- Disposições Pessoais
As Disposições Pessoais são os elementos referidos por Freud ao se
referir àquilo que o indivíduo traz
para a vida, ou seja, sua constituição. Ajuriaguerra, ao afirmar que
"envelhece-se como se viveu",
certamente estava pensando nos traços pessoais de nossa constituição
que acabam ficando mais marcantes
com o envelhecimento. A casuística da prática clínica tem mostrado,
embora nunca de maneira absoluta,
que os indivíduos portadores de dificuldades adaptativas em idade
pregressa envelhecem com maiores
dificuldades.
Se os acontecimentos existenciais eram sentidos com alguma dificuldade
ou sofrimento na idade adulta
ou jovem, quando a própria fisiologia era mais favorável e as
condições de vida mais satisfatórias e
atraentes, no envelhecimento, então, quando as circunstâncias
concorrem naturalmente para um
decréscimo na qualidade geral de vida, a adaptação será muito mais
problemática. Portanto, está correto
dizer que quanto melhor tenha sido a adaptação da pessoa à vida em
idades pregressas, melhor será sua
adaptação no envelhecimento.
Por outro lado, alguns autores observaram uma significativa melhora em poucos casos de neuroses com o envelhecimento, fato também observável na prática psiquiátrica. Isso nos mostra, de fato, não haver uma desestruturação psíquica no envelhecimento mas sim, uma alteração estrutural na dinâmica psíquica, novos arranjos psicodinâmicos e nova arquitetura afetiva distinta da anterior.
Nestes casos, um ambiente
pleno de carinho e atenção em torno do idoso, juntamente com uma
serenidade afetiva própria da
involução favoreceriam o acomodamento emocional com o envelhecimento.
Esta "serenidade afetiva", necessária à acalmia de algumas
neuroses no envelhecimento, seria uma
circunstância emocional mais tranqüila, possivelmente ausente em
épocas anteriores e, cuja falta, poderia
contribuir para a manutenção de um antigo quadro neurótico. Tais
alterações estruturais benéficas são mais observáveis em alguns
casos de transtornos obsessivos, histéricos e fóbicos, porém, não
devem ser
entendidos como via de regra.
Mais comum na senilidade, entretanto, é o agravamento e não a melhora das alterações psíquicas anteriormente constatadas. No caso das neuroses do idoso, assim como nas demais idades, o transtorno decorre do grande esforço interno em conseguir uma satisfação existencial e uma adaptação à realidade.
Assim sendo, mesmo diante de circunstâncias existenciais favoráveis
para alguns idosos, tal satisfação
adaptativa não seria conseguida devido à certa fragilidade emocional
própria de seus traços afetivos.
Nestes casos não é, absolutamente, a vida ou as circunstâncias
ambientais correlacionadas à senilidade
quem estaria proporcionando condições necessárias para a eclosão da
sintomatologia neurótica mas sim,
as condições de personalidade prévia do paciente. Outros idosos,
possuidores de melhores condições de
adaptação (personalidade), não manifestariam transtornos emocionais
diante de iguais condições de vida.
É por causa disso que se envelhece como se viveu.
Dentre as funções psíquicas alteradas com e pelo envelhecimento, a afetividade deve ser destacada. Para melhor entendimento, na abordagem das manifestações neuróticas e distúrbios do humor, é bom relembrar a afetividade como sendo a capacidade de experimentar sentimentos e emoções, como um estado de ânimo que proporciona a tonalidade do relacionamento do indivíduo com o mundo e consigo próprio.
Uma das alterações afetivas do envelhecimento é a INCONTINÊNCIA EMOCIONAL. Trata-se de uma forma de alteração da afetividade peculiar à velhice que se caracteriza pela grande facilidade em produzir intensas reações afetivas e uma subseqüente incapacidade para controlá-las (1). Além desta Incontinência Emocional podemos encontrar também, LABILIDADE AFETIVA, cuja característica é as mudanças rápidas das emoções. Pode haver hipomania, acompanhada de explosões do humor ou manifestações de cólera diante de estímulos insignificantes. Tais alterações podem ser conseqüentes não apenas ao psicodinamismo reestruturado dos idosos mas, também, às alterações degenerativas do SNC, seja do ponto de vista tecidual, seja circulatório. Nos transtornos degenerativos a afetividade costuma ser uma das mais precoces manifestações. Alonso Fernandes cita a desestruturação afetiva nas fases iniciais das Síndromes Psicorgânicas em três formas distintas:
a) exagero dos traços afetivos pessoais;
b) primitivização da personalidade;
c) esvaziamento afetivo da personalidade.
