quarta-feira, 28 de outubro de 2015

HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DA CIRURGIA

    
      
A história das doenças é tão antiga quanto a história da humanidade. Consideramos que a cirurgia e as doenças têm idades semelhantes. As formas tradicionais de patologias – traumatismos, tumores, infecções e doenças congênitas – praticamente se iniciaram nos primórdios da espécie humana. Dessa forma, os cirurgiões, nos dias atuais, tratam doenças análogas às que eram atendidas pelos cirurgiões de tempos antigos. Da mesma maneira que hoje, os cirurgiões da antiguidade atendiam pacientes feridos, tentavam estancar sangramentos e retirar tumorações. Nas antiguidades romana e grega, os cirurgiões eram considerados especialistas, na medida em que os médicos tradicionais recorriam a dietas e drogas. Nos traumas, sempre se recorria aos cirurgiões. Nos estudos atribuídos a Hipócrates, figuram textos sobre fraturas, luxações e outras patologias de terapêutica cirúrgica. Um dos mais importantes desses estudos foi o livro intitulado Sobre a cirurgia (400 a.C.), no qual o autor descrevia as qualificações que um cirurgião deveria ter e quais eram suas
atribuições. Além de Hipócrates, autor de aproximadamente
70 obras, uma das maiores autoridades em medicina grega foi o enciclopedista romano do início do primeiro século d.C., Auto Cornélio Celso, autor da definição clássica da inflamação (“as características da inflamação são: tumor, rubor, calor e dor”). Contudo, mais interessantes ainda foram os conceitos de Celso a respeito da cirurgia. No final da idade média, quando a medicina parecia estagnada, a cirurgia desenvolveu- se mais do que outras áreas da medicina. No Renascentismo, os cirurgiões e os médicos não-cirurgiões vislumbraram que a sua união permitiria um maior desenvolvimento no combate às doenças, uma vez que durante 1.500 anos houve uma nítida separação entre o que hoje poderíamos definir como clínicos e cirurgiões. 

É impossível escrever sobre a história da cirurgia sem citar Pare, Vesálio, Hunter, Lister, Halsted e outros que serão citados posteriormente. Poucos foram tão populares na história da medicina moderna quanto Ambroise Pare (1510-1590). Destaca-se seu espetacular trabalho no estudo da anatomia humana relacionada à cirurgia. As origens do estudo da anatomia são obscuras, contudo, os primeiros cirurgiões que tratavam pacientes feridos tinham algum conhecimento a respeito. A dissecção anatômica começou a ser efetuada no final do século XIII, entretanto, os primeiros trabalhos ilustrados sobre anatomia humana devem- se ao estudo magnífico de André Vesálio. A importância de Vesálio está ligada ao fato de ele ter iniciado um programa de estudo de anatomia. São de Vesálio as impressionantes obras De humani corporis fabrica e Epítome, sendo esta última tida como um dos primeiros guias estudantis para o estudo da anatomia humana. refere ao estudo da anatomia é o de Henry Gray, que, em 1859, apresentou a primeira edição de sua obra Anatomia descritiva e cirúrgica. Um dos grandes momentos da medicina do século XVIII foi a publicação de Localização e causas da doença investigadas pela anatomia, em 1761, de Giovann Morgagni. Anatomista igualmente magnífico, John Hunter (1728-1793) é considerado o precursor da cirurgia experimental. Além do desenvolvimento dessa arte, cabe a Hunter o Tratado sobre o sangue, a inflamação e feridas por projéteis de armas de fogo, publicado um ano após a sua morte. Sendo assim, Hunter mereceu o pitáfio proposto pelo médico historiador Fielding Garrison: “Com o advento de John Hunter, a cirurgia deixou de ser considerada apenas uma forma técnica de tratamento e começou a se impor como um ramo da medicina científica, firmemente embasado na fisiologia e na patologia”. 


Os cirurgiões do século XVIII tiveram importância na reforma sanitária ocorrida nesse período. Edmund Park e John Simon, na Inglaterra, e Stephen Smith e Willard Parker, nos Estados Unidos, simbolizam esse momento. No início do século XIX, os procedimentos cirúrgicos ainda não eram freqüentes. Na Inglaterra e na América, alguns dias da semana eram dedicados a operações cirúrgicas. Contudo, a dor, a infecção, a hemorragia e o choque eram as quatro maiores dificuldades para o desenvolvimento da cirurgia. Uma vez que o objetivo da ciência médica é aliviar a dor e o sofrimento, o desenvolvimento da anestesia para uso durante as cirurgias figura como uma das maiores descobertas da ciência. O uso de álcool, raiz de mandrágora e ópio era, de algum modo, já conhecido. Contudo, o uso realmente efetivo da anestesia geral pode ser datado da década de 1840. Wiliam T.G. Morton (1819-1868), um cientista de Boston, demonstrou o bem-sucedido uso da anestesia com éter em 16 de Outubro de 1846, no Massachusetts General Hospital. No entanto, mesmo com esmerada técnica cirúrgica, os operadores hábeis constatavam com freqüência que seu trabalho tornava-se inútil diante dos processos infecciosos pós-operatórios. Joseph Lister (1827-1912) não se conformava com esse fato e, por isso, tratou de convencer o mundo de que a infecção era prejudicial e poderia ser prevenida e tratada. Dessa forma, podemos intitular Lister como o criador da cirurgia anti-séptica. Na Escócia, Lister investigou problemas relacionados à cirurgia, como a inflamação, a cicatrização das feridas e o papel da coagulação. A despeito de Lister realizar as primitivas esterilizações em suas enfermarias e de realizar as cirurgias da forma mais higiênica possível, a taxa de gangrenas, piemias e infecções gerais entre seus pacientes era muito alta. Por volta de 1865, o cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) desenvolveu a teoria da produção da doença infecciosa por germes, e coube a Lister a plena compreensão do significado e da importância do trabalho de Pasteur. Portanto, talvez seja digno definir que a anti-sepsia e o controle inicial da infecção têm nesses dois nomes a referência histórica que fez mudar os horizontes da cirurgia, fazendo dessa arte uma ciência mais segura no combate às enfermidades. No que se refere à definição do papel do sangue e dos líquidos corporais, somente em 1850 Claude Bernard, com a publicação de Líquidos no organismo, deu início a esse entendimento. As necessidades nutricionais dos pacientes cirúrgicos foram objetivos da atenção de Jonathan Rhoads, professor da Universidade da Pensilvânia, cabendo a ele e a seu colega Stanley Dudrick os primeiros estudos relacionados à hiperalimentação parenteral total, na metade do século XX. Já o treinamento e a qualificação do cirurgião tiveram origem no nome de William S. Halsted (1852-1922), brilhante cirurgião americano que introduziu o sistema de treinamento em residência nos Estados Unidos, além de contribuir decisivamente para o estudo das cirurgias de tireóide, mama e hérnia.
 

Deve-se a Halsted a preleção O treinamento do cirurgião, Yale, 1904, que define as atribuições do cirurgião, bem como os métodos de treinamento para ser alcançada a prática cirúrgica. Quinze anos antes, 1989, quando da inauguração do John Hopkins Hospital, Halsted foi nomeado
cirurgião titular, tornando-se Professor de Cirurgia da primeira turma médica três anos depois. É importante lembrar que Halsted igualmente estudou cirurgia, histologia
e patologia em vários centros alemães, observando os trabalhos de Bergmann, Volkmann, Billroth, Esmarch e Mikulicz em suas clínicas. Dessa forma, tornou- se partidário do uso da anti-sepsia e dos métodos de treinamento obstinados dos alemães na América. Halsted era um professor rigoroso e considerava Theodor Kocher (1841-1917), de Berna, Suíça, o maior cirurgião de sua época. Kocher ficou conhecido graças aos seus trabalhos sobre o cérebro e a medula. Pioneiro no estudo da cirurgia da tireóide, Kocher recebeu o Prêmio Nobel, em 1909, pelo trabalho sobre tratamento cirúrgico do bócio tireóideo, primeira vez que este prêmio foi concedido a um cirurgião. Em seu trabalho, Kocher desenvolveu a técnica cirúrgica da tireóide e contribuiu para a compreensão do papel da tireóide no metabolismo corporal.
 


