Conceitos fundamentais de psicopatologia
A aplicação precisa da psicopatologia descritiva na prática da psiquiatria é necessária, no mínimo, pelas três razões seguintes: 1. A psicopatologia descritiva é a ferramenta profissional fundamental do psiquiatra; ela é possivelmente, a única ferramenta diagnóstica exclusiva do psiquiatra. 2. A psicopatologia descritiva diz respeito mais do que à simples realização de uma entrevista clínica com o paciente, ou, até mesmo, ter que escutá-lo, embora deva envolver ambos, necessariamente. 3. A psicopatologia descritiva tem utilidade e aplicação clínica.
É claro que, para a prática racional da psiquiatria, é necessário o conhecimento de neurociências básicas; o conhecimento factual apropriado da psicologia, da sociologia e da antropologia social também é necessário. Com estes, há uma necessidade de um conhecimento operacional abrangente de medicina geral, especialmente neurologia e endocrinologia. Esta poderia ser considerada a base mínima de conhecimentos, essencial para a prática da psiquiatria.
As bases acadêmicas fundamentais de psiquiatria, no entanto, não são as descritas aqui, e sim a epidemiologia psiquiátrica e a psicopatologia descritiva. A epidemiologia é o estudo da distribuição da doença ou transtorno em uma população definida; na psiquiatria, portanto, ela refere-se ao conhecimento da incidência e da prevalência de diferentes condições psiquiátricas dentro de distintos grupos de pessoas. A psicopatologia descritiva, como ferramenta exclusiva do psiquiatra, pode ser comparada à anamnese e ao exame médico, ferramentas exclusivas do profissional médico. O psiquiatra acrescenta a essas ferramentas gerais da prática médica, de anamnese e exame, os conhecimentos únicos adicionais da psicopatologia descritiva.
O que é psicopatologia?
A psicopatologia é o estudo sistemático do comportamento, da cognição e da experiência anormais; o estudo dos produtos de uma mente com um transtorno mental. Isto inclui as psicopatologias explicativas, nas quais existem supostas explicações, de acordo com conceitos teóricos (p. ex., a partir de uma base psicodinâmica, comportamental ou existencial, e assim por diante), e a psicopatologia descritiva, que consiste da descrição e da categorização precisas de experiências anormais , como informadas pelo paciente e observadas em seu comportamento (figura 1.1).
Figura 1.1 - As Psicopatologias.
A psicopatologia descritiva consiste, portanto de duas partes distintas: a observação do comportamento e a avaliação empática da experiência subjetiva. A observação acurada é extremamente importante e um exercício muito mais útil do que simplesmente contar os sintomas; às vezes o uso servil de listas de sintomas, para a verificação de sua presença ou ausência, tem impedido a observação clinica genuína. A objetividade é crucial, mas existe também a necessidade de observar-se mais do que apenas o comportamento.
A outra parte da psicopatologia descritiva - e a mais difícil - avalia a experiência subjetiva. Empatia, como termo psiquiátrico, significa literalmente "sentir-se como". Ela é usada ocasionalmente por certos profissionais que cuidam de pacientes como um sentimento caloroso e afável em relação às adversidades de outras pessoas. É louvável sentir-se desta maneira em relação às dificuldades de nossos pacientes, mas isto não é empatia, mas simpatia, que significa "sentir com". De certo modo, surpreende-nos saber que no grego moderno empatia significa "manter seus sentimentos internamente", que significa guardar rancor . Este não é, absolutamente, o sentido em que o termo é usado na psiquiatria!
Na psicopatologia descritiva o conceito de empatia é um instrumento clínico que precisa ser utilizado com habilidade para medir o estado subjetivo interno de outra pessoa usando a capacidade do próprio observador para a experiência emocional e cognitiva como um critério de medida. Isto é alcançado por um questionamento preciso, pleno de insight, persistente e informado, até que o médico seja capaz de oferecer um relato sobre a experiência subjetiva do paciente que este possa reconhecer como sendo realmente seu. Se a descrição do médico sobre a experiência interna do paciente não é reconhecida por este como sendo sua, o questionamento deve continuar até que a experiência interna seja reconhecidamente descrita. Ao longo de todo este processo, o sucesso depende da capacidade do médico como ser humano, de experimentar algo como a experiência interna de outra pessoa, o paciente; não se trata de uma avaliação que pode ser realizada por meio de um microfone ou computador. Ela depende absolutamente da capacidade compartilhada entre médico e paciente para a experiência e sentimentos humanos.
Fenomenologia e psicopatologia
Um dos métodos mais freqüentes de classificação de doença mental é pela categorização de experiências descritas por pessoas mentalmente doentes e da definição dos termos utilizados, tais como "depressão" ou "ansiedade". Para o progresso no prognóstico e no tratamento, tal classificação é essencial. Ao tentar entender as experiências subjetivas de uma pessoa que sofre, o terapeuta demonstra um envolvimento e o paciente provavelmente terá maior confiança no tratamento.
Os sintomas agregam-se em determinados padrões e podemos, portanto, falar de diferentes doenças mentais ou psiquiátricas. Os métodos precisos de diagnóstico ou a definição da natureza do problema continuam sendo importantes. Para que a nosologia psiquiátrica possa ser melhorada, é necessária uma observação acurada dos fenômenos com os quais nos confrontamos.
O que uma pessoa obviamente afetada por uma doença mental está realmente sentindo? De que forma suas próprias experiências assemelham-se ou diferem da experiência dos outros - tanto daqueles que estão bem quanto dos que estão doentes? É importante haver um esquema para organizar os fenômenos que ocorrem.
A psicopatologia refere-se a toda experiência, cognição e comportamento anormais. A psicopatologia descritiva evita explicações teóricas para eventos psicológicos. Ela descreve e categoriza a experiência anormal como relatada pelo paciente e observada pelo seu comportamento. Em seu contexto histórico, Berrios (1984) a descreve como um sistema cognitivo constituído por termos, suposições e regras para a sua aplicação - "a identificação de classes de atos mentais anormais". Fenomenologia é o estudo de eventos , psicológicos ou físicos, sem "enfeitá-los" com explicação de causa ou função. Quando usada em psiquiatria, a fenomenologia envolve a observação e categorização de eventos psíquicos anormais, as experiências internas do paciente e seu comportamento conseqüente. O terapeuta tenta observar e entender o evento ou fenômeno psíquico para que possa saber por ele mesmo, na medida do possível, como o paciente provavelmente se sente.
Como podemos usar a palavra observador com relação à experiência interna de outra pessoa? É exatamente aqui que o processo de empatia torna-se relevante. A psicopatologia descritiva, portanto, inclui aspectos subjetivos (fenomenologia) e objetivos (descrição do comportamento).
Preocupa-se com a variedade da experiência humana, mas limita deliberadamente seu âmbito àquilo que é clinicamente relevante; por exemplo, ela pode não dizer nada sobre a validade religiosa do que James (1902) chamou de "saintliness" (qualidade relativa ao indivíduo que leva uma vida pia, com pureza de um santo).
Como isso funciona na prática? A Sra. Jenkins reclama que é infeliz. É tarefa da psicologia descritiva tanto obter os pensamentos e ações da paciente sem tentar explicá-los quanto observar e descrever o comportamento da mesma - seus ombros caídos, o tenso retorcer e remexer de suas mãos. A fenomenologia exige uma descrição muito precisa de como exatamente ela sente-se internamente - "este horrível sentimento de não existir realmente" e "não ser capaz de sentir nenhuma emoção".