Acompanhando ou não os estados degenerativos do envelhecimento, as alterações afetivas serão tanto mais proeminentes quanto mais problemática tenha sido a personalidade prévia do paciente. É por causa dessas constatações que a chamada Personalidade Pré-Mórbida tem muita importância em psiquiatria.
Além dos componentes da personalidade sabemos, atualmente, dos aspectos
familiares e genéticos
atrelados às doenças degenerativas da senilidade. Alguns casos de
demência têm significativa
concordância familiar, como é o caso da Doença de Pick, da Doença de
Jacob-Creustzfeldt, da Coréia de
Huntington ou até da Demência Ateriosclerótica.
Assim sendo, a pessoa traz para a vida não apenas a parte de sua
personalidade visivelmente conhecida e
pesquisada sob o título de "Personalidade Pré-Mórbida" mas,
sobretudo, certas peculiaridades genéticas
ocultas e capazes de aumentar a probabilidade do desenvolvimento das
doenças próprias do
envelhecimento.
Diz um provérbio que "teme mais a morte aquele que mais temeu a
vida". Trata-se de uma clara alusão ao
aumento das dificuldades adaptativas incrementada com o passar dos anos
para algumas pessoas. Se, em
tempos anteriores quando todas circunstâncias existenciais eram mais
satisfatórias, quando toda
potencialidade vital era plena, quando o futuro era ainda distante e
quando a solidão não tinha sido
experimentada, mesmo assim a pessoa passava por momentos de franca
dificuldade adaptativa, no
envelhecimento então, quando se fazem sentir todas as dificuldades, a
capacidade adaptativa anterior só
pode mesmo estar piorada. As características trazidas pelo indivíduo
à vida (sua constituição) se tornarão
mais exuberantes com o envelhecimento e, se o indivíduo viveu
desadaptadamente durante fases mais
prematuras de sua existência, certamente envelhecerá mais
desadaptadamente ainda. As pulsões e paixões
reprimidas ao longo da vida não encontram mais na velhice energia
suficiente para mantê-las em
repressão e eclode na consciência um triste e amargo culto ao passado,
com suas frustrações, seus
pecados, suas angústias e seus rancores.
ASPECTOS PSICOSSOCIAIS
Trata-se, parodiando Freud, dos componentes que "a vida traz para o indivíduo" e que, juntamente com as disposições pessoais, vistas atrás, resultarão no estado psíquico atual em que se encontra o paciente idoso.O equilíbrio do velho, segundo Cavan e citado por Vargas (1), e seu ajustamento ambiental dependem, principalmente, dos seguintes fatores:
a) um contato social suficiente;
b) uma ocupação cheia de significado;
c) uma certa segurança social;
d) um estado de saúde satisfatório.Comentando-se brevemente cada um destes aspectos necessários ao equilíbrio do idoso, entendemos logo o caráter hipócrita e até caricato que a sociedade empresta ao velho. Além dos sofríveis elementos do presente (aqueles que a vida traz ao indivíduo), proporcionado pelas condições deploráveis de existência dos idosos de nosso tempo, devemos considerar também a somatória com o patrimônio vivencial passado (que a vida trouxe ao indivíduo durante sua trajetória existencial).
Será difícil envelhecer serenamente quando a vida pregressa foi ponteada pelos mais variados traumatismos, frustrações e dessabores. As vivências traumáticas pregressas são sempre máculas indeléveis da existência e, com o esvaziamento progressivo da energia vital, se tornarão feridas emocionais abertas. Diante de certas circunstâncias de vida, cabe muito mais ao destino que ao terapeuta proporcionar a cura ou prevenir doenças. Na velhice as ocorrências vivenciais sofríveis serão as maiores determinantes do estado emocional.
Voltando a comentar sobre as condições de vida atual de nossos idosos, aquilo que a vida traz em tempo presente ao indivíduo, vejamos a lista quádrupla de Cavan. O "contato social suficiente", citado nesta lista, começa ser menosprezado na própria família do idoso. O velho é sempre colocado numa posição de forma a proporcionar menor incomodo à dinâmica familiar. E não falamos apenas de uma posição existencial mas até do ponto de vista geográfico e espacial.