Ainda no que se refere ao treinamento em cirurgia, é fundamental citar Bernhardt von Langenbeck (1810-1887), mestre cirurgião alemão conhecido como o pai do sistema de residência moderna em cirurgia. Entre seus alunos, incluem-se o próprio Theodor Kocher e outro Theodor, cujo inesquecível sobrenome é Billroth (1829-1894), professor de Cirurgia da Universidade de Viena e pioneiro da cirurgia abdominal. Outro momento significativo a ser referido neste momento é a descoberta dos raios X, em 1895, por Wilhelm K. Rontgen (1845-1923), que consistiu em uma grande contribuição para a propedêutica cirúrgica. 


Outro nome importante a ser lembrado em relação ao início do século XX é o de Sir Alexander Fleming, que descreveu e isolou um agente inibitório que chamou de lisozima e, anos após, estudando evolutivamente seu achado, acabou por originar uma importante substância antibacteriana, denominada, então, penicilina. É provável que, mais recentemente, em cirurgia, nenhum assunto tenha se popularizado tanto quanto os transplantes de órgãos, a tal ponto que, em 1990, Joseph E. Murray recebeu um Prêmio Nobel por seus trabalhos sobre transplante renal. No que se refere à história e à evolução da cirurgia laparoscópica, é importante lembrar que, em 1983, Mouret, na França, e Semm, na Alemanha, publicaram suas experiências com a apendicectomia laparoscópica. Em 1987, Philippe Mouret, de Lyon, realizou a primeira colecistectomia laparoscópica da história da medicina. Já a partir do ano seguinte, iniciaramse na videocolecistectomia vários cirurgiões renomados, tais como François Dubois, da França, Saye e Mickernan, dos Estados Unidos. Perissat, eminente cirurgião francês, publicou a primeira grande série de colecistectomias laparoscópicas, com 42 casos, no período de novembro de 1988 a junho de 1989. Em 1990, durante o Segundo Congresso Mundial de Cirurgia Endoscópica, em Atlanta (EUA), foram apresentadas as primeiras grandes séries de videocolecistectomias, por François Dubois, com 350 casos, e Reddick, de Nashville, com 200 casos. No Brasil, a introdução da colecistectomia videolaparoscópica se deve a Thomas Szego no ano de 1990.8 Ainda neste ano, a mesma cirurgia foi realizada por Áureo Ludovico de Paula, em Goiás, e por Célio D. Nogueira, em Minas Gerais. Logo após, no ano seguinte, a técnica avançou com Osmar Creuz, no Rio de Janeiro, e Pablo Roberto Miguel, no Rio Grande do Sul. 



Na última década do século XX, a colecistectomia laparoscópica passou a constituir-se no método de preferência para o tratamento das colecistopatias. Em decorrência da freqüência com que é realizada essa operação, os cirurgiões viram-se obrigados a incorporar a videolaparoscopia em suas condutas clínico-cirúrgicas,9 o que também tornou necessário o desenvolvimento de cursos de treinamentos didáticos de pós-graduação e em laboratório. Em relação à cirurgia bariátrica, com o crescimento da patologia obesidade na América, é válido lembrar que, nas décadas de 1960 e 1970, os cirurgiões que realizavam cirurgia para reduzir a obesidade utilizavam mais os procedimentos que diminuíam a absorção intestinal. Edward Mason, na Universidade de Iowa, começou a utilizar uma técnica que reduzia acentuadamente o tamanho do reservatório gástrico, com base na observação de que as gastrectomias parciais que deixavam um coto gástrico pequeno remanescente resultavam em emagrecimento significativo. Também nessas décadas, Nicola Scopinaro, cirurgião italiano, desenvolveu a derivação bileopancreática, técnica cirúrgica que busca a perda de peso do paciente por meio da disabsorção alimentar. Contudo, o chamado “padrão-ouro” em cirurgia bariátrica se relaciona às técnicas mais realizadas atualmente, os quais foram propostas por Mathias Fobi e Rafael Capella (com anel de contensão) e por Wittgrove e Clark (sem anel de contensão). A restrição se fundamenta na feitura de um pequeno estômago com anastomose gastrojejunal estenosada (Wittgrove e Clark) ou com uma cinta restritiva feita por um tubo de silicone (Fobi), ou, ainda, com uma fita de polipropileno (Capella) que engloba a circunferência do neoestômago. Em relação ao atendimento do paciente politraumatizado, a cirurgia geral na área de atuação de cirurgia do trauma tem se preocupado em evoluir na sistematização do atendimento, especialmente com a utilização do hoje mundialmente conhecido ATLS (Advanced Trauma Life Suport).  

Fonte: Silva, RS. Histórico e Evolução da cirurgia. in: Cavazolla LT, Silva RS, Bregeiron R. et al. Condutas em Cirurgia geral. Ed. ARTMED. 2008.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

HISTÓRIA DAS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL


Acesse o link abaixo
https://www.youtube.com/watch?v=ycDn-AwQIMI
Este texto tem por objetivo discutir a evolução das políticas de saúde no Brasil, como subsídio para uma melhor compreensão dos aspectos históricos que influenciaram a conformação de um sistema de saúde no Brasil reconhecidamente ineficaz e ineficiente no enfrentamento dos problemas de saúde da população. Esta situação crítica impôs a necessidade de mudanças nesse sistema e desencadeou o processo de implementação da reforma sanitária no Brasil, que tem como perspectiva fundamental a construção do Sistema Único de Saúde. Para esta análise histórica serão apresentados, organizados por períodos, excertos de vários outros textos de autores que se ocuparam deste tema, com a finalidade de apresentar uma síntese de contribuições que julgamos significativas para o debate sobre as políticas de saúde no Brasil. Iniciaremos a discussão abordando a concepção de políticas públicas, onde se inserem as políticas de saúde:

Entendemos as políticas públicas como sendo o conjunto das diretrizes e referenciais ético-legais adotados pelo Estado para fazer frente a um problema que a sociedade lhe apresenta. Em outras palavras, política pública é a resposta que o Estado oferece diante de uma necessidade vivida ou manifestada pela sociedade.

Ao responder, o Estado empresta ao problema maior ou menor importância, define seu caráter (social, de saúde, policial etc.), lança mão de instrumentos para seu equacionamento, define responsabilidades (ministérios, Congresso, Judiciário etc.) e adota, ou não, planos de trabalho ou programas" (Teixeira, 1997)
Portanto as políticas públicas são gestadas e implementadas pelo Estado para o enfrentamento de problemas sociais, dentre eles aqueles relacionados à saúde. É fácil perceber que existe uma discrepância entre o conjunto de problemas sociais e a a capacidade do Estado de enfrentá-los. Cabe então perguntar como o Estado atribui ao problema maior ou menor importância, ou seja, como o Estado prioriza os problemas que serão enfrentados por meio de políticas públicas em determinado período?