Alguns psiquiatras consideram a fenomenologia com desdém, vendo-a como um pedantismo arcaico, exageradamente minucioso, mas a avaliação diagnóstica dos sintomas é uma tarefa que o psiquiatra omite por conta própria e em prejuízo do paciente. O estudo da fenomenologia "afia" as ferramentas diagnósticas, aguça a perspicácia clínica e melhora a comunicação com o paciente. O paciente e suas queixas merecem nossa escrupulosa atenção. Se "o estudo adequado da humanidade diz respeito ao homem", o estudo correto da sua doença mental começa com a descrição de como ele pensa e sente-se internamente – “caos de pensamento e paixão, tudo confuso" (Pope,1688-1744).
Uma negligência desdenhosa da fenomenologia pode ter sérias repercussões para o cuidado do paciente. Oito pessoas foram enviadas separadamente para 12 unidades de internação em hospitais psiquiátricos americanos queixando-se que ouviam estas palavras sendo ditas em voz alta: "vazio, fundo, surdo" (Rosenhan, 1673). Em todos os casos, com exceção de um, foi diagnosticada esquizofrenia. Após a internação no hospital, eles não produziram sintomas psiquiátricos posteriores, agindo tão normalmente quanto podiam, respondendo a questões com sinceridade, exceto pelo fato de ocultarem seu nome e ocupação. A ética e o bom-senso do experimento podem certamente ser questionados, mas o que fica claro não é que os psiquiatras devem deixar de fazer um diagnóstico, mas que devem fazê-lo em uma base psicopatológica sólida. Nem Rosenhan e colaboradores e nem os psiquiatras deram qualquer informação sobre que sintomas poderiam ser considerados para fazer um diagnóstico de esquizofrenia ; isto requer um método baseado na psicopatologia (Wing, 1978). Com o uso adequado da psicopatologia fenomenológica esta falha de diagnóstico não teria ocorrido.
Jaspers (1963) escreveu: "A fenomenologia, apesar de ser uma das pedras fundamentais da psicopatologia, é ainda muito tosca". Um dos grandes problemas da utilização deste método é a natureza confusa da terminologia. Idéias quase idênticas podem receber diferentes nomes por pessoas de diferentes bases teóricas- por exemplo, a abundância de descrições acerca de como uma pessoa pode conceituar a si mesma: auto-imagem, percepção do corpo, catexia, etc.
Há uma confusão considerável a respeito do significado do termo fenomenologia. Berrios (1992) descreveu quatro significados em psiquiatria : "P1 refere-se ao seu uso clínico mais comum, como um mero sinônimo para ‘sinais e sintomas’ (como em psicopatologia fenomenológica); este é um uso que se degenerou e, portanto é conceitualmente desinteressante. P2 refere-se a um sentido pseudotécnico freqüentemente utilizado em dicionários e que alcança uma falsa unidade de significado ao simplesmente catalogar usos sucessivos em ordem cronológica; esta abordagem é equivocada, já que sugere linhas evolutivas falsas e deixa em aberto questões importantes relacionadas à história da fenomenologia. P3 refere-se ao uso idiossincrásico iniciado por Karl Jaspers que dedicou seus primeiros escritos clínicos à descrição de estados mentais de uma maneira que (de acordo com ele) era empática e teoricamente neutra. Finalmente, P4 refere-se a um sistema filosófico completo iniciado por Edmund Husserl e continuado por autores coletivamente incluídos no chamado "Movimento Fenomenológico". Dentre estes significados, este artigo estará voltado inteiramente para o significado jaspersiano de fenomenologia, o P3 de Berrios. Jaspers em seus escritos define a fenomenologia talvez 30 a 40 vezes, de maneiras sutilmente distintas, mas sempre implicando-a ao estudo da experiência subjetiva. Walker (1993) demonstrou, de um modo muito elegante, que, apesar de Jaspers considerar ter sido influenciado por Husserl e seu sistema de fenomenologia, tal não é realmente o caso, pois sua psicopatologia é mais por conceitos kantianos, tais como forma conteúdo.
A fenomenologia é um método empático que evidencia os sintomas, mas que não pode ser aprendida por meio de livro. Os pacientes são os melhores professores, mas é bom saber o que se está procurando, os aspectos práticos, clínicos, pelos quais o paciente descreve a si mesmo, seus sentimentos e seu mundo. O médico tenta interpretar a natureza da experiência do paciente – entendê-la suficientemente bem e senti-la tão intensamente a ponto de que o relato de seus achados permita o reconhecimento do paciente. O método fenomenológico em psiquiatria é inteiramente voltado para idéia de tornar a experiência do paciente compreensível (esta é uma palavra técnica em fenomenologia; no entanto, aqui queremos dizer "a capacidade de colocar-se no lugar do paciente"), de modo a permitir classificá-lo e tratá-lo.
"A barreira ao avanço da psiquiatria não reside na avareza ou no preconceito daqueles que decidem se um projeto de pesquisa submetido à apreciação deve viver ou morrer; nem tem sido a falta de habilidade daqueles que estão engajados em pesquisas psiquiátricas: ela reside na dificuldade inerente dos problemas” (Lewis, 1963). A maior dificuldade na fenomenologia não é assimilação de fatos obscuros ou acúmulo de epônimos estrangeiros, embora tais aspectos sejam difíceis. A maior dificuldade está na compreensão do método de investigação e na capacidade de usar novos conceitos. Na tentativa para evitar o obscuro e o óbvio, descrevemos alguns desses conceitos aos pares.
SAÚDE NORMAL
Algumas palavras são usadas comumente, mas de um modo inconsistente; portanto, apesar de sabermos o que pretendemos dizer com elas, somos incapazes de supor que outras pessoas as utilizam da mesma maneira. Duas dessas palavras são normal e saudável. Em uma discussão sobre a doença mental elas ocorrem tão freqüentemente que devem ser examinadas brevemente antes de uma excursão adicional à psicopatologia.
Saúde / Doença
A psicopatologia preocupa-se com a doença da mente. O que é doença, porém? Trata-se de um tema vasto, que tem sido discutido por filósofos, teólogos, administradores e advogados, assim como por médicos. Os profissionais que passam a maior parte do tempo de seu trabalho em meio à saúde e à doença raramente fazem esta pergunta, e com menos freqüência tentam respondê-la.
1 - A definição da Organização Mundial de Saúde afirma: "Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doença ou enfermidade" (1946). Se o total bem-estar é um requisito, talvez praticamente todos estejamos excluídos.
2 - A doença pode ser considerada em termos físicos, como na afirmação de Griesinger (1845), de que "doenças mentais são doenças do cérebro". Embora esta alegação ajuste-se aos estados psiquiátricos orgânicos e possa abranger a deficiência de aprendizagem (retardo mental), não é muito simples tentar incluir nesta definição todos os transtornos "neuróticos" e os psicóticos; por outro lado, de forma alguma os transtornos de personalidade não se encaixam aqui.
3 - De modo semelhante, as doenças podem ser descritas como aquelas condições que o médico trata. Ao definir isto Kräupl Taylor (1980) declarou: "Para ser paciente é necessário e suficiente a experiência vivida por uma pessoa ao sentir a necessidade de tratamento, ou, no seu meio, que deve receber tratamento". Doença mental torna-se, então, um termo para descrever os sintomas e a condição daquelas pessoas que são encaminhadas a um psiquiatra. Esta descrição tautológica de doença tem alguma vantagem prática, já que não impede que ferramentas terapêuticas sejam utilizadas com relação a um amplo espectro de problemas humanos. Ela apresenta, no entanto, a desvantagem de permitir que a sociedade escolha quem ela chamará de "doente mental", e, em um sistema social totalitário, o estado pode decidir quais indivíduos com desvios deverão ser considerados doentes (Bloch e Reddaway,1977).
