As causas mais frequentes das doenças hepáticas nos cuidados de saúde primários são:

Hepatite viral

A hepatite viral é classificada como hepatite aguda (inflamação do fígado auto-limitada < 6 meses) e hepatite crónica (inflamação hepática > 6 meses).

Transmissão

Hepatite A
Primariamente feco-oral
Hepatite B
• Exposição percutânea (agulhas), incluindo os acidentes nos cuidados de saúde
• Exposição a produtos sanguíneos
• Contacto sexual
• Exposição perinatal

Hepatite C

• Exposição percutânea (agulhas), incluindo os acidentes nos cuidados de saúde (taxa de infecção 4-10 %)
• Exposição a produtos sanguíneos (contribuem em 85% para as hepatites associadas a transfusões)
• Transplante de órgãos
• Transmissão vertical de mãe para filho
• Não existe factor de risco parental em 40% dos casos
• A transmissão via sexual é menos comum
Virus Factores de risco Características
Hepatite A vírus (HAV) Vírus de RNA Viagens a países em desenvolvimento
Contacto doméstico próximo
Consumo de moluscos ao natural
Causa mais hepatites do que todos os outros vírus hepatotróficos em conjunto
Leva frequentemente a formas sub-clínicas da doença
A Hepatite A é normalmente auto-limitada
Hepatite B vírus (HBV) DNA Vírus Toxicodependência
Homossexuais masculinos
Diálise crónica
Viagem de zonas endémicas
Profissionais da saúde
Principal causa de morte relacionada com cirrose e carcinoma hepato-celular, em todo o Mundo
10% desenvolvem um estado crónico de portadores e constituem uma fonte de infecção
Hepatite C Vírus (HCV)Vírus RNA Toxicodependência
Transfusões de sangue
Tatuagens
Profissionais da saúde
Pode ser transmitida por via sexual (baixa incidência)
Elevada taxa de mutação, logo não é facilmente neutralizado pela resposta imunitária do organismo
A infecção aguda é normalmente assintomática
75% desenvolvem doença crónica, 20% desenvolvem, eventualmente, cirrose
Vírus da hepatite D: co-infecta e necessita do HBV para se replicar
Vírus da hepatite E: Transmitido por via entérica, ocorre principalmente na Índia, Ásia, África e na América Central.

Doença hepática alcoólica
A ingestão crónica e em excesso de álcool é uma das principais causas da doença hepática no Mundo ocidental. Normalmente, os danos provocados pelo álcool no fígado compreendem três formas principais:
• Fígado gordo: presente em 90% de consumidores frequentes e dos alcoólicos.
• Hepatite alcoólica: presente em 15% dos alcoólicos
• Cirrose: presente em mais de 50% das hepatites alcoólicas comprovadas.
Factores de risco para as doenças hepáticas alcoólicas
Quantidade
Homens: 40-80 g/dia (mulheres: 20-40 g/dia) leva a fígado gordo; 80-120 g/dia (mulheres: 60-100 g/dia), durante 10-20 anos, causa hepatite ou cirrose; apenas 15% dos alcoólicos desenvolvem a doença hepática alcoólica.
Sexo:
As mulheres são mais susceptíveis à doença hepática alcoólica
Hepatite C:
A existência de infecção está associada ao progresso mais rápido da doença
Factores Genéticos:
Álcool desidrogenase. Acetaldeído desidrogenase. Citocromo P4502E1.
Má Nutrição:
A hepatotoxicidade alcoólica não exige má nutrição
Cirrose
A cirrose está associada a um conjunto de manifestações clínicas. As características patológicas cardinais reflectem danos crónicos e irreversíveis do parênquima hepático e inclui fibrose extensa associada à formação de nódulos regenerativos.
• Características clínicas: icterícia, edema, coagulopatia, hipertensão portal, ascite, encefalopatia hepática
• Classificação/etiologia: alcoólica, criptogénica e pós-hepatite, biliar, cardíaca, metabólica, herdada e relacionada com drogas.
Carcinoma hepato-celular O carcinoma hepato-celular primário é um dos tumores mais comuns a nível mundial. Tem uma prevalência especial nas regiões da Ásia e da África Sub-sahariana. É mais comum nos homens do que nas mulheres e normalmente surge num fígado já com cirrose. A doença hepática crónica de qualquer tipo predispõe para o desenvolvimento do carcinoma hepato-celular, incluindo a infecção crónica com HBV e HCV, doença hepática alcoólica.

