domingo, 8 de março de 2015

ABORTAMENTO (ABORTION)


Por convenção, a definição de abortamento é a interrupção da gravidez, de forma espontânea ou intencional, antes das 20 semanas, considerando a data do 1º dia da última menstruação normal. Outra definição comumente utilizada é o parto de um feto/neonato pesando menos de 500 g. No entanto, as definições variam, nos EUA, de acordo com as leis do estado para registros de abortamentos, morte fetal e mortes neonatais. Mais de 80% dos abortamentos ocorrem nas primeiras 12 semanas. O risco de abortamento espontâneo aumenta com a paridade, bem como com a idade materna e paterna. A frequência de abortamento clinicamente identificado aumenta de 12% – em mulheres abaixo de 20 anos – para 26% em mulheres acima de 40 anos. Há um aumento da incidência nos casos de mulheres que concebem nos 3 meses posteriores ao nascimento a termo.
IMPACTO SOBRE GESTAÇÕES FUTURAS
A fertilidade não é alterada por abortamento. Uma possível exceção é o pequeno risco de infecção pélvica. A aspiração a vácuo não aumenta a incidência de abortamentos espontâneos de segundo trimestre, partos pré-termo ou crianças com baixo peso ao nascer em gestações subsequentes. Porém, múltiplos procedimentos de curetagem por abortamento podem aumentar o risco de placenta prévia.
■ Abortamento séptico
As complicações graves em abortamentos estão associadas ao aborto criminoso. A hemorragia grave, a sepse, o choque bacteriano e a insuficiência renal aguda ocorrem em abortos legais, mas com uma frequência muito menor. A endometrite é o desfecho mais comum, mas a parametrite, a peritonite, a endocardite e a septicemia também podem ocorrer. Dois terços dos abortamentos sépticos são devidos a bactérias anaeróbias. Os coliformes também são comuns. Outros organismos relatados como causadores de abortamento séptico incluem Haemophilus influenzae, Campylobacter jejuni e estreptococo do grupo A. O tratamento da infecção inclui esvaziamento imediato de produtos da concepção associados ao emprego de antibióticos de amplo espectro administrados por via intravenosa. Nos casos de sepse e choque, os cuidados de manutenção são essenciais. O abortamento séptico também tem sido associado à coagulopatia intravascular disseminada.
Reinício da ovulação
A ovulação pode ocorrer logo após 2 semanas de um abortamento. Portanto, para a prevenção de nova gestação, é importante que a contracepção seja iniciada logo após o abortamento.
DIAGNÓSTICO
É conveniente considerar os aspectos clínicos do abortamento sob sete categorias: ameaça, inevitável, incompleto, retido, recorrente, terapêutico e eletivo. Os cinco primeiros são chamados de “abortamentos espontâneos”. O abortamento induzido legalmente (terapêutico ou eletivo) é um procedimento relativamente seguro, em especial quando realizado durante os primeiros 2 meses de gestação. O risco de morte em abortamentos realizados durante os primeiros 2 meses é de cerca de 0,7 em 100.000 procedimentos. O risco relativo de morte como consequência do evento praticamente dobra a cada semana de demora, após 8 semanas de gestação.