4 - A doença pode ser considerada como uma variação estatística da norma, trazendo em si mesma desvantagem biológica. Isto foi formulado por Scadding (1967) para a doença física e desenvolvido para a doença psiquiátrica por Kendell (1975). Desvantagem biológica implica fertilidade reduzida e/ou vida mais curta. Este estado de desvantagem torna-se difícil de aplicar ao homem moderno, uma vez que ele aprendeu a controlar seu ambiente e sua reprodução de tal maneira que o próprio termo desvantagem biológica torna-se questionável. O que é uma vantagem biológica para o indivíduo pode ser uma desvantagem para a espécie, e vice-versa.
5 - A doença tem implicações legais. Por exemplo, as circunstâncias que resultam em doença podem dar direito à compensação legal; se o comportamento resulta da doença, isto pode reduzir a pena. Da mesma maneira, a doença mental é um conceito que pode justificar detenção compulsória em um hospital (Lei da Saúde Mental, 1983; Blugass, 1983) e criminosos mentalmente enfermos são tratados pela lei de uma maneira diferente de outros criminosos (Bluglass e Bowden, 1990).
Esta distinção entre normalidade e doença, saúde e enfermidade, nada tem de trivial. "Uma grande parte da ética médica e muito de toda a base da política médica atual, privada e pública, estão baseadas precisamente na noção de doença e normalidade. Por si mesmo, o médico (dando-se conta ou não) pode fazer seu trabalho muito bem sem uma definição formal de doença... Infelizmente, o médico não pode trabalhar tranqüilamente usando seu bom-senso. Ele é atingido por dois ângulos: pelos consumidores vorazes e pelos conselheiros pretensiosos" (Murphy, 1979).
Normalidade/anormalidade
A palavra normal é usada corretamente no mínimo em quatro sentidos na língua inglesa (Mowbray, Rodger e Mellor, 1979). Estes consistem das normas de valor, estatística, individual e tipológica. O termo "normal" passa a ser usado indevidamente quando substitui injustificavelmente as palavras usual ou usualmente.
A norma de valor tem o ideal como seu conceito de normalidade. Assim, a afirmação "é normal ter dentes perfeitos" está usando a palavra normal em sentido de valor - na prática, a maioria das pessoas tem, no mínimo, algum problema com seus dentes.
A norma estatística, naturalmente, é o uso preferencial que a palavra retém no vocabulário científico. O anormal é considerado aquele que fica fora da faixa média. Se um inglês normal mede 1m80cm, ter 1m60cm ou 1m90cm é estatisticamente anormal.
A norma individual é o nível consistente de funcionamento que um indivíduo mantém ao longo do tempo. Após uma lesão cerebral, uma pessoa pode experimentar um declínio na inteligência, que é certamente uma deterioração de seu nível individual prévio, mas tal diminuição pode não representar qualquer anormalidade estatística (p.ex; uma diminuição no QI de 125 para 105).
A anormalidade tipológica é um termo necessário para descrever-se a situação em que uma condição é considerada como normal em todos os três significados anteriormente citados e, contudo representa anormalidade, talvez mesmo uma doença. O exemplo dado por Mowbray e colaboradores é a doença infecciosa pinta. As manchas cutâneas causadas por esta doença são altamente valorizadas pelos índios sul-americanos, a tal ponto que os que não têm esta doença são excluídos da tribo. Assim, possuir a doença é considerado normal em sentido de valor, estatístico em individual, e ainda assim é patológico.
Amostra psiquiátrica: população geral
Na discussão de saúde e normalidade, é importante apontar as generalizações perigosas que surgem quando o psiquiatra, normalmente contra sua vontade, é colocado na posição de perito na conduta total da vida. Não podemos extrapolar do anormal para o normal; eles tendem a não estar situados em uma linha contínua, mais em vez disso, são qualitativamente diferentes. Devido ao conhecimento detalhado dos processos psíquicos anormais e sintomas e seu manejo, o psiquiatra não é necessariamente, também, um perito em educar filhos ou em dar uma receita para uma mente tranqüila.
A amostra de pessoas que vai a um psiquiatra é diferente, em muitos aspectos, daquela que consulta seu médico de família com sintomas psicológicos, sendo que esta população da clínica geral também difere da população em geral (Goldberg e Huxley,1980). Embora seja muito necessário concentrar-se no indivíduo e em seus sintomas, é também útil ter em mente as características do restante da população da qual ele provém. Seu comportamento e seu entendimento do mundo têm raízes dentro da sua própria psicopatologia individual, mas também de seu meio social geral.
Normalmente, existe um desejo de se raciocinar do particular para o geral. Com base em nossa experiência com pacientes esquizofrênicos jovens em um hospital-escola, fazemos generalizações sobre esquizofrenia. Para sermos capazes de fazer isto devemos saber que os pacientes que estamos atendendo (nossa amostra da população) são representativos da população-alvo (esquizofrênicos). Somente poderemos fazer está afirmação se nossa amostra foi selecionada aleatória na população total dos esquizofrênicos, de modo que todos os esquizofrênicos tenham tido uma probabilidade conhecida, igual e maior do que zero de entrar em nossa amostra. Na prática, certamente, isto nunca pode ser feito desta maneira; assim, devemos restringir nossa população-alvo a um grupo mais limitado (uma amostra). Nossas alegações sobre o conhecimento a respeito do mesmo também devem ser limitadas. Vale a pena repetirmos o axioma: diferentes populações têm diferentes características.
O comum/o esotérico
A psicopatologia descritiva às vezes corre o risco de cair no esotérico, com um interesse excessivo por síndromes raras. A fim de ter uso prático, é necessário que se concentre nas manifestações de anormalidade que são comuns a muitos pacientes:
1. A observação de um fenômeno sem teoria preconcebida é útil para a conciliação entre diferentes escolas de psicopatologia.
2. O requisito de uma definição precisa formar uma base para uma pesquisa sólida. Síndromes raras têm seu valor para o aprendizado de habilidades psicopatológicas, mas o interesse nelas não deve ocorrer em detrimento de seu uso mais importante – ainda que mais corriqueiro na prática clínica (Sims, 1982).
COMPREENDENDO SINTOMAS DOS PACIENTES
O entendimento, tanto no sentido cotidiano quanto no fenomenológico, não pode ser completo, a não ser que o médico tenha um conhecimento detalhado da base cultural do paciente e de informações específicas sobre sua família e seu ambiente imediato. A fenomenologia também não pode concentrar-se somente no indivíduo isolado, observado em um determinado momento de sua vida. Deve-se preocupar com a pessoa em um contexto social: acima de tudo, a experiência de uma pessoa é amplamente determinada por suas interações com os outros. Ela também deve considerar o estado mental e o ambiente do indivíduo antes do evento de interesse imediato e com o que ocorre após o mesmo.
O método fenomenológico facilita a comunicação; seu uso faz com que seja mais fácil para o médico entender o paciente. Isto também ajuda o paciente a ter mais confiança no médico, pois percebe que seus sintomas são entendidos e, portanto, aceitos como “reais”. A descrição precisa e a avaliação dos sintomas auxilia na comunicação entre os médicos.
Sintoma/sinal
A medicina clínica faz uma clara distinção entre sinais e sintomas. O paciente queixa-se de sintomas, como se sentir agitado e desconfortável no calor, com hipertireoidismo. Sinais físicos são detectados no exame: um leve bócio com ruído audível, perda de peso, pulso rápido e exoftalmia.
Esta distinção não é normalmente feita com os fenômenos do estado mental. A descrição do paciente de um fenômeno mental anormal é geralmente chamada de sintoma, quer ele queixe-se de algo que o perturba, ou simplesmente descreva sua experiência mental, que parece patológica para um observador. Em seu relato acerca de suas experiências, ambos são, portanto, considerados sintomas. Quando agregados, esses sintomas podem ser considerados como sinais de qualquer diagnóstico indicado.