Pedras na vesícula biliar

As pedras na vesícula biliar são relativamente prevalentes na maioria dos países ocidentais, nomeadamente colesterol e pedras mistas. O sintoma mais específico e característico é a cólica biliar do epigastro ou do quadrante superior direito.
Os factores de risco associados correspondem à regra dos seis: Mulher, Pele Clara, Gordura, Quarenta Anos, Fecunda, Família com antecedentes da doença.

História natural de uma pedra da vesícula silenciosa: baixo risco acumulado de desenvolvimento de complicações: 10 % até 5 anos, 15% até 10 anos, 18% até 15 anos

As complicações são comuns em pacientes que tiveram cólica biliar.

Colecistite aguda

Inflamação aguda da parede da vesícula biliar, que surge no seguimento de obstrução dos ductos císticos por uma pedra. A inflamação bacteriana também pode ocorrer em 50 a 85% dos pacientes. A Colecistite aguda começa frequentemente com uma crise de cólicas biliares que piora progressivamente. Sintomas como o início súbito de sensibilidade do quadrante superior direito, febre e leucocitose, são muito sugestivos.

Diagnóstico

Sintomas constitucionais
•Fadiga: Típica após actividade e rara de manhã depois do descanso
•Náuseas: pode ser provocada pelo cheiro da comida ou pela ingestão de alimentos gordos
•Perda de apetite: normal em doenças hepáticas agudas

Sintomas específicos do fígado

•Icterícia: sintoma cutâneo de doença hepática e talvés o marcador de gravidade mais fiável
•Urina escura, normalmente detectada antes de icterus escleral.
•Fezes claras: com colestase grave
•Comichão: ocorre precocemente no caso de icterícia obstrutiva e mais tardiamente na doença hepato-celular (doenças hepáticas agudas); na doença hepática crónica, tipicamente na forma colestática (por exemplo na cirrose biliar primária, colangite esclerosa), ocorre com frequência antes do aparecimento de icterícia
•Dor abdominal: desconforto ou dor no quadrante superior direito, sensibilidade sobre a zona do fígado - a dor intensa é típica dos casos de doença da vesícula biliar

Avaliação dos factores de risco

Perguntas: suspeita de problemas alcoólicos
Já alguma vez sentiu que deve cortar nas bebidas?
Alguma vez o aborreceram por causa da bebida?
Alguma vez se sentiu culpado ou mal por causa de beber?
Alguma vez tomou uma bebida logo de manhã para acalmar os nervos ou para se livrar de uma ressaca?
Exame físico Em muitos pacientes o exame físico é normal a menos que a doença seja aguda, grave ou avançada. No entanto, pode revelar a primeira evidência de insuficiência hepática, hipertensão portal e descompensação hepática.
•Icterícia
•Aranha vascular
•Hepatomegália
•Esplenomegália
•Sinais de doença hepática avançada: perda de massa muscular, perda de peso, hapatomegalia, nódoas negras, ascite, edema com ou sem ascite, ginecomastia, efeminização
•Insuficiência hepática: alteração dos padrões de sono, mudança de personalidade, irritabilidade e preguiça mental; posteriormente: confusão, desorientação, estupor e eventualmente coma
Procedimentos de diagnóstico

Análises ao fígado

O diagnóstico das doenças hepáticas é muito auxiliado pela existência de testes de diagnóstico da função e lesão hepáticas, precisos e sensíveis. Um painel hepático típico de testes para a avaliação inicial inclui:
•Transaminase Glutâmica-oxaloacética (GOT); sin.: Aspartato aminotransferase (AST)
•Transaminase Glutâmica-pirúvica (GPT); sin.: Alanina aminotransferase (ALT)
•Fosfatase alcalina (ALP)
•γ-Glutamiltransferase (GGT)
•Bilirubina sérica total e directa
•Proteína, albumina
•Tempo de Protrombina (PT)
Testes iniciais para pacientes com hepatites
Hepatite aguda
•HBsAg - representa a infecção HBV, se presente
•IgM anti-HAV - diagnóstico de hepatite A aguda, se presente
•IgM anti HBc – infecção HVB considerada aguda, se presente (mesmo na ausência de HbsAg)
•anti-HCV –apoia o diagnostico de hepatite C, se detectável