"(...)As diversas definições de políticas públicas atendem a diversos objetivos de estudo. Para os estudos sobre a história das políticas, pode ser útil adotar definições bastante genéricas, como a de Lemieux, que a concebe como '(...)tentativas de regular situações que apresentam problemas públicos, situações essas afloradas no interior de uma coletividade ou entre coletividades' (apud Vianna, 1997:207).Ao falar em tentativa, Lemieux pretende enfatizar que '(...)o ato de normatizar uma situação pode ser visto de diferentes formas pelos atores sociais envolvidos com uma determinada política. Um problema público pode ser considerado, ao mesmo tempo, como excessivamente regulado por um dos atores e não regulado por outro, dependendo do tipo de interferência que este problema tenha sobre a vida de cada um' (apud Vianna, 1997:207).
Uma definição desse tipo ressalta que as políticas públicas são sempre objeto de disputa entre diversos grupos, disputa que estende-se a própria decisão do que deve ser considerado em certo momento como um problema público e, portanto, deve ser alvo da ação regulatória do Estado. Em outros termos, há uma agenda de problemas públicos, isto é, problemas que devem ser alvo de políticas públicas, agenda esta que é continuamente negociada, tanto no que concerne à eventual inclusão de um novo tema no conjunto de problemas públicos, como no que se refere à sua importância relativa no interior da agenda. Da mesma forma que se pode falar em uma agenda das políticas públicas em geral, pode-se falar em agendas específicas de cada instituição ou agência que compõe o Estado nos mais diversos níveis de governo. Aqui também ocorrem demandas pela modificação da agenda dessas diferentes instituições governamentais. (...)É nesse sentido que podemos compreender qualquer política pública como uma resposta dada pelo Estado a um conjunto de demandas postas pela sociedade." (Mattos, 1999)
Aqui, aparece um conceito importante para o entendimento do processo de implementação de políticas públicas, que é o conceito de ator social, "(...) entendido como um coletivo de pessoas ou, no seu extremo, uma personalidade que participa de determinada situação, tem organização minimamente estável, é capaz de intervir nesta situação e tem um projeto. O conceito de problema também é fundamental (...). Pode-se entender como problema uma necessidade não satisfeita, desde que se tenha consciência desta e o desejo de satisfazê-la. Cabe observar que, em determinadas situações, o que é problema para um ator pode ser oportunidade para outro". (Acurcio et al., 1998)
Portanto, a elaboração, implementação e resultados obtidos por determinada política pública tem estreita relação com a disputa de projetos dos diversos atores sociais interessados no(s) problema(s) a ser(em) enfrentado(s) por esta política. Assim, cada ator social ao escolher o(s) problema(s), delimitá-lo(s) e construir as estratégias de ação a serem desenvolvidas no âmbito institucional, expressa um projeto de política, articulado à determinadas forças sociais.
"A política de saúde de uma época reflete o momento histórico no qual foi criada, a situação econômica, os avanços do conhecimento científico, a capacidade das classes sociais influenciarem a política etc." (CEFOR, s.d.). O êxito e o grau de implementação de seu(s) projeto(s) dá a dimensão da capacidade de determinados atores/forças sociais influenciarem a política de saúde em um contexto histórico, em detrimento de outros atores e projetos.

Sendo assim, pode ser útil "recuperar a dimensão simbólica da cidadania, enquanto valor a orientar (ou não) as opções políticas dos sujeitos sociais fundamentais quanto à elaboração, implementação e/ou reivindicação de políticas sociais. (...) A idéia da cidadania ocupa um lugar central no ideário e na institucionalidade política democráticas, por sua associação com o valor da liberdade e com os direitos dele derivados. (...) Em sua versão liberal-democrática, a idéia da cidadania foi , talvez, mais bem sistematizada por T.H. Marshall, que a compreende como um composto de três elementos: civil, político e social. Os direitos que materializam a liberdade individual ('liberdade de ir e vir, de imprensa, de pensamento e fé, direito à propriedade, a concluir contratos válidos e de defender e afirmar todos os direitos em termos de direito à justiça') constituem o núcleo civil da cidadania, que tem por fiadores os tribunais. No campo político, afirma-se o 'direito à participação no exercício do poder', como 'membro ou eleitor dos membros das instituições investidas de poder político, como o Parlamento e demais câmaras representativas ou conselhos de governo'. Já os direitos sociais não envolvem definição precisa, pois estão relacionados ao padrão de desenvolvimento das sociedades, implicando desde o 'direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança' até o direito à 'participação total' nos níveis de 'vida civilizada' prevalentes em cada sociedade. Direitos que se exercem, fundamentalmente, através do sistema educacional e dos serviços sociais." (Leite, 1991)
"Debatido e criticado, mas igualmente difundido e arraigado, o chamado Welfare State é uma referência indispensável para se pensar o Estado contemporâneo. Quase todos os países possuem mecanismos públicos de proteção social. De um ponto de vista formal, eles se assemelham muito (são, em geral programas previdenciários, assistenciais e de saúde); porém quando examinados sob a ótica de como operam (formas de financiamento, cobertura, tipos de programas, acesso etc), se diversificam em inúmeras modalidades. (...) É política, entretanto, a dimensão essencial à própria existência do Welfare State: a constituição de uma esfera pública inclusiva. A mobilização popular por direitos sociais esbarra em obstáculos tão mais graves quanto menos a sociedade se apresenta integrada politicamente. 'Estar no mesmo barco', noção (compartilhada por todos) que embasa a solidariedade do Welfare State social-democrático, segundo Esping-Andersen, requer que todos realmente estejam, e se reconheçam como estando, no mesmo barco. (...) A despeito do aparente etnocentrismo de suas formulações (a cronologia inglesa, que descreve, pode ser entendida até como metáfora), Marshall fornece um quadro conceitual valioso quando concebe cidadania como incorporação progressiva de direitos civis, políticos e sociais. O suposto básico não é que, para tornar-se efetiva, a cidadania tenha que seguir formalmente aqueles passos, e sim que a efetividade da cidadania significa a amplificação da medida de igualdade representada pelo pertencimento à comunidade, que se estende (a todos) e se enriquece (pelos ditos direitos). 'A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais em relação aos direitos e obrigações pertinentes ao status' (...) Marshal descreveu uma seqüência de expansão das prerrogativas (civis, políticas e sociais). Ela tem importância, na medida que se entenda a cidadania como contrapartida do Welfare State" (Vianna, 1991).
As profundas, amplas e velozes transformações observadas no mundo ao longo das últimas três décadas, principalmente àquelas originadas no campo da política e economia e denominadas de "globalização" , têm evidenciado a necessidade de transformação do Estado e por conseqüência produzido um acalorado debate sobre a abrangência e direcionalidade das políticas públicas.