Além do idoso não dispor de espaço importante no seio familiar, geograficamente quando não é alocado numa dependência isolada da casa ou numa cadeira bem no cantinho da sala, é levado para algum local "de repouso", longe dos olhos dos familiares.
No meio familiar os assuntos cotidianos quase nunca são dirigidos ao velho, pois há uma falsa e cômoda crença sobre ele não se interessar por mais nada. Em festinhas e eventos familiares aparece novamente a falsa (e cômoda) crença sobre ele não estar gostando de nada daquilo, nem do barulho, nem da agitação, nem de nada. Portanto, é novamente colocado à distância. Normalmente ele não gosta mesmo é de se sentir um incômodo e passa a não gostar também de um barulho que nunca é dirigido à ele.
Vamos à segunda questão da lista. Como podemos pretender uma "ocupação cheia de significado" num país onde até os concursos públicos limitam a idade para admissão aos 40 anos? Realmente, dessa forma só restará aos idosos cuidarem de canários, praticarem jardinagem e tricô. O velho é, de fato, considerado um inapto por nossa sociedade, um incapaz crônico e um deficiente ocupacional irrecuperável. A exaltação da produtividade, a glória do útil e o mérito tirânico da vitalidade jovial monopolizam toda valoração social. Fazer questão de sentir-se jovem, quase aos níveis do retardo mental, é a pretensão dos desadaptados às suas reais condições bio-cronológicas e dos possuídos pelo demônio da produção.
Tornou-se vexatório ao idoso confessar sentir-se bem com sua própria idade cronológica e, ao contrário, soa bem dizer se sentir com 20 anos, mesmo tendo 80. Em outras palavras, parecerá imbecil aquele que insiste em se sentir com 20 anos, apesar dos seus 80, já que há uma discrepância entre a idade cronológica e mental. É exatamente esta discrepância entre idade mental e cronológica que caracteriza a imbecilidade. Poderia muito bem dizer aos outros que se sente de fato com 70 anos e, não obstante, se sente muito bem. Isso não deve ser motivo de vergonha.
Alguns velhos, com severas dificuldades de adaptação aos desígnios da biologia universal e influenciados maleficamente pela glorificação da vitalidade juvenil, assumem a "profissão" de serem jovens eternamente. De certa forma são corajosos, pois não temem o ridículo. Adaptar-se com serenidade à maturação é prova de sanidade e bem estar emocional. Desprezar com nobreza a pseudo-juventude obrigatória e professada pela facção mais estapafúrdia da sociedade é a mais cristalina demonstração de crescimento da personalidade, é a própria individuação tão sonhada por Jung. Mas, por outro lado, não devemos recriminar totalmente estes gerontos escondidos da idade factual e refratários à adaptação sadia para com a vida madura, pois são vítimas seduzidas por este sistema sócio-cultural que vive a
marginalizá-los.Não se pretende, com isso, convocar os idosos para um acomodamento apático. Antes disso, pretende-se mostrar que não deve haver constrangimento ou vergonha na adaptação sadia à idade madura, na aceitação sem frustração das naturais limitações determinadas pela idade e no descobrimento de tantas outras e novas aptidões. O entusiasmo no velho deve ser sempre estimulado, porém, estimulado para atividades compatíveis com sua real situação e não para atividades extemporâneas forçadas para o simples atendimento de valores culturais distorcidos.
O idoso pode, perfeitamente, ter uma ocupação cheia de significado sem que, para isso, tenha que voar de asa delta, ou espatifar-se com a moto, ou fraturar a coluna no surf. Não há razões para acreditarmos na necessidade absoluta dessas inquietações infanto-juvenis para a glória suprema do ser humano. Há um sem número de ocupações plenas de
significado e dignidade melhor desenvolvidas por pessoas mais velhas. Basta a sociedade curar-se desta
embriagues que cultua a juventude tal qual um bezerro de ouro para, depois da ressaca moral, reconhecer
o valor laborativo e ocupacional dos idosos.Uma certa "segurança social", recomenda Cavan para o equilíbrio do idoso e seu ajustamento ambiental. Em nossa sociedade há um curioso cálculo descoberto por economistas, não exatamente altruístas, considerando o idoso um ser capaz de viver com u ma aposentadoria capaz de fazer inveja a qualquer faquir do oriente. Vendo as torturantes filas diante da previdência chega-se à conclusão de que não é apenas a pensão da aposentadoria o objeto de inveja dos faquires. Também o suplício físico e a inanição a que se sujeitam os pobres coitados, durante horas infindáveis nas filas da previdência, são provas da resistência sobre-humana de nossos velhos. A insegurança social e a perspectiva de abandono futuro dos idosos é tanta que, desde há muito, tornou-se hábito em nosso sistema constituir famílias com muitos filhos como forma de apelo para que, na velhice, algum dos filhos cuide do destino dos pais. E isso, apesar daquilo, nem sempre acontece da forma satisfatória prevista pelo patriarca.