O sintoma, pois, considerado como incluindo o sinal, pode ser uma queixa (p.ex., um sentimento de infelicidade) ou um item de descrição fenomenológica que pode não representar queixa do paciente (p.ex., ouvir vozes que discutem baixinho sobre o paciente, com perplexidade e admiração). O sentimento de infelicidade pode ser um sinal de doença depressiva; as alucinações auditivas podem ser um sinal de esquizofrenia. Há, também, sintomas ou sinais comportamentais, como no paciente que grita para o teto – isto pode ser considerado como um sinal que sugere alucinação auditiva. Shneider (1959) considera que um sintoma, na esquizofrenia, é uma “característica freqüente e, portanto, importante, deste estado”. Para que um sintoma seja usado no diagnóstico, sua ocorrência deve ser típica desta condição e deve ocorrer com relativa freqüência na mesma.
O método de empatia: o método de observação e experimentação
O método clássico na medicina, de obter informações sobre o paciente, ocorre a partir da anamnese e do exame físico. O uso da fenomenologia em psiquiatria é uma extensão da anamnese, no sentido de que amplia a descrição da queixa presente para dar informação mais detalhada. É, também, um exame, já que revela o estado mental. Não é possível para mim, o médico, observar a alucinação de meu paciente, nem medi-la de maneira direta. No entanto, para compreendê-lo, posso utilizar as características humanas que tenho em comum com ele, isto é, minha habilidade para perceber e usar a linguagem que compartilho com ele. Posso esforçar-me para criar em minha própria mente uma idéia de como deve ser sua experiência. Então, testo para ver se estou correto em minha reconstrução de sua experiência, pedindo que ele confirme ou negue minha descrição. Também utilizo minha observação de seu comportamento – a expressão triste de seu rosto ou o ato de bater com o punho na mesa – para reconstruir suas experiências.
Ouvir e observar são cruciais para o entendimento. Deve-se tomar muito cuidado ao se fazerem perguntas. Os médicos muitas vezes identificam sintomas incorretamente e fazem o diagnóstico errado pois fizeram perguntas capciosas com as quais o paciente, por meio de sua submissão ao status do médico e ansiedade para cooperar, está completamente disposto a concordar.
O método de empatia significa usar a habilidade de sentir-se na situação de outra pessoa, avançando através de séries organizadas de perguntas; repetindo e reiterando onde for necessário até que se tenha certeza do que está sendo descrito pelo paciente. A seqüência poderia ser a seguinte:
Pergunta - “Você diz que seus pensamentos estão mudando; o que acontece com eles?”
Resposta – O paciente descreve seus pensamentos recorrentes sobre matar pessoas e a afirmação de que isto se origina de uma dor em seu estômago.
Pergunta – (Tentando isolar os elementos de sua experiência) “Como é este seu pensamento de matar pessoas?” (obsessão, delírio, fantasia, chance de se transformar em atuação, etc.) “Você acredita que seu estômago afeta seu pensamento?; É diferente de uma pessoa que sabe que fica irritada quando está com fome?; De que maneira isto é diferente?; O que causa sua dor no estômago?”
Resposta – O paciente descreve os detalhes, que incluirão, entre o material irrelevante, o tipo de informação essencial para a determinação dos sintomas presentes.
Pergunta – (O convite à empatia) “Estou certo ao pensar que você está descrevendo uma experiência na qual raios estão causando dor em seu estômago, e que este, de alguma maneira bastante independente de você, causa este pensamento que o assusta, de que você deve matar alguém com uma faca?” Isto é um relato dos sintomas relevantes que ele descreveu na linguagem que pode reconhecer como sua.
Resposta – “Sim” (nós, então, alcançamos nosso objetivo); “Não” (portanto, devo tentar evocar novamente os sintomas, experimentá-los por mim mesmo e descrevê-los outra vez ao paciente).
Para dar exemplos do que isto significa na prática: Como eu, um médico, decido se um determinado paciente está deprimido ou não? Isto não é feito pela imitação de uma máquina que poderia registrar unidades de tom vocal ou de expressão facial, chegando a um diagnóstico de depressão. Para a avaliação clínica, sigo o seguinte processo:
1. Eu sou capaz de sentir-me infeliz, miserável, deprimido e saber como é este sentimento dentro de mim.
2. Se eu estivesse me sentindo como vejo o paciente se sentindo, falando, atuando, etc, também me sentiria miserável, deprimido, infeliz.
3. Portanto, eu avalio o humor do paciente como sendo de depressão. É claro que este processo mental de diagnóstico não é geralmente verbalizado.
Em outro exemplo, um paciente diz: “Os marcianos estão me fazendo dizer palavrões, não sou eu que estou dizendo isto.” O questionamento empático revela a falsa crença do paciente de que quando palavrões vêm de sua boca ele acredita que a causa está fora de si mesmo (marcianos), em vez de dentro de si. O questionamento incluiria: “Você realmente ouve os marcianos? Como você sabe que são marcianos e ninguém mais?”, etc.
Um outro exemplo não-psicótico seria o de uma garota de 20 anos de idade que desmaia quando criticada em seu trabalho. O médico precisa colocar-se, mesmo sendo um homem de 55 anos, de uma diferente formação, na posição da paciente, com um conhecimento não somente de sua história social, mas também da maneira como ela, no presente, percebe a história. Somente depois disto o desenvolvimento de seus sintomas pode se tornar compreensível. Quando tomamos conhecimento, por exemplo, de seu pai com abuso de álcool, das discussões deste com a mãe epiléptica da paciente, da experiência cultural restrita da família em uma aldeia de pescadores isolada; quando sabemos que a mãe tinha um ataque quando as discussões com o marido tornavam-se intoleráveis – podemos começar a entender alguma coisa sobre o desenvolvimento do sintoma da própria paciente. Isto não é alcançado somente por explicação, como um observador externo, mas pelo entendimento empático e pela capacidade de experiência subjetiva por parte do médico.
Talvez uma analogia da medicina geral fosse útil aqui. O médico experiente apalpa um rim aumentado no abdome de seu paciente (Figura 1.2). Ele convida os estudantes de medicina a apalparem o abdome bimanualmente para que possam aprender a experimentar esta sensação quase imperceptível, mas ainda assim significativa. O método fenomenológico de empatia empregado em psiquiatria é mais difícil de ensinar do que este. É como se o médico tivesse que realizar este exame sem as mãos (Figura 1.3)! Primeiro, ele precisa treinar o paciente a apalpar seu próprio abdome bimanualmente de maneira correta e, depois, descrever de forma precisa o que sente. O médico, então, interpreta a descrição do paciente para decidir se o rim está dilatado sem poder ele próprio colocar a mão no abdome.
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Figura 1.2 - Palpação bimanual para verificação de um rim aumentado. | Figura 1.3 - Apalpação bimanual, sem as mãos |
A proposta do método fenomenológico, portanto, é a seguinte:
(1) descrever experiências internas;
(2) ordená-las e classificá-las; e
(3) criar uma terminologia confiável.
A empatia também é de grande valor terapêutico no estabelecimento de uma relação com o paciente. Saber que o médico entende, e que é capaz de compartilhar de seus sentimentos, dá ao paciente confiança e sensação de alívio. Esta empatia é também útil como uma maneira de estender o conhecimento mais genericamente no campo da psiquiatria, permitindo o desenvolvimento de uma terminologia diagnóstica.
O todo não-diferenciado – a parte significativa
Geralmente, uma classificação de qualquer espécie requer o exame detalhado de uma grande quantidade de material, para a identificação do indício, pequeno, mas significativo. Isto se aplica à fenomenologia, na qual a parte significativa do material psicológico para avaliação fenomenológica pode ocorrer dentro de uma longa anamnese e exame, onde a maior parte da conversa do paciente não revela qualquer evidência de doença. Um paciente falou por vários minutos sobre várias coisas que considerava bastante estranhas, mas não pude ter certeza sobre seu estado psicótico. No entanto, quando ele disse: “Eu raspei minhas sobrancelhas porque eram ruivas, e quando as pessoas viam sobrancelhas ruivas, elas sabiam que eu era bicha” (na verdade, ele não era homossexual); com isto, ficou óbvio que tinha delírios, e este sintoma foi explorado em maiores detalhes.