" O reconhecimento desta necessidade está longe de significar o perfilhamento aos argumentos do discurso neo-liberal que presidiu o debate na década anterior, preconizando a devolução ao mercado não apenas das funções produtivas como também de muitas funções regulatórias e, em particular, a ruptura com o padrão de solidariedade que caracterizou a organização social e orientou a intervenção estatal até o fim dos anos setenta (...) e que se convencionou chamar 'Welfare State' (...) Desde os primeiros momentos do processo de transformação produtiva, quando a crise do padrão fordista se explicitou, o Welfare State foi responsabilizado pelas dificuldades financeiras com que se defrontavam os diversos Estados nacionais. A crise de financiamento apontava caminhos que envolviam a restrição de direitos sociais e de benefícios como única alternativa de sua superação, e a maior parte das medidas de política, em diferentes países, se pautou por este diagnóstico.(...) No entanto, se nos países desenvolvidos a reorganização do Estado tem se realizado sem que os direitos sociais sejam afetados em seus aspectos essenciais, a questão assume outros contornos em países como o Brasil, em que a crise no plano econômico se associou a uma crise do regime político, coincidindo com o início do processo tardio de construção da cidadania. Aqui, as conquistas ainda estão se consolidando e suas forças sociais de sustentação têm densidade que pode ser ainda insuficiente para sustentá-las. (...) Construir o NOVO significa buscar estratégias viabilizadoras de políticas públicas includentes, tendentes à universalização, direcionadas à construção de uma sociedade mais equânime e menos desigual, enfrentando as tendências, e não subordinando-se a elas. (...) Mais do que hospitais, o que precisa ser assegurado aos cidadãos é qualidade de vida. Essa é mais uma das razões pelas quais a existência de um sistema público estatal de atenção à saúde é importante numa sociedade como a brasileira. Ele deve ser também um espaço catalizador de ações multisetoriais, promotor da articulação das políticas públicas necessárias para assegurar a saúde e interromper os ciclos de transmissão de doenças. (...) Numa sociedade que tem os níveis de exclusão da nossa, em que pelos menos vinte por cento da população sobrevive em condições extremamente precárias, em decorrência de um processo histórico de desenvolvimento que produziu uma das mais desiguais distribuições de renda do mundo, a garantia do direito à saúde não pode prescindir de uma estratégia integrada de ação estatal. E se pensarmos nas possibilidades de agravamento desse quadro determinadas pelo processo de transformação da economia mundial num futuro próximo, mais importante ainda se afigurará a ação estatal no equacionamento da questão social. (...) Nesse contexto, que características deve ter o sistema de saúde para que a população brasileira possa exercer o seu direito?
- Deve ser acessível a todo cidadão, independente de sua capacidade financeira ou de sua forma (ou possibilidade) de inserção no mercado de trabalho;
- Deve ser capaz de responder às exigências postas pela transformação do quadro demográfico e do perfil epidemiológico, garantindo a adequação das ações às demandas postas pelos diferentes quadros sanitários, nas diversas regiões do país;
- Deve ter como objetivo a construção e a preservação da saúde e não apenas a cura da doença;
- Deve operar de modo articulado, sujeito aos mesmos princípios e diretrizes, viabilizando a integralidade dos cuidados com saúde e oferecendo serviços de boa qualidade;
- Deve, para assegurar tudo isso, contar com um processo decisório participativo e submeter-se ao controle dos sujeitos sociais. Em resumo, acesso universal, integralidade da atenção, ênfase em ações de promoção e proteção da saúde, descentralização, participação social. Exatamente o que a legislação brasileira hoje em vigor - e ainda não inteiramente implementada propõe para o SUS." (Barros, 1996)

"O processo de construção do Sistema Único de Saúde é resultante de um conjunto de embates políticos e ideológicos, travados por diferentes atores sociais ao longo dos anos. Decorrente de concepções diferenciadas, as políticas de saúde e as formas como se organizam os serviços não são fruto apenas do momento atual, ao contrário, têm uma longa trajetória de formulações e de lutas. A busca de referências históricas do processo de formulação das políticas de saúde, e da vinculação da saúde com o contexto político mais geral do país, pode contribuir para um melhor entendimento do momento atual e do próprio significado do SUS." (Cunha & Cunha, 1998)
Nesta perspectiva, passamos a discutir alguns aspectos fundamentais da evolução histórica das políticas de saúde no Brasil, neste século, sintetizados de acordo com seu período de ocorrência .
A primeira república (1889 - 1930)

"Durante a República Velha (1889-1930) o país foi governado pelas oligarquias dos estados mais ricos, especialmente São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A cafeicultura era o principal setor da economia, dando aos fazendeiros paulistas grande poder de decisão na administração federal. (...) Os lucros produzidos pelo café foram parcialmente aplicados nas cidades. Isso favoreceu a industrialização, a expansão das atividades comerciais e o aumento acelerado da população urbana, engrossada pela chegada dos imigrantes desde o final do século XIX" (Bertolli Filho, 1996)
"(...) com a abolição da escravidão em 1888, consolidou-se o processo de substituição da mão de obra escrava pela assalariada, de origem européia. (...) Na industria nascente também utilizou-se mão de obra européia, que chegou da Europa carregada de idéias anarquistas. Foram freqüentes os protestos e greves neste período. No que se refere à situação de saúde, as epidemias continuavam a matar a escassa população, diminuindo o número de pessoas dispostas a vir para o Brasil. Por isso, o governo da época foi obrigado a adotar algumas medidas para melhorar esta situação" (CEFOR, s.d.)
"Nesse período, foram criados e implementados os serviços e programas de saúde pública em nível nacional (central). À frente da diretoria Geral de Saúde Pública, Oswaldo Cruz, ex-aluno e pesquisador do Instituto Pasteur, organizou e implementou progressivamente, instituições públicas de higiene e saúde no Brasil. Em paralelo, adotou o modelo das 'campanhas sanitárias', destinado a combater as epidemias urbanas e, mais tarde, as endemias rurais.(...) Em termos de poder, o próprio nome sugere que o modelo campanhista é de inspiração bélica, concentra fortemente as decisões, em geral tecnocráticas, e adota um estilo repressivo de intervenção médica nos corpos individual e social." (Luz, 1991)
"A crescente intervenção médica nos espaços urbanos foi recebida com desconfiança e medo pela população. A retirada à força da população dos ambientes a serem saneados foi constantemente acompanhada pela vigilância policial, pois temia-se que o povo se revoltasse, agredindo os agentes sanitários. Além disso, muitas vezes a polícia agia com violência sem motivo, reproduzindo as formas repressoras comumente empregadas pelo regime oligárquico contra os protestos coletivos como passeatas e greves." (Bertolli Filho, 1996)
"A oposição ao modo como eram feitas (as campanhas) pode ser evidenciada na revolta contra a vacina obrigatória (contra varíola), em 1904. Liderados por um grupo de cadetes positivistas que eram oposição ao governo, muitos se revoltaram acusando o governo de despótico, de devassar a propriedade alheia com interdições, desinfecções, da derrubada maciça de bairros pobres, de arrombamentos de casas para nelas entrarem à força. A revolta é reprimida pois a questão saúde ainda era concebida como uma questão policial" (CEFOR, s.d.)
"Impressionado e desgastado com os acontecimentos, o governo revogou a obrigatoriedade da vacina, tornando-a opcional para todos os cidadãos." (Bertolli Filho, 1996)
"No campo da assistência médica individual, as classes dominantes continuaram a ser atendidas pelos profissionais legais da medicina, isto é, pelos 'médicos de família'. O restante da população buscava atendimento filantrópico através de hospitais mantidos pela igreja e recorria à medicina caseira". (CEFOR, s.d.)
"O surgimento da Previdência Social no Brasil se insere num processo de modificação da postura liberal do Estado frente à problemática trabalhista e social, portanto, num contexto político e social mais amplo. Esta mudança se dá enquanto decorrência da contradição entre a posição marcadamente liberal do Estado frente às questões trabalhistas e sociais e um movimento operário-sindical que assumia importância crescente e se posicionava contra tal postura. Esta também é a época de nascimento da legislação trabalhista brasileira. Em 1923 é promulgada a lei Eloy Chaves, que para alguns autores pode ser definida como marco do início da Previdência Social no Brasil. No período compreendido entre 1923 e 1930 surgem as Caixas de Aposentadoria e Pensões - CAPs. Eram organizadas por empresas, de natureza civil e privada, responsáveis pelos benefícios pecuniários e serviços de saúde para os empregados de empresas específicas. As CAPs eram financiadas com recursos dos empregados e empregadores e administradas por comissões formadas de representantes da empresa e dos empregados. Cabia ao setor público apenas a resolução de conflitos. No modelo previdenciário dos anos 20 a assistência médica é vista como atribuição fundamental do sistema, o que levava, inclusive, à organização de serviços próprios de saúde. Caracteriza ainda este período, o elevado padrão de despesa. Estas duas características serão profundamente modificadas no período posterior" (Cunha & Cunha, 1998)
A Era Vargas (1930 - 1945)