Finalmente, "um estado de saúde satisfatório" recomendado deve ser entendido de maneira global, tanto física quanto mentalmente. Sobre a saúde mental dissemos e vamos dizer muito mais. Sobre a saúde física, entretanto, deve ficar claro que o velho, por ser velho, não deve obrigatoriamente ser doente. São freqüentes os casos de velhos atendidos em serviços de saúde, cujo número de piolhos e extensão da escabiose refletem proporcionalmente o grau de abandono em que se encontram. Desidratação e pneumonia, quando não a desnutrição franca, mostram perfeitamente a precariedade do suporte familiar destinado ao paciente. Situações clínicas facilmente resolvíveis são contemporizadas e encaradas como naturalmente inevitáveis ao idoso. Tanto as infestações simples, quanto situações francamente mórbidas, são aceitas complacentemente como se fossem inerentes e "inevitáveis" à senilidade. As queixas ginecológicas e urológicas dos velhos são tratadas com tanta repelência que dá-nos a impressão ter-lhes cicatrizado a vulva e fossilizado o pênis.
A exaltação da juventude, com notável predomínio dos valores estéticos sobre tantos outros valores, revela o velho como o grande vilão do mundo moderno e muitas vezes como um objeto de repulsa e rejeição social. Na mídia, notadamente em filmes de grande bilheteria e de aventura contagiante, normalmente o herói não tem mais de 18 anos, os bandidos estão sempre na faixa dos 35 a 40 anos e os discretos velhinhos não passam de figuras cômicas que dão o toque de humor à cena de tensão.
A pouca importância da senilidade é percebida até mesmo nos meios científicos. Entristece a notável discrepância entre a escolha, pelos médicos formandos, para a pediatria e a geriatria como especialidades desejadas. Também na psicologia a senilidade é deixada de lado, tendo em vista a mega quantidade de obras destinadas aos temas infantis e a notável escassez de títulos geriátricos.
Os valores estéticos estão tão enraizados culturalmente no comportamento das pessoas que um ato de afeto e carinho entre dois idosos, como por exemplo, o caso de um beijo, é capaz de provocar atitudes de evitação, jocosidade e até reprovação. O mesmo ato, tendo adolescentes como protagonistas, encontra receptividade social muito maior.
Na propaganda então nem se fala. Todos os produtos vinculados ao prazer, tais como refrigerantes, cosméticos, alimentos em geral, carros, viagens, etc., têm jovens atléticos e formosos como atores para sua promoção. Para as pessoas de meia idade ficam as propagandas de supermercados, imóveis, planos de saúde e seguradoras. Ou seja, as coisas não relacionadas ao prazer mas de VITAL importância aos demais. Os idosos, quando aparecem, só o fazem quando é necessário um clima cômico ou caricatural.
Politicamente também nota-se a diferença. Estamos continuamente tomando contacto com projetos destinados aos menores, abandonados ou não. Veja -se, por exemplo, o tão propalado Estatuto da Criança, os projetos governamentais para crianças de rua, ou coisas semelhantes. Aos velhos abandonados nada. Estatuto do Idoso então, nem pensar. A própria comemoração n0 unilateral do Dia da Criança já é muito sugestivo da discriminação.
A sociedade moderna é exclusivamente alicerçada na produtividade, atual, no lucro imediato e na utilidade da pessoa. Cada um de nós foi reduzido a uma mera função social e, dentro desta conjuntura das funções sociais, não restou sequer um espaço social para o velho. Até palavras como tradicional, conservador e ortodoxo, inexplicavelmente adquiriram teor pejorativo. É como se o novo devesse ser obrigatoriamente bom e melhor. E é assim que o idoso, considerado um peso social, frustra-se com a subtração de seu espaço existencial, anteriormente vivido com plenitude e sucesso. Experimenta uma profunda reação de perda sem nada a substituir o objeto perdido: o seu valor como pessoa. Desta forma, mesmo indivíduos relativamente equilibrados emocionalmente durante a vida pregressa, com a velhice
tendem a descompensar.