O uso da fenomenologia para a avaliação no estado mental pode ser comparado com o exame do campo no microscópio. Não se pode esperar extrair algum sentido da amostra de sangue apenas olhando e focalizando. Deve-se mover a lâmina e conseguir um bom exemplo para demonstrar o ponto de interesse da massa não-diferenciada. Assim, a conversa do paciente pode ter demonstrado muitas idéias estranhas e delírios bizarros, mas talvez somente uma vez o entrevistador possa obter uma descrição totalmente satisfatória de determinado sintoma psicopatológico de particular importância diagnóstica.
Comportamento aleatório/significado
Um homem andando de bicicleta ao redor de um canal encontrou outro homem, robusto, caminhando na direção oposta e carregando um tubo de borracha. Este levantou o tubo e o bateu no ombro do ciclista, quase o empurrando para dentro do canal. Ao chegar na cidade mais próxima, o ciclista registrou a agressão na polícia local, que prendeu o agressor. A polícia considerou seu comportamento sem sentido e, portanto, solicitou a opinião de um psiquiatra. Quando questionado a respeito da razão pela qual havia agredido o ciclista, o homem respondeu que tinha sentido uma dor em seu estômago e ouviu uma voz dizendo: “Bata no homem da bicicleta e a dor irá passar”; e foi o que ele fez.
Um leigo qualquer, comentando o “comportamento maluco”, pode dizer que este não tem sentido; mas, como o significado não é sempre aparente para um observador ou mesmo para a vítima, não se pode negar que não é real, apesar de psicótico, para o paciente: “Uma ação é, a princípio, intencional” (Sartre, 1943).
É importante tentar alcançar o significado subjetivo do paciente e não somente ficar satisfeito porque a resposta é anormal. O significado fenomenológico é, algumas vezes, revelado no tipo de resposta; por exemplo, quando se pediu a um paciente esquizofrênico que explicasse a diferença entre uma parede e uma cerca, ele respondeu: “Você pode ver através de uma cerca, mas as paredes têm ouvidos” (Rawnsley, 1985, comunicação pessoal). Da mesma maneira que os eventos externos têm causas que podem ser explicadas, os eventos psicológicos internos podem originar-se uns dos outros em um encadeamento significativo, se o estado interno do paciente puder ser entendido empaticamente.
Compreensão/explicação
Iniciamos com a premissa de que o comportamento significa algo, isto é , que surge com consistência interna, a partir de eventos psíquicos. Embora o comportamento de um paciente possa ser significativo para ele, pode não ser possível para nós, os observadores externos, entendê-lo. Existem muitos níveis nos quais podemos entender. Por exemplo, podemos ter algum entendimento das dificuldades sexuais de um exibicionista reincidente ao saber sobre sua infância perturbada; mas isto ainda não se explica por que ele regularmente repete o comportamento que o faz entrar em conflito com a lei, prejudicando-o socialmente e à sua família. Wittgenstein (1953) afirmou: “Nós explicamos comportamentos humanos dando razões, não causas”.
Jaspers contrastou compressão (verstehen) com explicação (erklären) e mostrou como estes termos podem ser usados no sentido tanto estático quanto genético. Estático significa compreender ou explicar a presente situação a partir das informações disponíveis; genético, como atingiu este estado pelo exame de seus antecedentes. Isto é mostrado na Tabela 1.1.
Tabela 1.1 – Diagrama de entendimento e explicação.
Compreensão | Explicação | |
Estático | (1) Descrição Fenomenológica | (3) Observação através da percepção sensorial externa |
Genético | (2) Empatia estabelecida a partir do que emerge | (4) Causa e efeito do método científico |
Compreensão é a percepção do significado pessoal da experiência subjetiva do paciente:
1. Se quisermos encontrar significado em um determinado momento no tempo, o método da fenomenologia é apropriado. A experiência subjetiva do paciente é dissecada formando-se um quadro estático do que tal pensamento ou tal evento significaram para ele naquele determinado momento. Não é feito qualquer comentário de como o evento surgiu e nem alguma previsão ao que acontecerá depois. O significado é simplesmente extraído como uma descrição do que o paciente está experimentando e o que isto significa para ele agora. Um homem sente-se zangado: a compreensão estática usa a empatia para descrever em detalhes exatamente como é para ele sentir-se zangado. Eu, o examinador, já experimentei fenômenos como estes? Eles são conhecidos por mim pelas experiências que tive em minha vida?
2. A compreensão genética, em oposição à compreensão estática, preocupa-se com um processo. Entende-se que, quando insultado, este homem reage com violência; quando esta mulher ouve vozes comentando sobre suas ações, ela fecha as cortinas de sua casa. Para compreender a maneira como os acontecimentos psíquicos originam-se um dos outros na experiência do paciente, o terapeuta usa a empatia como um método ou ferramenta. Ele coloca-se na situação do paciente. Se este primeiro acontecimento tivesse ocorrido com ele nas circunstâncias totais do paciente, o segundo evento, que foi a reação do paciente ao primeiro, ocorreu dentro do esperado, com alguma margem de certeza. Ele compreende os sentimentos atribuídos ao paciente a partir da ação que deles resulta. Então, se eu fosse o paciente com a mesma história, será que teria as mesmas experiências e o mesmo comportamento? Um exemplo ajudaria a demonstrar a humanidade desta abordagem e a universalidade da experiência humana: eu devo me colocar no lugar de uma jovem mulher de 19 anos, criada em uma comunidade pesqueira isolada, a mais velha de oito filhos, que se torna estuporosa durante sua segunda gravidez. Ela é casada com um homem alcoólatra de 35 anos, e seu pai também é alcoolista. Devo compreender como ela lidou com o comportamento de seu pai quando criança; o que sua gravidez significou para ela; como ela viu o comportamento de sua mãe durante suas gestações, etc. A explicação trata do registro de eventos de um ponto de observação fora destes; a compreensão, de dentro deles. Compreende-se a raiva de uma pessoa e suas conseqüências; explica-se a ocorrência da neve no inverno. Explicações também podem ser descritas como estáticas ou genéticas.
3. A explicação estática refere-se à percepção sensorial externa, à observação de um acontecimento.
4. A explicação genética consiste na descoberta de conexões causais: ela descreve uma cadeia de eventos e por que eles seguem esta seqüência. Compreender e explicar são partes necessárias da investigação psiquiátrica.
Jaspers faz uma distinção importante entre o que é significativo e permite empatia, e o que é, em última instância, incompreensível – a essência da experiência psicótica. Apesar de o observador possivelmente empatizar com o conteúdo de um delírio de um paciente em qualquer situação particular, ele não pode compreender ou ver uma conexão significativa na ocorrência do delírio por si só. O delírio como um evento não é compreensível: para o médico, parece incompreensível e irreal. Podemos compreender pelo conhecimento do passado da paciente porque, caso seu pensamento tiver um transtorno na forma, o conteúdo deste pensamento refere-se à perseguição pelos nazistas – talvez porque seus pais escaparam da Alemanha em 1937. Mas não podemos compreender a razão pela qual ela deve acreditar em algo que é claramente falso: que os perseguidores estão colocando uma substância sem gosto em sua bebida que a faz sentir-se doente. O delírio, em si mesmo, como forma psicopatológica, é incompreensível. Conexões significativas, então, mostram o vínculo entre diferentes eventos psicológicos, pela compreensão de como tais eventos surgem um dos outros, por um processo de empatia.