Hepatite crónica

•HbsAg – representa infecção por HBV, se presente
•anti-HCV – quando detectável, suporta um diagnóstico de hepatite C (determinada por teste ao HCV RNA)

Diagnóstico por imagiologia

A ecografia é o método de diagnóstico aplicado com mais frequência para a detecção de doenças hepatobiliares nos cuidados de saúde primários. Consegue detectar a dilatação dos ductos biliares, fígado gordo, cirrose e é uma opção de primeira linha para pacientes com icterícia obstrutiva.

Tomografia computorizada (TAC) e ressonância magnética (RM):

Identificação e avaliação de massa hepática, estado de tumores hepáticos, avaliação pré-operatória.
Colangiopancreatografia Retrógrada Endoscópica (ERCP): procedimento de escolha para a visualização do tronco biliar; fornece opções terapêuticas, como por exemplo a extracção de pedras, colocação de cateteres nasobiliares e de stents biliares.

Biopsia do Fígado

A biopsia do fígado continua a ser o procedimento padrão mais indicado para a avaliação de pacientes com doença hepática, especialmente em pacientes com doença hepática crónica.

Prevenção

A prevenção de doenças hepáticas consiste principalmente em evitar os factores de risco das doenças hepáticas ou na profilaxia por imunização:

Modificação de factores de risco

• Abstinência ou redução do consumo de álcool (doença hepática alcoólica, deterioração de outras doenças hepáticas)
• Cuidados em relação a contactos íntimos e utilização de preservativos quando sexualmente activo (HBV, HCV, HDV) – o vírus da hepatite B também está presente na saliva e, ao contrário do HIV, também se pode transmitir através deste fluído
• Cuidados de higiene do viajante (HAV)
• Evitar a exposição acidental ao sangue e a agulhas (HBV, HCV) – a probabilidade de infecção com HBV através de agulhas é aproximadamente 500 vezes maior do que a de infecção com HIV
• Evitar a partilha de seringas em caso de abuso de drogas (HBV, HCV)
• Evitar drogas potencialmente hepato-tóxicas para a prevenção do desenvolvimento da doença hepática

Medicamentos potencialmente hepato-tóxicos

Analgésicos
• AINE’s (evitar em pacientes com doença hepática)
• Paracetamol (> 4 grama em 24 horas nos adultos; limitar a < 2 grama na doença hepática crónica)
• Medicação para a diabetes: Acarbose, Pioglitazona, Sulfonilureias
• Medicação para baixar os lípidos: Estatinas, Ácido Nicotínico

Antibióticos

• Amoxicilina / Clavulanate, Eritromicina, Isoniazida, Nitrofurantoína, Tetraciclina
• Medicação Anti-fúngica: Fluconazole, Itraconazole, Cetoconazole
• Medicação Anti-convulções: Fenitoína
• Ácido Valproico
Medicação Psicotrópica
• Bupropiona, Antidepressivos
• Tricíclicos, Chlorpromazina
• Medicação Hormonal: Tamoxifeno e Testosterona
• Medicações mistas: Halotano e Metotrexato
• Etretinato
É ainda importante evitar-se suplementos potencialmente hepato-tóxicos para a prevenção da evolução da doença hepática, como por exemplo alguns cogumelos (espécie amanita), equinácia, gentiana, ferro, visco (ou erva-de-passarinho norte americana), extracto do fruto de sene, raíz de valeriana, vitamina A. Instituir uma dieta de baixo teor de gorduras e evitar agentes químicos potencialmente hepato-tóxicos, como por exemplo aerossóis de limpeza, insecticidas, são outras das medidas para evitar a evolução da doença.
Vacinação
• Vacina da hepatite A - Indicada a viajantes para regiões com hepatite A endémica, utilizadores de drogas ilícitas, homossexuais masculinos, pacientes com doenças hepáticas crónicas ou com deficiências de factores de coagulação.
Anti-corpos protectores à 4ª semana em 98-100% dos pacientes
A protecção dura pelo menos 10 anos depois dos reforços
• Vacina da hepatite B - Indicada para todos os profissionais da saúde, pacientes em hemodiálise, pacientes que necessitem de transfusões de sangue frequentes, pessoal e residentes de casas de acolhimento para deficientes, homossexuais masculinos e os seus parceiros sexuais, toxicodependentes, parceiros sexuais de portadores de HBsAg crónico, pacientes com doença hepática crónica.
A imunidade pode durar toda a vida, no entanto, os reforços são efectuados em função do padrão titulação.