■ Ameaça de abortamento
O diagnóstico clínico de ameaça de abortamento é presumido quando qualquer secreção vaginal sanguinolenta ou sangramento aparece durante a primeira metade da gestação. Em geral, aparece primeiro o sangramento e as dores (cólicas abdominais) se apresentam após algumas horas ou vários dias depois. A ameaça de abortamento é muito comum, sendo que cerca de uma em cada 4 ou 5 mulheres vivencia um pequeno ou volumoso sangramento vaginal durante o início da gestação. Aproximadamente metade dessas mulheres irá abortar. Aquelas que não abortarem têm um risco aumentado de desfechos gestacionais subótimos, como parto pré-termo, baixo peso ao nascer e morte perinatal. O risco de gerar uma criança malformada não parece ser elevado. O diagnóstico diferencial em mulheres com esses sangramentos deve incluir o do tipo fisiológico na época da menstruação, as lesões cervicais, os pólipos cervicais, a cervicite e a reação decidual na cérvice. A dor abdominal baixa e a dor lombar persistentes, em geral, não acompanham o sangramento por essas causas benignas. É importante destacar que a gestação ectópica deve ser sempre considerada no diagnóstico diferencial de ameaça de abortamento. Cada mulher deve ser cuidadosamente examinada para avaliar se a cérvice está dilatada; nesse caso, o abortamento é inevitável (ver a discussão a seguir), ou se há complicação grave, como gestação ectópica ou torção de cisto de ovário insuspeitado. O tratamento da ameaça de aborto inclui repouso no leito e analgesia para alívio da dor. Se o sangramento é grave ou persistente, a gestante deve ser reexaminada, e o hematócrito verificado. Se a perda de sangue causar anemia ou hipovolemia, a gestação deve ser interrompida com o esvaziamento uterino. Por vezes, um pequeno sangramento pode persistir por semanas. A ultrassonografia transvaginal, os níveis séricos seriados de gonadotrofina coriônica (b-hCG) e os valores séricos de progesterona, medidos isoladamente ou em várias combinações, são úteis na avaliação de uma gravidez intrauterina. As gestantes D-negativas com ameaça de abortamento têm indicação de receber imunoglobulina anti-D, pois mais de 10% dessas mulheres têm hemorragia fetomaterna significativa.
Abortamento inevitável
O abortamento inevitável é frequentemente sinalizado por uma ruptura das membranas e dilatação cervical. Sob essas condições, o abortamento é quase certo. As contrações uterinas em geral iniciam prontamente, mas também pode ocorrer infecção. Com a ruptura de membranas ou dilatação cervical significativa, a possibilidade de salvar a gestação é remota. Se não há dor ou sangramento, a mulher deve ficar em repouso no leito para observação de perda de líquido, sangramento, cólica ou febre. Se após 48 horas esses sinais não forem mais observados, ela pode ser liberada para suas atividades habituais, exceto para relação sexual. No entanto, se a saída de líquido é acompanhada por sangramento e dor, ou febre, o aborto é considerado inevitável e o útero deve ser esvaziado.
Abortamento incompleto
O abortamento é incompleto quando há retenção total ou parcial da placenta após a expulsão do feto. Em geral, o abortamento incompleto apresenta sangramento que pode ser muito importante nas gestações mais avançadas. O embrião-feto e a placenta tendem a ser expelidos juntos em abortamentos que ocorrem antes das 10 semanas de gestação.
■ Abortamento retido
O abortamento retido é definido pela retenção uterina dos produtos mortos da concepção por várias semanas. Após a morte fetal, pode ou não haver sangramento vaginal ou outros sintomas. O útero permanece com seu tamanho inalterado, e as alterações mamárias em geral regridem. A maioria dos abortamentos retidos termina espontaneamente; contudo, a retenção prolongada de feto morto pode desencadear distúrbios graves da coagulação. A patogênese e o tratamento dos distúrbios da coagulação ou de qualquer outro evento hemorrágico no caso de retenção prolongada de feto morto.
Abortamento recorrente
A definição mais aceita de abortamento recorrente exige 3 ou mais eventos espontâneos consecutivos. Na maioria das vezes, o abortamento espontâneo repetido tende a ser um fenômeno ocasional. Aproximadamente 1 a 2% das mulheres em idade reprodutiva vivenciarão 3 ou mais abortamentos espontâneos consecutivos, e 5% terão 2 ou mais abortamentos consecutivos. Mulheres com 3 ou mais incidências são consideradas com risco aumentado para anomalia cromossômica, distúrbio endocrinológico ou sistema imune alterado. No caso de 3 ou mais abortamentos espontâneos, essas mulheres apresentam aumento do risco em gestação subsequente para parto pré-termo, placenta prévia, apresentação pélvica e malformação fetal. Com exceção das mulheres que têm anticorpos antifosfolipídeos ou incompetência cervical, 70 a 85% das mulheres com abortamento recorrente podem esperar um resultado de sucesso em gestação subsequente independentemente do tratamento.