"A revolução de 1930 marcou o fim da hegemonia política da classe dominante ligada à exportação do café. A crise de 1929 afetou as exportações, provocando uma enorme queda nos preços do café. O governo, impossibilitado de continuar a exercer a política de proteção aos preços do café, devido à crise que afetava os cofres públicos, estava perdendo legitimidade. Assim, em 1930 ocorreu a revolução, liderada por frações da classe dominante que não estavam ligadas à exportação de café. Além disso, o movimento contou com o forte apoio de camadas médias urbanas, como intelectuais, profissionais liberais, militares, particularmente os tenentes" (CEFOR, s.d.)
"Investido na Presidência da República pela revolução de 1930, Getúlio Vargas procurou de imediato livrar o Estado do controle político das oligarquias regionais. Para atingir este objetivo promoveu uma ampla reforma política e administrativa (...) suspendeu a vigência da Constituição de 1891 e passou a governar por decretos até 1934, quando o Congresso Constituinte aprovou a nova Constituição. As dificuldades encontradas para governar democraticamente levaram Vargas a promover uma acirrada perseguição policial a seus opositores e aos principais líderes sindicais do país, especialmente a partir de 1937, quando foi instituída a ditadura do Estado Novo. Durante todo o seu governo - que durou até 1945 - Vargas buscou centralizar a máquina governamental e também bloquear as reivindicações sociais. Para isso recorreu a medidas populistas, pelas quais o Estado se apresentava como pai, como tutor da sociedade, provendo o que julgava ser indispensável ao cidadão. As políticas sociais foram a arma utilizada pelo ditador para justificar diante da sociedade o sistema autoritário, atenuado pela 'bondade' do presidente." (Bertolli Filho, 1996)
"(...) o governo criou o Ministério do Trabalho, atrelando a ele Sindicatos e elaborou ampla legislação trabalhista. Regulamentando a relação entre o capital e o trabalho, o Estado criou condições indispensáveis para que a economia enfrentasse uma nova etapa, baseada na industrialização com objetivo de substituir importações. (...) No plano da política de saúde, pode-se identificar um processo de centralização dos serviços que objetivava dar um caráter nacional a esta política. Nesta época, uniformizou-se a estrutura dos departamentos estaduais de saúde do pais e houve um relativo avanço da atenção à saúde para o interior, com a multiplicação dos serviços de saúde" (CEFOR, s.d.)
"Em relação às ações de saúde coletiva, esta é a época do auge do sanitarismo campanhista.(...) No período 38/45 o Departamento Nacional de Saúde é reestruturado e dinamizado, articulando e centralizando as atividades sanitárias de todo o País. Em 1942 é criado o Serviço Especial de Saúde Pública - SESP, com atuação voltada para as áreas não cobertas pelos serviços tradicionais." (Cunha & Cunha, 1998).
"(...)compreendendo a conjuntura de ascendência e hegemonia do Estado populista, observamos a criação dos institutos de seguridade social (institutos de Aposentadorias e Pensões, IAPs), organizados por categorias profissionais. Tais institutos foram criados por Getúlio Vargas ao longo dos anos 30, favorecendo as camadas de trabalhadores urbanos mais aguerridas em seus sindicatos e mais fundamentais para a economia agroexportadora até então dominante. Ferroviários, empregados do comércio, bancários, marítimos, estivadores e funcionários públicos foram algumas categorias favorecidas pela criação de institutos. Todas constituíam pontes com o mundo urbano-industrial em ascensão na economia e na sociedade brasileira de então." (Luz, 1991).
"Diferentemente das CAPs, a administração dos IAPs era bastante dependente do governo federal. O conselho de administração, formado com a participação de representantes de empregados e empregadores, tinha uma função de assessoria e fiscalização e era dirigido por um presidente, indicado diretamente pelo Presidente da República. Há uma ampliação da Previdência com a incorporação de novas categorias não cobertas pelas CAPs anteriormente. (...) Do ponto de vista da concepção, a Previdência é claramente definida enquanto seguro, privilegiando os benefícios e reduzindo a prestação de serviços de saúde. (...) Caracterizam esta época a participação do Estado no financiamento (embora meramente formal) e na administração dos institutos, e um esforço ativo no sentido de diminuir as despesas, com a consolidação de um modelo de Previdência mais preocupado com a acumulação de reservas financeiras do que com a ampla prestação de serviços. Isto faz com que os superávits dos institutos constituam um respeitável patrimônio e um instrumento de acumulação na mão do Estado. A Previdência passa a se configurar enquanto 'sócia' do Estado nos investimentos de interesse do governo." (Cunha & Cunha, 1998).
O período de redemocratização (1945 - 1964)

" A vitória dos Estados Unidos e dos Aliados na Segunda Guerra Mundial teve imensa repercussão no Brasil. Grandes manifestações populares contra a ditadura acabaram resultando, em outubro de 1945, na deposição de Getúlio Vargas e, no ano seguinte, na elaboração de uma Constituição democrática de inspiração liberal. A partir de então e até 1964, o Brasil viveu a fase conhecida como período de redemocratização, marcado pelas eleições diretas para os principais cargos políticos, pelo pluripartidarismo e pela liberdade de atuação da imprensa, das agremiações políticas e dos sindicatos.
Mesmo sob regime democrático, a política populista inaugurada por Vargas foi mantida. Os presidentes da República continuaram a buscar apoio popular com medidas demagógicas, destinadas mais a firmar sua imagem como 'pais do povo' do que a resolver de fato os grandes problemas da população. Os movimentos sociais, por sua vez, exigiam que os governantes cumprissem as promessas de melhorar as condições de vida, de saúde e de trabalho. Neste contexto, a década de 50 foi marcada por manifestações nacionalistas, que procuravam firmar o país como potência capaz de alcançar seu próprio desenvolvimento econômico, independente das pressões internacionais e especialmente do imperialismo norte-americano. Ao mesmo tempo, houve um forte crescimento da entrada de capital estrangeiro na economia nacional, favorecendo a proposta desenvolvimentista, isto é, de modernização econômica e institucional coordenada pelo Estado. Esta política teve como principal personagem o presidente Juscelino Kubitscheck, que governou o país de 1956 a 1961." (Bertolli Filho, 1996)
"No campo da saúde pública vários orgãos são criados. Destaca-se a atuação do Serviço Especial de Saúde Pública - SESP, criado no período anterior, em 1942, em decorrência de acordo com os EUA. O SESP visava, principalmente, a assistência médica dos trabalhadores recrutados para auxiliar na produção da borracha na Amazônia e que estavam sujeitos à malária. A produção de borracha era necessária ao esforço de guerra dos aliados na 2ª guerra. Criou-se também o Ministério da Saúde, em 1953. As ações na área de saúde pública se ampliaram a ponto de exigir uma estrutura administrativa própria.
Neste período, os sanitaristas discutiam sobre política de saúde, refletindo o debate que acontecia sobre economia. Havia de um lado aqueles que achavam que as condições de saúde melhorariam se fossem utilizadas técnicas e metodologias adequadas, de outros países. O SESP era um exemplo deste grupo, pois, no início, a estrutura dos serviços era sofisticada e cara, semelhante à estrutura nos Estados Unidos. De outro lado haviam os sanitaristas que buscavam uma prática articulada com a realidade nacional. Mas por muitos anos, as idéias do primeiro grupo influenciaram a prática do governo." (CEFOR, s.d.)
"Nessa mesma época o Brasil passa a ser influenciado pelas idéias de seguridade social que são amplamente discutidas no cenário internacional ao final da II Guerra Mundial, em contraposição ao conceito de seguro da época anterior. (...) As ações de previdência são agora caracterizadas pelo crescimento dos gastos, elevação das despesas, diminuição de saldos, esgotamento de reservas e déficits orçamentários. (...) As explicações para tais mudanças podem ser colocadas enquanto resultado de uma tendência natural (maior número de pessoas recebendo benefícios, uma vez que esta é a época de recebimento de benefícios dos segurados incorporados no início do sistema); como também de mudanças de posições da Previdência Social (desmontagem das medidas de contenção de gastos dos anos 30/45; crescimento dos gastos com assistência médica, que sobe de 2,3% em 45 para 14,9% em 66; crescimento dos gastos com benefícios, em função do aumento de beneficiários, de mudanças nos critérios de concessão de benefícios e no valor médio destes)." (Cunha & Cunha, 1998).
"Quanto a assistência médica, os principais avanços ficaram por conta da luta dos sindicatos para que todos os IAPs prestassem assistência médica aos seus associados. Em 1960 é aprovada a lei que iguala os direitos de todos os trabalhadores, mas ela não é posta em prática. O próprio movimento sindical não via com bons olhos a unificação dos institutos pois isto poderia nivelar por baixo a qualidade dos serviços. Muitos deputados também estabeleciam seus vínculos com uma ou outra categoria, em cima da diferenciação dos institutos.
Neste período, os IAPs que possuíam recursos suficientes construíram hospitais próprios. Surgiram também os primeiros serviços médicos particulares contratados pelas empresas, insatisfeitas com o atendimento do Instituto dos Industriários - IAPI. Tem-se aí a origem dos futuros convênios das empresas com grupos médicos conhecidos como 'medicina de grupo', que iriam caracterizar a previdência social posteriormente.
O período caracteriza-se também pelo investimento na assistência médica hospitalar em detrimento da atenção primária (centros de saúde) pois aquele era compatível com o crescente desenvolvimento da industria de equipamentos médicos e da industria farmacêutica." (CEFOR, s.d.)
"Se as condições de vida da maior parte da população não pioraram, a consciência da dureza dessas condições foi se tornando cada vez mais clara no período. Mas, em presença da impossibilidade de soluções reais por parte das instituições, essa consciência originou um impasse nas políticas de saúde. Ele foi percebido, aliás, como um impasse estrutural, envolvendo o conjunto das políticas sociais e a própria ordem institucional e política. Uma saída histórica para esse impasse foi proposta pelo grande movimento social do início dos anos 60 no país, liderado e conduzido pelas elites progressistas que reivindicavam 'reformas de base' imediatas, entre as quais uma reforma sanitária consistente e conseqüente. Mas a reação política das forças sociais conservadoras levou ao golpe militar de 1964." (Luz, 1991)
O governo militar ( 1964 - 1980)