Primário: secundário
Jaspers discute os diferentes significados que podem ser atribuídos aos vocábulos primário e secundário quando aplicados a sintomas. A distinção pode ser em termos de compreensão, no sentido de que o primário não pode ser reduzido adicionalmente pelo entendimento; por exemplo, nas alucinações, na medida em que o secundário é o que surge do primário de uma maneira que possa ser compreendida; por exemplo, a elaboração delirante que surge da parte saudável da psique em resposta a alucinações que surgem da parte não-saudável da psique. Novamente, a distinção entre primário e secundário pode ser feita em termos de causalidade , no sentido de que o que é primário é a causa, enquanto o que é secundário é o efeito: a afasia sensorial é primária, a perturbação resultante das relações com outras pessoas é secundária.
Estes dois significados distintos do termo primário obscurecem a distinção crucial entre conexões significativas e conexões causais. Para evitar dúvidas em física e química, fazemos observações por meio de experimentos e então formulamos conexões e leis causais, ao passo que, em psicopatologia, experimentamos outro tipo de conexão, na qual eventos psíquicos emergem uns dos outros de uma maneira que pode ser compreendida – as chamadas conexões significativas (Robinson, 1984, comunicação pessoal).
A ANÁLISE DE EXPERIÊNCIA
O que o paciente considera importante ao oferecer a história de seus sintomas e causas de aflição pode não ser necessariamente idêntico ao que o médico ou examinador considera importante. O médico pode muito bem estar tentando determinar as entidades psicopatológicas que estão presentes, talvez para fazer um diagnóstico, enquanto o paciente está preocupado em comunicar a agonia que vive, sua intensidade e a forma como esta é percebida como uma ameaça.
Predição/quantificação
Na acusação feita à psiquiatria – de não ser científica por não ser quantificável – existem duas percepções incorretas. Em primeiro lugar, a quantificação não é fundamental para a ciência, mas secundária. O fundamental, para o conhecimento fatual ou ciência, é que esta tenha uma qualidade suficientemente boa para ser preditiva. Por exemplo, saber que a maçã, solta no ar, cairá, é o princípio essencial da ciência: medir e, portanto, quantificar sua velocidade depende da observação e da previsão inicial. Em segundo lugar, é possível quantificar a psicologia subjetiva que tem usado a fenomenologia no estágio de formação de hipóteses. Exemplos disto serão descritos em maiores detalhes posteriormente, incluindo auto-avaliações para a depressão, localização do self dentro do espaço semântico na Grade de Repertório; automedições de peso na anorexia nervosa e assim por diante. São necessários métodos indiretos e criativos para a quantificação da psicopatologia, mas isto é possível e, com freqüência, vantajoso.
Popper (1959) introduziu o teste de falsificabilidade para a ciência: uma teoria pode ser falsificável como um critério de definição. A fenomenologia, a descrição do estado subjetivo do indivíduo, é falsificável: está disponível para a refutação, e parte do método empático diz respeito a convidar o paciente a refutar o relato do entrevistador sobre a experiência anterior do primeiro. Portanto, as teorias fenomenológicas podem ser falsificadas a partir das argumentações do próprio paciente.
Forma: conteúdo
Como a urdidura e a trama, a forma e o conteúdo são essencialmente diferentes, mas estão inextricavelmente entrelaçados. É claro que o conceito filosófico de forma e conteúdo constitui uma ferramenta didática, um auxílio para o entendimento, e não deve ser usado de uma maneira concreta ou absoluta. O que é forma a um nível de classificação torna-se conteúdo em outro, como, por exemplo, artefatos de madeira podem incluir móveis como um dos muitos “conteúdos”, mas mobília, quando utilizada como uma “forma” pode também incluir outros artigos diferentes. A forma de uma experiência psíquica é a descrição de sua estrutura em termos fenomenológicos, como, por exemplo, um delírio. Visto assim, o conteúdo é o colorido da experiência. O paciente está preocupado pois acredita que estão roubando seu dinheiro. Sua preocupação é que “pessoas estão tirando meu dinheiro”, não que “eu mantenho uma falsa crença apoiada em razões inaceitáveis de que pessoas estão tirando meu dinheiro”. Ele está preocupado com o conteúdo. Claramente, forma e conteúdo são importantes, mas em contextos diferentes. O paciente está somente preocupado com o conteúdo, “que estou sendo perseguido por 10.000 tacos de hóquei”. O médico preocupa-se com a forma e com o conteúdo, mas, como fenomenologista, só com a forma; neste caso, uma falsa crença de estar sendo perseguido. No que se refere à forma, os tacos de hóquei são irrelevantes. O paciente, por sua vez, acha este interesse do médico pela forma incompreensível e um desvio do que ele considera importante, acabando por demonstrar irritação com o fato.
Uma paciente que disse: “Quando giro a torneira, ouço uma voz sussurrando no cano: ‘Ela está a caminho da lua. Vamos torcer para que ela faça uma aterrissagem suave’”. A forma desta experiência é o que exige a atenção do fenomenologista e é útil em termos de diagnóstico. Ela está descrevendo uma percepção: é uma falsa percepção auditiva e uma percepção auditiva falsa ou perturbada. Tem as características de uma alucinação e, especificamente, de uma alucinação funcional. Esta é a forma. Enquanto o psiquiatra preocupa-se em esclarecer a forma, a paciente fica muito irritada porque “ele não está anotando nada do que estou dizendo”. Ela está preocupada por talvez ser mandada para a lua. O que acontecerá quando chegar lá? Como voltará? Portanto, o conteúdo é tudo o que importa para ela e a preocupação do médico com a forma é incompreensível e frustrante ao extremo.
A forma depende da doença mental da qual o paciente sofre, constituindo-se, portanto, uma chave diagnóstica da mesma. Por exemplo, percepções delirantes ocorrem na esquizofrenia, e quando demonstradas como a forma da experiência elas indicam esta condição. O achado de uma alucinação visual sugere a probabilidade de uma psicossíndrome orgânica. A natureza do conteúdo destes dois exemplos é irrelevante para se chegar a um diagnóstico. O conteúdo pode ser entendido em termos da situação de vida do paciente com relação à cultura, ao grupo de pares, ao status, à sofisticação, à idade, ao sexo, aos eventos de vida e à localidade geográfica. Um outro paciente, por exemplo, disse que havia sido enviado à lua e retornado durante a noite duas semanas após a primeira aterrissagem da descida do homem na lua. Descrever os pensamentos de uma pessoa como sendo controlados pela televisão é necessariamente restrito àquelas partes do mundo onde esta invenção é conhecida. Um colega informou-me que duas semanas após a morte de Elvis Presley, três reencarnações autoconfessas do famoso cantor formam atendidas em seu setor de emergência.
A hipocondria é uma doença de conteúdo, mais do que de forma. A forma pode ser variada. Ela poderia tomar a forma de uma alucinação auditiva, na qual o paciente ouve uma voz dizendo: “Você tem câncer”; pode ser um delírio, quando ele acredita falsamente e com evidência delirante que tem câncer; pode ser, também, uma idéia supervalorizada, quando ele passa a maior parte do dia checando sua saúde, pois acredita que está doente; pode ser uma anormalidade de afeto, que se manifesta em extrema ansiedade hipocondríaca ou um desânimo hipocondríaco de fundo depressivo. De modo semelhante, o ciúme mórbido é um transtorno do conteúdo, no qual a forma expressa-se de várias maneiras: alucinatória, delirante, através de uma idéia supervalorizada, como um comportamento compulsivo ou um pensamento obsessivo; mas o conteúdo é compreensível em termos da situação de vida do paciente.