Nota: Em 90% das transmissões do vírus da hepatite B de mãe infectada para o bebé, a situação pode ser prevenida através da vacinação do bebé.

Monitorização

Todos os pacientes com doença hepática necessitam de um seguimento cuidadoso, em especial aqueles que sofrem de doença hepática crónica. A monitorização regular é essencial para que se possa dar conta de qualquer progressão da doença.

Aspectos gerais

História Clínica
• Avaliação regular dos factores de risco ou hábitos que possam fazer com que a doença piore: por exemplo o consumo de álcool, medicação (incluindo compostos de ervanária e contraceptivos), actividade sexual
• Perguntar por sintomas recentes que revelem evolução negativa: por exemplo a fadiga, náuseas, icterícia, comichão

Exame físico

• Procure sintomas de doença hepática (avançada): por exemplo aranha em aranha (ou vascular) hepato-esplenomegália, perda de massa muscular, perda de peso, nódoas negras, ascite, edema, ginecomastia, efeminização

Análises ao fígado

•Verificar a função hepática com regularidade

O painel de testes ao fígado deverá incluir
:
- GOT, GPT
- Bilirrubina total
- ALP, possivelmente GGT

Pacientes com hepatite

- Ver os pacientes com hepatite viral aguda com intervalos de 1 a 2 semanas até os níveis de transaminases estarem normais (normalmente leva 4 a 12 semanas).
- Nas hepatites B e C agudas, a serologia deve ser repetida após 6 meses, mesmo se os testes da função hepática estiverem normais. No caso de infecção crónica, se não for tratada, os pacientes devem ser reavaliados regularmente com intervalos de um ano ou menos, se possível por um clínico especialista destas doenças.
- Se for um caso de doença crónica, deve testar a função hepática com regularidade e fazer uma estimativa do peso da doença e da sua actividade, respectivamente.
- Monitorizar a terapia da hepatite pela avaliação da função hepática e - no caso de hepatites virais - monitorizar a replicação do vírus.
- Identificar outras pessoas em risco de infecção com hepatite viral, para que possam ser aconselhadas e referenciadas para acompanhamento médico.

Monitorização da hepato-toxicidade de doença hepática crónica

Cada paciente com doença hepática crónica deverá ser monitorizado quando receber um fármaco potencialmente hepato-tóxico
Testes de laboratório: valor base, aproximadamente cada 1-2 semanas no primeiro mês, todos os meses nos próximos três meses, todos os trimestres até a medicação parar.
Parar a medicação se a função hepática aumentar nos testes > 2x acima do limite de referência superior ou se se desenvolverem sintomas relacionados com o fígado.

Monitorização de progressão e/ou complicações das doenças hepáticas crónica

- Cirrose: um marcador frequente da presença de cirrose num paciente que esteja a ser seguido por causa de doença hepática crónica é uma diminuição progressiva na contagem de plaquetas. Use ecografia para imagiologia no seu consultório.

- Hipertensão portal: revela-se normalmente por sintomas clínicos como a esplenomegalia, ascite, encefalopatia. As varizes esofágicas são melhor documentadas por esofagoscopia.


- Peritonite bacteriana espontânea: os pacientes com ascite e cirrose podem desenvolver uma peritonite bacteriana aguda sem uma fonte primária óbvia de infecção.


- Carcinoma hepato-celular: dor abdominal com a detecção de uma massa abdominal constiuem suspeita de carcinoma hepato-celular. Verifique a fosfatase alcalina e a α-fetoprotein, que normalmentes estão elevadas. O diagnóstico de imagiologia nos cuidados de saúde primários é feito por ecografia.

FONTE: http://www.roche.pt/portugal