"No dia 31 de março de 1964, um golpe de Estado liderado pelos chefes das Forças Armadas colocou fim à agonizante democracia populista. Sob o pretexto de combater o avanço do comunismo e da corrupção e garantir a segurança nacional, os militares impuseram ao país um regime ditatorial e puniram todos os indivíduos e instituições que se mostraram contrários ao movimento autoproclamado Revolução de 64. Classificados como agentes do comunismo internacional, foram perseguidos muitos líderes políticos, estudantis, sindicais e religiosos, que lutavam pela melhoria das condições de saúde do povo. (...) Os generais presidentes promoveram alterações estruturais na administração pública, no sentido de uma forte centralização do poder, privilegiando a autonomia do Executivo e limitando o campo de ação dos poderes Legislativo e Judiciário. Sob a ditadura, a burocracia governamental foi dominada pelos tecnocratas, civis e militares, (...) responsáveis em boa parte pelo 'milagre econômico' que marcou o país entre 1968 e 1974. (...) Essa elevação do Produto Interno Bruto (PIB) foi resultado da modernização da estrutura produtiva nacional, mas também, em grande parte, da política que inibiu as conquistas salariais obtidas na década de 50. Criava-se assim uma falsa ilusão de desenvolvimento nacional, já que o poder de compra do salário mínimo foi sensivelmente reduzido, tornando ainda mais difícil a vida das famílias trabalhadoras." (Bertolli Filho, 1996)
"A política econômica e o forte arrocho salarial operaram intensa concentração de renda que resultou no empobrecimento da população. E esta situação se refletiu no crescimento da mortalidade e da morbidade. É quando ocorrem as epidemias de poliomielite e de meningite, sendo que as notícias sobre esta última foram censuradas nos meios de comunicação, em 1974." (CEFOR, s.d.)
"O primeiro efeito do golpe militar sobre o Ministério da Saúde foi a redução das verbas destinadas à saúde pública. Aumentadas na primeira metade da década de 60, tais verbas decresceram até o final da ditadura. (...) Apesar da pregação oficial de que a saúde constituía um 'fator de produtividade, de desenvolvimento e de investimento econômico', o Ministério da Saúde privilegiava a saúde como elemento individual e não como fenômeno coletivo. E isso alterou profundamente sua linha de atuação." (Bertolli Filho, 1996)
"Com o golpe de 1964 e o discurso de racionalidade, eficácia e saneamento financeiro, ocorre a fusão dos IAPs, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social - INPS. Este fato, ocorrido em 1966, marca também a perda de representatividade dos trabalhadores na gestão do sistema. (...) A criação do INPS insere-se na perspectiva modernizadora da máquina estatal, aumenta o poder de regulação do Estado sobre a sociedade e representa uma tentativa de desmobilização das forças políticas estimuladas em períodos populistas anteriores. O rompimento com a política populista não significou alteração em relação à política assistencialista anterior, ao contrário, o Estado amplia a cobertura da previdência aos trabalhadores domésticos e aos trabalhadores rurais, além de absorver as pressões por uma efetiva cobertura daqueles trabalhadores já beneficiados pela Lei Orgânica da Previdência Social. Excetuando os trabalhadores do mercado informal de trabalho, todos os demais eram cobertos pela Previdência Social. Em relação à assistência médica, observa-se um movimento ainda mais expressivo de ampliação de cobertura.
Os gastos com assistência médica, que continuaram a crescer neste período, chegam a representar mais de 30% dos gastos totais do INPS em 76. A ênfase é dada à atenção individual, assistencialista e especializada, em detrimento das medidas de saúde pública, de caráter preventivo e de interesse coletivo. Exemplo do descaso com as ações coletivas e de prevenção é a diminuição do orçamento do Ministério da Saúde, que chega a representar menos de 1,0% dos recursos da União.
Acontece uma progressiva eliminação da gestão tripartite das instituições previdenciárias, até sua extinção em 70. Ao mesmo tempo, a 'contribuição do Estado' se restringia aos custos com a estrutura administrativa. A criação do INPS propiciou a implementação de uma política de saúde que levou ao desenvolvimento do complexo médico-industrial, em especial nas áreas de medicamentos e equipamentos médicos. Ao mesmo tempo, e em nome da racionalidade administrativa, o INPS dá prioridade a contratação de serviços de terceiros, em detrimento de serviços próprios, decisão que acompanha a postura do governo federal como um todo." (Cunha & Cunha, 1998).
"No período de 1968 a 1975, generalizou-se a demanda social por consultas médicas como resposta às graves condições de saúde; o elogio da medicina como sinônimo de cura e de restabelecimento da saúde individual e coletiva; a construção ou reforma de inúmeras clínicas e hospitais privados, com financiamento da Previdência Social; a multiplicação de faculdades particulares de medicina por todo o país; a organização e complementação da política de convênios entre o INPS e os hospitais, clínicas e empresas de prestação de serviços médicos, em detrimento dos recursos - já parcos - tradicionalmente destinados aos serviços públicos. Tais foram as orientações principais da política sanitária da conjuntura do 'milagre brasileiro'.
Esta política teve, evidentemente, uma série de efeitos e conseqüências institucionais e sociais, entre as quais a progressiva predominância de um sistema de atenção médica 'de massa' (no sentido de 'massificado') sobre uma proposta de medicina social e preventiva (...); o surgimento e o rápido crescimento de um setor empresarial de serviços médicos, constituídos por proprietários de empresas médicas centradas mais na lógica do lucro do que na da saúde ou da cura de sua clientela (...). Assistimos também ao desenvolvimento de um ensino médico desvinculado da realidade sanitária da população, voltado para a especialização e a sofisticação tecnológica e dependente das industrias farmacêuticas e de equipamentos médico-hospitalares. Assistimos, finalmente, à consolidação de uma relação autoritária, mercantilizada e tecnificada entre médico e paciente e entre serviços de saúde e população." (Luz, 1991)
"Ainda é neste período que é difundida a chamada medicina comunitária, com apoio da Organização Mundial de Saúde e da Organização Panamericana de Saúde. A medicina comunitária propunha técnicas de medicina simplificada, a utilização de mão de obra local (os agentes de saúde) e a participação da comunidade. Entre os trabalhos que buscaram a participação da comunidade na área de saúde, havia os ligados à igreja católica como o projeto de Nova Iguaçú e o de Goiás Velho, os projetos ligados às universidades, financiados por órgãos externos, como o de Londrina-PR e os projetos assumidos pelo governo como o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento - PIASS, que objetivava a extensão dos serviços de saúde à população carente.
Em 1975, foi promulgada a lei que instituiu o Sistema Nacional de Saúde, que apesar de conter idéias inovadoras, reforçava a dualidade do setor saúde dando ao Ministério da Saúde caráter apenas normativo e ações na área de interesse coletivo e ao Ministério da Previdência a responsabilidade pelo atendimento individualizado.
Após algum tempo de funcionamento, o INPS enfrentou grave crise financeira, resultado de: 1) aumento de gastos; 2) aumento da demanda; 3) maneira como se dava o contrato com a rede médica privada, possibilitando fraudes; 4) inexistência de fiscalização dos serviços executados pela rede privada.
Assim, em 1978 houve nova tentativa de racionalização da previdência e foi criado o SINPAS - Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (...)" (CEFOR, s.d.)
"A criação do SINPAS tinha como objetivo disciplinar a concessão e manutenção de benefícios e prestação de serviços, o custeio de atividades e programas, a gestão administrativa, financeira e patrimonial da previdência. Foram criados o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social - INAMPS e o Instituto de Arrecadação da Previdência Social - IAPAS, além de integrar os órgãos já existentes. A criação do SINPAS pode ser compreendida no processo de crescente tendência a universalização e adoção do modelo de Seguridade Social.
Neste período estão definidas as bases que permitiram a hegemonia, na década de 70, do modelo assistencial privatista. De acordo com Mendes, este modelo se assenta no seguinte tripé: a) o Estado como financiador do sistema, através da Previdência Social; b) o setor privado nacional como maior prestador de serviços de assistência médica; c) o setor privado internacional como o mais significativo produtor de insumos, em especial equipamentos médicos e medicamentos." (Cunha & Cunha, 1998).
As décadas de 80 e 90