Subjetivo/objetivo
A objetividade na ciência passou a ser reverenciada como o ideal, de modo que somente o que é externo à mente é considerado real, mensurável e válido. Trata-se de um erro, porque necessariamente avaliações objetivas são subjetivamente carregadas de valor naquilo que o observador escolhe medir; e é possível tornar este aspecto subjetivo mais preciso e confiável. Há sempre julgamentos de valor associados a avaliações subjetivas e objetivas. O processo de fazer uma avaliação científica consiste de vários estágios: receber um estímulo sensorial, perceber, observar (tornar significativas as impressões), anotar, codificar e formular hipóteses. Este é um processo progressivo de se descartar informações, e é o julgamento subjetivo do que é válido que determina a pequena quantidade de cada estágio que é retido para transmissão à próxima parte do processo. “Não existe algo como uma observação sem idéias preconcebidas” (Popper, 1974).
As avaliações objetivas na psiquiatria têm coberto muitos aspectos da vida. Alguns exemplos, além das muitas medições fisiológicas, são a medição de movimentos corporais, expressão facial, escritos do paciente, capacidade de aprendizagem, respostas a um programa de condicionamento operante, extensão da memória, eficiência ocupacional e avaliação do conteúdo lógico das afirmações do paciente. Tudo isto pode ser quantificado e analisado objetivamente. Podem ser feitas análises subjetivas; por exemplo, a partir da expressão facial, da descrição do paciente sobre si mesmo, de sua própria escrita ou de seus acontecimentos internos. Quando um médico fala sobre um paciente: “Ela parece triste”, ele não está medindo objetivamente a expressão facial da mesma em “unidades de tristeza” por algum gabarito objetivo. Ele segue estes estágios: “Eu associo sua expressão facial com o afeto que reconheço em mim como um sentimento de tristeza: ver sua expressão faz-me sentir triste”. Rapport é a qualidade que o paciente estabelece com o médico durante sua entrevista clínica. Para que isto aconteça, o médico precisa ser receptivo à sua comunicação. Ele deve ser capaz de estabelecer também um rapport, de ter uma capacidade para o entendimento humano. Esta é necessariamente uma experiência subjetiva para o médico, mas isto não significa que não seja real ou mesmo que não possa ser medido. O método fenomenológico tenta aumentar nosso conhecimento de eventos subjetivos, de modo que possam ser classificados e, finalmente, quantificados.
Aggernaes (1972) definiu subjetividade e objetividade por experiências diárias imediatas:
Quando alguma coisa vivida tem uma qualidade de “sensação”, diz-se também que tem uma qualidade de “objetividade” se a pessoa que a vive sente que, sob circunstâncias favoráveis, ele seria capaz de viver a mesma coisa com outra modalidade de sensação que aquela que provocou a qualidade de sensação. Quando algo que se experimentou tem uma qualidade de “ideação”, isto é, não está sendo diretamente percebido no momento, é também dito que tem uma qualidade de “objetividade” se o experimentador sente que, sob circunstancias favoráveis, ele seria capaz, ainda assim, de viver a mesma coisa com, no mínimo, duas ou mais modalidades de sensação.
Algo experimentado tem uma qualidade de “subjetividade” se quem o vive sente que sob circunstâncias favoráveis ele seria capaz de viver esta coisa com duas ou mais modalidades de sensação.
Assim, olho para a mesa à minha frente como uma percepção visual ou posso virar minha cabeça e ainda fantasiá-la como uma imagem visual. Enquanto “vejo a mesa”, em qualquer destas formas, o fato de eu poder imaginar ouvir um som se eu batesse na mesa com uma colher e machucar meus dedos se desse um soco nela, confirma sua qualidade de objetividade. Se eu usar minha imaginação para criar em minha mente uma imagem visual de uma cadeira que nunca realmente vi, mas que é um composto de objetos e quadros que vi, sei que nunca serei capaz de sentir ou ouvir esta cadeira de fato – esta é uma imagem subjetiva sem realidade externa, objetiva.
Processo/desenvolvimento
Da mesma maneira que o entendimento e a explicação dependem da perspectiva do entrevistador – empaticamente de dentro ou observando de fora - , assim processo ou desenvolvimento dependem do modo pelo qual a pessoa vivencia um acontecimento dentro de seu padrão usual de vida, ou fora do mesmo. O desenvolvimento significa que uma experiência é compreensível em termos da constituição e da história da pessoa; transtornos de personalidade seriam vistos como alterações do desenvolvimento. O processo é visto como a imposição de um evento “de fora”; a epilepsia seria experimentada como uma ocorrência da doença separada do desenvolvimento normal – o processo da doença interrompeu o curso normal da vida. De maneira similar, o início de uma doença esquizofrênica freqüentemente produz uma “ruptura” definitiva na história de vida de um adolescente.
POSIÇÕES TEÓRICAS DA PSICOPATOLOGIA
Existe uma multiplicidade de psicopatologias. Qualquer explicação para o comportamento anormal tem o germe de uma teoria da psicopatologia. A psicopatologia descritiva tenta evitar os inúmeros argumentos etiológicos, satisfazendo-se com uma descrição do que ocorre, sem solicitar explicações adicionais. Já discutimos o pressuposto de que os fenômenos da doença mental têm significados próprios. Uma opinião radicalmente oposta afirma que qualquer experiência subjetiva é desprovida de significados. Pensamentos, incluindo o humor e os impulsos, são considerados como epifenômenos, isto é, o pensar não tem significado ou objetivo, sendo como a espuma da cerveja na parte de cima de um copo. Pensamentos são considerados como subprodutos acidentais das atividades químicas que ocorrem no cérebro: não são causas de comportamento, mas meros produtos. O significado que a pessoa que pensa vincula a eles é puramente ilusório. Tal posição extrema nega qualquer possibilidade de investigação ou tratamento psicológico.
Psicopatologia dinâmica descritiva
A psicopatologia é o estudo dos processos psíquicos anormais. A psicopatologia descritiva preocupa-se em descrever as experiências subjetivas e também o comportamento resultante durante a doença mental. Ela não arrisca explicações para tais experiências ou comportamentos, nem comenta sobre a etiologia ou o processo de desenvolvimento.
Esta abordagem para o fenômeno psíquico anormal contrasta de forma acentuada com outras molduras teóricas da psicopatologia, como a psicanalítica. Na psicanálise, no mínimo um de vários mecanismos supostamente ocorre, e o estado mental torna-se compreensível dentro deste referencial. Explicações do que ocorre no pensamento ou no comportamento baseiam-se nestes processos teóricos subjacentes, como transferência ou mecanismos de defesa do ego. Por exemplo, no caso de um delírio, a psicopatologia descritiva tenta descrever aquilo em que a pessoa acredita, como ela descreve sua experiência de acreditar, que evidências dá para sua veracidade e qual é o significado desta crença para sua situação de vida. Tenta-se avaliar se sua crença tem as características exatas de um delírio e, se tiver, de que tipo de delírio. Após esta avaliação fenomenológica, a informação obtida pode ser utilizada de maneira diagnóstica, prognóstica e, como conseqüência, terapêutica. Alguns dos contrastes entre psicopatologia descritiva e dinâmica são resumidos na Tabela 1.2.
Tabela 1.2 – Psicopatologia – descritiva versus psicanalítica.