■ Abortamento terapêutico
O abortamento terapêutico é a interrupção médica ou cirúrgica de uma gestação antes do tempo de viabilidade fetal a fim de prevenir lesão corporal grave ou permanente na mãe. As indicações incluem doença cardíaca persistente após descompensação cardíaca, doença vascular hipertensiva avançada e carcinoma invasivo do colo uterino. Além dos distúrbios clínicos e cirúrgicos que podem ser uma indicação para interrupção da gestação, existem outros. A maioria das autoridades considera apropriada a interrupção em casos de estupro ou incesto.* Outra indicação que costuma ser citada é para evitar o nascimento de um feto com significativa deformidade anatômica ou mental. A gravidade das deformidades fetais varia muito e costuma desafiar as classificações sociais ou legais.
■ Abortamento eletivo
O abortamento eletivo ou voluntário é a interrupção da gestação antes da viabilidade por solicitação da mulher, mas não por razões de saúde materna ou doença fetal. A maioria dos abortamentos realizados hoje está nesta categoria; de fato, há aproximadamente 1 abortamento eletivo para cada 4
nascimentos vivos nos Estados Unidos.
CAUSAS
Há uma variedade de etiologias maternas e fetais para abortamentos espontâneos, as quais são resumidas a seguir.
■ Aneuploidia
O achado morfológico mais comum em abortamentos espontâneos precoces é uma anomalia de desenvolvimento do zigoto, do embrião ou do feto ou, às vezes, da placenta, sendo comuns as anomalias cromossômicas. Por exemplo, 60% dos embriões abortados têm anormalidades. A trissomia
autossômica é a anomalia cromossômica mais frequentemente identificada em abortamentos do primeiro trimestre. As consideradas mais comuns são as trissomias do 13, 16, 18, 21 e 22. A monossomia X (45,X) é a anormalidade cromossômica mais comum que vem a seguir e é compatível com nativivos femininos (p. ex., síndrome de Turner). A triploidia é frequentemente associada à degeneração hidrópica da placenta. As molas hidatidiformes incompletas podem ter desenvolvimento fetal triploide ou trissômico para o cromossomo 16. Os fetos tetraploides raras vezes nascem vivos e são abortados com maior frequência no início do primeiro
trimestre. Três quartos dos abortamentos com aneuploidia ocorrem antes de 8 semanas, enquanto os abortos euploides têm pico em torno de 13 semanas. A incidência desse último aumenta de forma dramática depois da idade materna de 35 anos.
■ Infecção
Os abortamentos espontâneos têm sido independentemente associados à presença de anticorpos maternos para o vírus da imunodeficiência humana 1 (HIV-1), à soropositividade materna para sífilis e à colonização vaginal com estreptococos do grupo B. Há evidências que apoiam o papel do Mycoplasma hominis e do Ureaplasma urealyticum nos abortamentos. Não foi provado que infecções crônicas com organismos como Brucella abortus, Campylobacter fetus, Toxoplasma gondii, Listeria monocytogenes ou Chlamydia trachomatis estão associadas ao abortamento espontâneo.
■ Anormalidades endócrinas
O hipotireoidismo clínico não está associado ao aumento na incidência de abortos. Contudo, as mulheres com autoanticorpos para tireoide podem ter risco aumentado. Os abortamentos espontâneos e as malformações congênitas maiores têm incidência elevada em mulheres com diabetes insulino-dependente, e esse risco está relacionado ao grau de controle metabólico. A secreção insuficiente de progesterona pelo corpo lúteo ou pela placenta foi associada a um aumento na incidência de abortamento; contudo, isso pode ser considerado muito mais uma consequência do que uma causa para perdas gestacionais precoces.