"A crise brasileira agravou-se após a falência do modelo econômico do regime militar, manifestada sobretudo pelo descontrole inflacionário, já a partir do final dos anos 70. Ao mesmo tempo, a sociedade voltava a mobilizar-se, exigindo liberdade, democracia e eleição direta do presidente da República. O último general presidente, João Figueiredo (1979-1985), viu-se obrigado a acelerar a democratização do país, a lenta e gradual abertura política iniciada por seu antecessor. Foi extinto o bipartidarismo imposto pelos militares e criaram-se novos partidos políticos. A imprensa livrou-se da censura, os sindicatos ganharam maior liberdade e autonomia e as greves voltaram a marcar presença no cotidiano das cidades brasileiras." (Bertolli Filho, 1996).
"A reorganização do país em direção a um Estado de direito desenvolveu-se lentamente e de maneira conflituosa. A partir das eleições de 1982, as negociações entre as forças políticas mais conservadoras e moderadas se sucederam, na busca da ampliação da abertura democrática. Essas negociações colocaram em plano secundário - na verdade quase excluíram - os sindicatos e partidos de esquerda, récem-saídos da clandestinidade, apesar do seu sucesso eleitoral nos anos de 1982 e 1984. Os resultados das eleições de 1986 favoreceram as forças conservadoras, graças a procedimentos de corrupção eleitoral (clientelismo, curralismo eleitoral, financiamento de candidatos favoráveis a lobbies etc) empregados desde a Primeira República. Apesar disso, grande massa de votos foi para os setores e partidos políticos progressistas e de esquerda." (Luz, 1991)
"Desde os anos 70, havia uma certa inquietação no interior do Estado com os gastos crescentes na saúde. (...) A incorporação de grandes contingentes de trabalhadores no sistema, o desenvolvimento de novas tecnologias médicas maios complexas (encarecendo o atendimento) e a má distribuição destes recursos, tornavam a assistência médica previdenciária extremamente onerosa. Tudo isso, num quadro de crise econômica, prognosticava a falência do modelo.
Assim, no final dos anos 70, estava demarcada a diretriz de redução de custos, mas, contraditoriamente, havia forte tendência de expansão do atendimento médico para os setores ainda não cobertos. Já no início da década, começara a surgir, ainda fora do aparato estatal, uma corrente contra-hegemônica que preconizava como proposta - para a melhoria da assistência médica no país - a descentralização, articulada à regionalização e à hierarquização dos serviços de saúde e à democratização do sistema, através da extensão de cobertura a setores até então descobertos, como os trabalhadores rurais. O movimento sanitário criticava o modelo hospitalocêntrico e propunha a ênfase em cuidados primários e a prioridade do setor público. Mas é somente na década de 80 que as propostas defendidas pelos sanitaristas passam a prevalecer no discurso oficial.
O movimento sanitário vai ter, portanto, um ponto em comum com os setores até então hegemônicos: a necessidade de racionalizar os gastos com saúde. Do ponto de vista dos sanitaristas, o argumento da racionalização dos gastos podia servir, de um lado, à luta pela quebra do modelo prevalente, uma vez que o setor privado era responsável pelo aumento e pela maior parte das despesas na saúde. De outro lado, possibilitava uma maior democratização do atendimento médico, estendendo-o à população marginalizada que não contribuía diretamente com a Previdência Social.
(...) Entre 1981 e setembro de 1984 o país vivencia uma crise econômica explícita, e é quando se iniciam as políticas racionalizadoras na saúde e as mudanças de rota com o CONASP / Conselho Consultivo da Administração da Saúde Previdenciária e as AIS / Ações Integradas de Saúde. Este é um momento tumultuado na saúde, tendo em vista a quebra de hegemonia do modelo anterior." (França, 1998)
"Em 1981 foi criado o CONASP que elaborou um novo plano de reorientação da Assistência Médica (...) que, em linhas gerais propunha melhorar a qualidade da assistência fazendo modificações no modelo privatizante (de compra de serviços médicos) tais como a descentralização e a utilização prioritária dos serviços públicos federais, estaduais e municipais na cobertura assistencial da clientela.
A partir do plano do CONASP, surgiu o Programa de Ações Integradas de Saúde, que ficou conhecido como AIS. Tinha o objetivo de integrar os serviços que prestavam a assistência à saúde da população de uma região. Os governos estaduais, através de convênios com os Ministérios da Saúde e Previdência, recebiam recursos para executar o programa, sendo que as prefeituras participavam através de adesão formal ao convênio.
Em todos estes planos, havia a idéia de integração da saúde pública com a assistência médica individual. Era uma aspiração antiga que encontrava interesses contrários à sua concretização nos grupos médicos privados e na própria burocracia do INAMPS." (CEFOR, s.d.)
"No governo da Nova República, a proposta das AIS é fortalecida e este fortalecimento passa pela valorização das instâncias de gestão colegiada, com participação de usuários dos serviços de saúde.
Em 1986 é realizada em Brasília a VIII Conferência Nacional de Saúde, com ampla participação de trabalhadores, governo, usuários e parte dos prestadores de serviços de saúde. Precedida de conferências municipais e estaduais, a VIII CNS significou um marco na formulação das propostas de mudança do setor saúde, consolidadas na Reforma Sanitária brasileira. Seu documento final sistematiza o processo de construção de um modelo reformador para a saúde, que é definida como 'resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar desigualdades nos níveis de vida.' Este documento serviu de base para as negociações na Assembléia Nacional Constituinte, que se reuniria logo após." (Cunha & Cunha, 1998).
"Em 1988 a Assembléia Nacional Constituinte aprovou a nova Constituição Brasileira, incluíndo, pela primeira vez, uma seção sobre a Saúde. Esta seção sobre Saúde incorporou, em grande parte, os conceitos e propostas da VIII Conferência Nacional de Saúde, podendo-se dizer que na essência, a Constituição adotou a proposta da Reforma Sanitária e do SUS.