Descritiva | Psicanalítica | |
Resumo | Avaliação empática da experiência subjetiva do paciente. | Estudo das raízes do comportamento atual e experiência consciente por meio de conflitos inconscientes. |
Terminologia | Descrição de fenômenos. | Processos teóricos demonstrados. |
Métodos | Entendimento do estado subjetivo do paciente por intermédio da entrevista empática. | Associação livre, sonhos, transferência. |
Diferenças na aplicação prática | 1. Faz distinção entre atendimento e explicação: entendimento pela observação e empatia. | Entendimento em termos de noções de processos teóricos. |
2. A forma e o conteúdo são claramente separados: a forma tem importância para o diagnóstico. | Não é feita distinção; envolvida com o conteúdo. | |
3. Processo e desenvolvimento diferenciados: o processo interfere com o desenvolvimento. | Não é feita distinção; sintomas vistos como tendo uma base psicológica inconsciente. |
A psicopatologia analítica ou dinâmica, no entanto, mais provavelmente tentaria explicar o delírio em termos de conflitos precoces reprimidos no inconsciente e que somente agora são capazes de ganhar expressão na forma psicótica, talvez com base na projeção. O conteúdo do delírio seria considerado uma chave importante para a natureza do conflito subjacente que tem suas raízes no desenvolvimento precoce. A psicopatologia descritiva não tenta dizer por que um delírio está presente: ela somente observa, descreve e classifica. A psicopatologia dinâmica ajuda a descrever como o delírio ocorreu e por que se trata deste delírio em particular, com base nas evidências da experiência no início da vida desta pessoa. Isto está relacionado com a compreensão genética, conforme descrito, e chamada de entendimento presciente por Mellor (1985, comunicação pessoal), indicando um suposto conhecimento prévio sobre como os eventos da vida mental devem se desenrolar, pois eles necessariamente terão de se adaptar às postulações teóricas.
Consciente/inconsciente
A fenomenologia não pode estar envolvida com o inconsciente, visto que o paciente não pode descrevê-lo, e, portanto, o médico não pode sentir empatia. A psicopatologia descritiva não possui uma teoria do inconsciente, nem nega sua existência. A mente inconsciente está simplesmente fora de seus termos de referência, e eventos psíquicos são descritos sem se recorrer a explicações que envolvam o inconsciente. Os sonhos, os conteúdos do transe hipnótico e os deslizes da língua (atos falhos) são descritos de acordo com o modo como o paciente experienciou-os, isto é, de acordo com a forma como se manifestam na consciência.
Orgânico: sintomático
A psicopatologia é essencialmente uma abordagem não-biológica aos processos mentais anormais, de modo que, mesmo quando as causas orgânicas de uma condição são conhecidas, a psicopatologia está envolvida na ordenação dos sintomas e na experiência do paciente, mas não tem em sua patologia orgânica. Há agora muitas conexões conhecidas entre diferentes doenças psiquiátricas e uma patologia orgânica identificável. No entanto, não é com estas ligações que a psicopatologia preocupa-se, e sua utilidade não é dependente da localização de um delírio ou de qualquer outro evento psíquico no cérebro. No início, psiquiatras de orientação organicista, como Griesinger e Wernicke, não se preocupavam com o psicopatológico na psiquiatria, mas muito mais em mapear o cérebro do doente. Isto trouxe excelentes contribuições, como por exemplo, para a elucidação da natureza e para o tratamento da sífilis cerebral. De modo similar, os behavioristas modernos geralmente não se interessam pela fenomenologia. A fenomenologia não trata da patologia orgânica ou do comportamento em si mesmo, mas da experiência subjetiva do paciente em relação ao seu mundo.
Não contrastamos orgânico com o funcional de forma convencional, pois funcional é um termo muito sujeito a confusões. Ele provoca dificuldades conceituais em vez de trazer esclarecimentos: uma pessoa lógica que desconhece o jargão médico, ficaria perplexa ao saber que uma perturbação humana decorrente de um problema psicológico é chamada de funcional, enquanto que uma perturbação similar, causada por uma doença orgânica, não é mais chamada de funcional. São os elementos sintomáticos da doença que a fenomenologia pode explorar: a natureza dos sintomas e ao que eles estão associados.
Cérebro/mente
René Descartes (1596 – 1650) examinou, formulou e reafirmou pontos de vista sobre a separação entre corpo e mente. Ele descreveu “L’âme raisonable” – a alma que pensa está alojada na máquina, tendo sua sede principal no cérebro. Ele descreveu a alma como o engenheiro que alterava os movimentos da máquina, o corpo (1649). Descartes foi um homem de seu tempo, refletindo e desenvolvendo concepções dicotômicas da relação cérebro-mente. Um exemplo deste dualismo cartesiano, que ocorreu antes mesmo de Descartes, é a seguinte inscrição obituária para Lady Doderidge, que morreu em 1614:
Como quando um relógio estragado é desmontado
um relojoeiro toma suas pequenas peças
e consertando o que encontra fora de ordem
reúne tudo e o faz novamente operar
também Deus esta dama tomou e suas duas partes separou
demasiado cedo – sua alma e seu pobre corpo mortal
Mas por Sua vontade seu corpo totalmente são
será novamente unido à sua alma agora coroada
Até então, os dois repousam na terra e no céu separados
com o que reuniu tudo o que tem vida nós então nos regozijamos.
Esta clara afirmação de uma absoluta separação entre corpo e alma encontra-se em seu túmulo, que pode ser visitado na Catedral de Exerter.
É proveniente deste dualismo a nossa tendência de pensarmos em termos do corpo e da mente – doença mental e física. A disciplina total da psiquiatria aceita tacitamente uma base dualística para sua própria existência, apesar de se ressentir disto e tentar duramente ensinar uma medicina da pessoa como um todo. Nossa linguagem continuamente nos leva de volta a palavras e expressões dualísticas, e estamos constantemente sob o perigo de uma psiquiatria “descerebrada” ou então “sem mente” (Eisenberg, 1986).
Neste aspecto, o método fenomenológico apresenta a vantagem de ser uma ponte sobre este abismo, de outro modo intransponível. Uma vez que se preocupa com a experiência subjetiva, está envolvido com a mente e não com o corpo, mas a mente pode somente perceber os estímulos que o corpo recebeu, e não pode haver percepção sem a consciência da mente. “O corpo não é somente um mecanismo causado, mas essencialmente uma entidade intencional sempre dirigida a um objetivo. O corpo vivido é a experiência de nosso corpo que não pode ser objetivada” (Gold, 1985; grifos de Gold). O termo mente não pretende representar algum homúnculo psicológico dentro do homem, talvez virado de cabeça para baixo, como no córtex cerebral. Ela é puramente uma abstração, que se refere a um aspecto de nossa humanidade. Como qualquer outro aspecto ou perspectiva, o que é mantido em foco é razoavelmente claro, mas as margens do campo são indefinidas e, portanto, não podemos dizer o que, precisamente, quais são os confins da mente, assim como nem podemos discriminar completamente o corpo e a mente, nem diríamos que a humanidade é completamente explicável em termos de corpo e mente (Sims, 1994).
Popper e Eccles (1977) desenvolveram o dualismo cartesiano ainda além e elaboraram um conceito tríplice – mente, corpo e self. As teorias de corpo-mente e suas relações com a psiquiatria foram bem resumidas por Granville-Grossman (1983). A mente é usada, daqui por diante, como uma abstração, um modo de observarmos parte dos fenômenos do homem. Esses temas são abordados resumidamente neste artigo, onde a finalidade foi a de um olhar sobre a doença, e não a dissecação da mente – “o estudo das características distintivas pelas quais se manifestam” (Pinel, 1801). Este artigo descreveu o que é a fenomenologia e por que ela é útil na psiquiatria clínica. O método concentra-se na experiência subjetiva do paciente – tentar compreender seu próprio estado interno. Várias constelações de idéias foram discutidas, e os conceitos foram listados em pares, como construtores; assim como o modo pelo qual a população psiquiátrica difere de uma população normal.
As idéias básicas para o atendimento dos sintomas do paciente são elaboradas usando-se o método de empatia e significado do comportamento, ou seja, a compreensão e a explicação dos eventos psíquicos. O comportamento do paciente é analisado, adicionalmente, em termos de forma e conteúdo, avaliação subjetiva e objetiva. As posições teóricas da psicopatologia descritiva foram discutidas e comparadas com métodos psicanalíticos e com o enfoque biológico da doença mental. O conceito de mente foi brevemente discutido.
Fonte: http://www.psiquiatriageral.com.br/psicopatologia/psico_descritiva.htm