■ Nutrição
Não há evidência conclusiva de que a deficiência dietética de qualquer nutriente ou a deficiência moderada de todos os nutrientes seja uma causa importante de abortamento.
■ Uso de drogas
O tabagismo está associado a um aumento no risco de abortamento euploide. Para mulheres que fumam mais de 14 cigarros por dia, o risco praticamente dobra. O uso frequente de álcool durante as primeiras 8 semanas pode resultar em ambos (abortamento espontâneo e malformações fetais). A taxa de abortamento é duplicada em mulheres que bebem 2 vezes por semana e triplicada para as que consomem álcool diariamente. Aparentemente, o consumo de mais de 4 xícaras de café por dia, aumenta o risco de abortamento espontâneo. Não há evidências que apoiem a ideia de que contraceptivos orais ou agentes espermicidas usados em cremes e geleias contraceptivos aumentem a incidência de abortamentos. Os dispositivos intrauterinos, contudo, estão associados a um aumento na incidência de abortamentos sépticos após a falha de contracepção.
■ Fatores ambientais
Em doses suficientes, a radiação constitui um abortivo reconhecido. As evidências atuais sugerem que não há risco de abortamento para doses de radiação inferiores a 5 rads. Na maioria das situações, contudo, há poucos dados indicativos de risco de um agente ambiental específico.
■ Anormalidades imunológicas
Existem dois modelos fisiopatológicos primários para abortamentos espontâneos associados ao sistema imune, os quais constituem as teorias autoimune (imunidade contra a própria pessoa) e aloimune (imunidade contra outra pessoa). Até 15% das mulheres com perda gestacional recorrente têm fatores autoimunes. A síndrome de anticorpos antifosfolipídeos é a doença autoimune cuja associação com abortamento espontâneo está melhor demonstrada. O mecanismo da perda gestacional nessas mulheres parece envolver a trombose e o infarto placentário. Os anticorpos antifosfolipídeos são adquiridos e direcionados contra os fosfolipídeos. Os anticorpos antifosfolipídeos IgG e IgM melhor demonstrados são o anticoagulante lúpico (ACL), o anticorpo anticardiolipina (ACA) e o antibeta-2 glicoproteína 1. Algumas mulheres com perdas recorrentes tiveram como diagnóstico a causa aloimune. A validade desse parecer permanece duvidosa e a imunoterapia para abortamento recorrente deve ser considerada experimental.
■ Trombofilia herdada
Há numerosos relatos de uma associação entre abortamento espontâneo e trombofilias herdadas, como as deficiências de proteína C, proteína S e antitrombina III. A mutação do fator V de Leiden e a hiperhomocisteinemia também foram associadas à perda gestacional. Embora seja controverso, muitos acreditam que a terapia com heparina e aspirina melhoram os desfechos da gestação.
■ Defeitos uterinos
Os defeitos uterinos podem ser genéticos ou adquiridos. Os defeitos adquiridos, como leiomiomas grandes ou múltiplos, geralmente não causam abortos a menos que sejam submucoso ou localizados no segmento uterino inferior. As sinéquias uterinas (síndrome de Asherman) são causadas pela destruição de grandes áreas do endométrio por curetagem e têm sido associadas ao abortamento espontâneo. Os defeitos uterinos genéticos são consequências de formação ou fusão anormal dos ductos müllerianos; ou podem ser induzidos pela exposição do útero ao dietilestilbestrol. Alguns tipos, como o septo uterino, podem estar associados a abortamentos.
■ Incompetência cervical
A cérvice incompetente é caracterizada por dilatação cervical indolor que ocorre no segundo trimestre ou às vezes no início do terceiro trimestre e pode apresentar prolapso e protusão das membranas para a vagina, seguido de ruptura de membranas e expulsão de um feto imaturo.
■ Laparotomia
Não há evidências de que uma cirurgia realizada no início da gestação cause abortamento. Entretanto, a peritonite aumenta o risco.

Fonte: Manual de Obstetrícia de Williams - Complicações na Gestação - 23ª Ed. 2014