No entanto, isso não foi fácil. Vários grupos tentaram aprovar outras propostas, destacando-se duas: a dos que queriam manter o sistema como estava, continuando a privilegiar os hospitais privados contratados pelo INAMPS e a dos que queriam criar no país um sistema de seguro-saúde mais ou menos parecido com o americano (que, todos sabemos, é caro e não atende a todos). Como essas alternativas não tinham muita aceitação, pois uma já tinha demonstrado que não funcionava e a outra era inviável pela questão econômica, a proposta feita pelo movimento da Reforma Sanitária teve chance e acabou sendo aprovada, ainda que com imperfeições. De qualquer forma essa foi uma grande vitória, que coloca a Constituição brasileira entre as mais avançadas do mundo no campo do direito à saúde." (Rodriguez Neto, 1994)
"Durante o processo de elaboração da Constituição Federal, uma outra iniciativa de reformulação do sistema foi implementada, o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde - SUDS. Idealizado enquanto estratégia de transição em direção ao Sistema Único de Saúde, propunha a transferência dos serviços do INAMPS para estados e municípios. O SUDS pode ser percebido como uma estadualização de serviços. Seu principal ganho foi a incorporação dos governadores de estado no processo de disputa por recursos previdenciários. Contudo a estadualização, em alguns casos, levou à retração de recursos estaduais para a saúde e à apropriação de recursos federais para outras ações, além de possibilitar a negociação clientelista com os municípios.
Enquanto resultante dos embates e das diferentes propostas em relação ao setor saúde presentes na Assembléia Nacional Constituinte, a Constituição Federal de 1988 aprovou a criação do Sistema Único de Saúde, reconhecendo a saúde como um direito a ser assegurado pelo Estado e pautado pelos princípios de universalidade, eqüidade, integralidade e organizado de maneira descentralizada, hierarquizada e com participação da população." (Cunha & Cunha, 1998).
O Sistema Único de Saúde: principais características
"Criado pela Constituição de 1988, e regulamentado dois anos depois pelas Leis no. 8080/90 e no. 8142/90, o Sistema Único de Saúde é constituído pelo conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicos federais, estaduais e municipais e, complementarmente, por iniciativa privada que se vincule ao Sistema." (Ministério da Saúde, 1998)
"Primeiramente, o SUS é um sistema, ou seja, é formado por várias instituições dos três níveis de governo (União, Estados e Municípios), e pelo setor privado contratado e conveniado, como se fosse um mesmo corpo. Assim, o serviço privado, quando é contratado pelo SUS, deve atuar como se fosse público, usando as mesmas normas do serviço público.
Depois, é único, isto é, tem a mesma doutrina, a mesma filosofia de atuação em todo o território nacional, e é organizado de acordo com a mesma sistemática.
Além disso, o SUS tem as seguintes características principais:
- Deve atender a todos, de acordo com suas necessidades, independentemente de que a pessoa pague ou não Previdência Social e sem cobrar nada pelo atendimento.
- Deve atuar de maneira integral, isto é, não deve ver a pessoa como um amontoado de partes, mas como um todo, que faz parte de uma sociedade, o que significa que as ações de saúde devem estar voltadas, ao mesmo tempo, para o indivíduo e para a comunidade, para a prevenção e para o tratamento e respeitar a dignidade humana.
- Deve ser descentralizado, ou seja, o poder de decisão deve ser daqueles que são responsáveis pela execução das ações, pois, quanto mais perto do problema, mais chance se tem de acertar sobre a sua solução. Isso significa que as ações e serviços que atendem à população de um município devem ser municipais; as que servem e alcançam vários municípios devem ser estaduais; e aquelas que são dirigidas a todo o território nacional devem ser federais.(...)
- Deve ser racional. Ou seja, o SUS deve se organizar de maneira que sejam oferecidos ações e serviços de acordo com as necessidades da população, e não como é hoje, onde em muitos lugares há serviços hospitalares, mas não há serviços básicos de saúde; ou há um aparelho altamente sofisticado, mas não há médico geral, só o especialista. Para isso, o SUS deve se organizar a partir de pequenas regiões e ser planejado para as suas populações, de acordo com o que elas precisam e não com o que alguém decide 'lá em cima'. Isso inclui a decisão sobre a necessidade de se contratar ou não serviços privados; e quando se decide pela contratação, que o contrato seja feito nesse nível, para cumprir funções bem definidas e sob controle direto da instituição pública contratante. É essencial, conforme o princípio da descentralização, que essas decisões sejam tomadas por uma autoridade de saúde no nível local. É a isso que se chama Distrito Sanitário.
- Deve ser eficaz e eficiente. Isto é, deve produzir resultados positivos quando as pessoas o procuram ou quando um problema se apresenta na comunidade; para tanto precisa ter qualidade. Mas não basta: é necessário que utilize as técnicas mais adequadas, de acordo com a realidade local e a disponibilidade de recursos, eliminando o desperdício e fazendo com que os recursos públicos sejam aplicados da melhor maneira possível. Isso implica necessidades não só de equipamentos adequados e pessoal qualificado e comprometido com o serviço e a população, como a adoção de técnicas modernas de administração dos serviços de saúde.
- Deve ser democrático, ou seja, deve assegurar o direito de participação de todos os seguimentos envolvidos com o sistema - dirigentes institucionais, prestadores de serviços, trabalhadores de saúde e, principalmente, a comunidade, a população, os usuários dos serviços de saúde. Esse direito implica a participação de todos esses segmentos no processo de tomada de decisão sobre as políticas que são definidas no seu nível de atuação, assim como no controle sobre a execução das ações e serviços de saúde. Embora a democracia possa ser exercida através de vereadores, deputados e outras autoridades eleitas, é necessário também que ela seja assegurada em cada momento de decisão sobre as questões que afetam diretamente e imediatamente a todos. Por isso, a idéia e a estratégia de organização dos Conselhos de Saúde - nacional, estaduais e municipais, para exercerem esse controle social sobre o SUS, devendo respeitar o critério de composição paritária: participação igual entre usuários e os demais; além de Ter poder de decisão (não ser apenas consultivo).
O SUS, no entanto, não pode ser implantado 'da noite para o dia', pois as mudanças que ele propõe são muitas e complexas; assim como os interesses que ele questiona. Dessa forma, o SUS, como parte da Reforma Sanitária é um processo que estará sempre em aperfeiçoamento e adaptação." (Rodriguez Neto, 1994)

Fonte: http://www.farmacia.ufmg.br/cespmed/text1.htm