segunda-feira, 30 de julho de 2012

          Desde cerca de 40 anos atrás, a sociedade brasileira vem experimentando queda acelerada na fecundidade e na mortalidade, adiamento na idade ao casar e aumento no número de separações, de recasamentos e de pessoas que nunca se casam. Ao mesmo tempo, cresce de forma generalizada a escolaridade feminina, com inserção maciça das mulheres no mercado de trabalho e se modificam os laços entre gerações e o sistema de valores familiares.           
          A resultante é uma sociedade diferente, com novos problemas. Um deles é a elevação da idade da população e o aparecimento de um grande contingente “muito idoso”, e o futuro promete aumento de idosos demandando cuidados e diminuição de descendentes para cuidá-los. “Isso levanta a questão de quem oferecerá cuidados para esses idosos: família ou instituições?”, indaga a pesquisadora Ana Amélia Camarano,do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Desde o ano passado, ela comanda uma equipe que realiza a primeira pesquisa no país sobre instituições de longa permanência para idosos.“O valor brasileiro é de que a família tem que cuidar.Assim está na Constituição de 1988, na política nacional do idoso, de 1994, e no Estatuto do Idoso, de 2003.
           Então, o preconceito já existe e a política reforça o preconceito. As famílias que colocam os idosos em instituições são vistas como abandonando o idoso, e o idoso se sente rejeitado pela família.Assim, se está ignorando as grandes mudanças na família”, diz ela. A pesquisa é uma parceria do Ipea com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República e o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI). Espera-se apurar cerca de 6 mil instituições com 100 mil idosos. “Não se sabe no Brasil quantas instituições existem, que tipos de serviço elas oferecem, quantos idosos estão nelas, quem vai para essas instituições, não se sabe absolutamente nada e se tem um preconceito muito grande.Mas é uma alternativa de cuidado com os
idosos que tende a crescer muito”, diz Ana Amélia. Já está publicada a parte relativa à região Norte e pronta a do Centro-Oeste. A pesquisa da região Sul está em fase final, a do Nordeste, na metade do trabalho, e, na região Sudeste, com dois terços das instituições do país, a pesquisa está apenas começando. Os resultados parciais já permitiram identificar uma importante diferença regional: tanto no restante do Brasil como em outros países, há mais mulheres que homens residindo nesse tipo de instituição, mas, em quase todos os estados do Norte e do Centro-Oeste, os homens são maioria.
          Segundo a assistente social Tomiko Born, que tem três décadas de experiência em instituições para idosos,“muitos homens
migraram para trabalhar, no começo provavelmente na extração de borracha nos seringais, depois na construção de estradas e à procura de pedras e metais preciosos, e não constituíram família. O resultado nessas regiões é uma população bastante diferente. Pelo menos no Sudeste, a população nas instituições é majoritariamente
feminina. O homem, se fica viúvo, facilmente constitui nova família, enquanto a mulher viúva tem muito mais dificuldade de fazer um novo casamento.Um dos principais motivos da internação no Sudeste é a viuvez no caso da mulher”.
          psicóloga Eloísa Adler Scharfstein, cuja tese de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi sobre instituições de longa permanência para idosos, relembra que o único estudo sobre o tema no país que ela pôde dispor era somente sobre o Rio de Janeiro, feito em 1999.Mais recentemente, por iniciativa da Fundação Perseu Abramo e do Serviço Social do Comércio (Sesc), em 2006, o levantamento “Idosos Brasileiros” captou como as instituições de longa permanência são percebidas entre as alternativas de cuidado para os idosos dependentes. Ana Amélia estima que no país haja 2,2 milhões de idosos que têm “dificuldades graves” para as atividades diárias.“Quer dizer, tirando os que estão em instituições de longa permanência, as famílias cuidam – ou descuidam – de 2,1 milhões”, diz. VISÃO NEGATIVA Segundo Ana Amélia,“os idosos de hoje nasceram em uma época em que o papel da família (em especial,da mulher) como a cuidadora dos membros
dependentes era claramente estabelecido” e há “uma expectativa elevada, por parte dos idosos, de receberem o cuidado familiar”. Isto explica por que, “em geral, as famílias que decidem pela institucionalização de seus idosos são vistas como praticando o abandono e tendem a experimentar forte sentimento de culpa”. Tomiko Born diz que para combater essa rejeição “temos que melhorar muito a qualidade das nossas instituições de longa permanência. Na situação atual, muitas estão em estado lamentável”. Eloísa Adler acrescenta que “não é à toa que as instituições de longa permanência sejam muito malvistas, porque originalmente eram chamadas de asilos e estavam vinculadas à pobreza, abandono e desamparo”.
          Segundo Ana Amélia, há dessas instituições “desde o século XVI na Europa, e no Brasil desde o século XIX,mas eram asilos que misturavam loucos, mendigos, vagabundos e idosos.Era para tirá-los da sociedade. Parte do preconceito vem daí”. Eloísa conta que “há uma instituição no Rio de Janeiro que na entrada tem uma placa, colocada por D.Pedro II, que diz ‘Asilo das Mendicidades’. Carregamos essa herança de pensar nas instituições de longa permanência como um depósito de velhos”. Entretanto, Eloísa revela o outro lado dessa moeda. Ela pesquisou em uma instituição
vinculada a uma ordem religiosa que nos anos 1980 conseguiu um prédio residencial muito aconchegante para ser a moradia coletiva de idosos que se chamavam de irmãos remidos, mas, como outras instituições filantrópicas, foi empobrecendo e acabou sem recursos para manter essa casa.“Os idosos foram morar no hospital da instituição mantenedora.
          Quando entrei lá,me lembrei de quando a velhice era vista como doença, quando se dizia que o lugar de velho é o hospital. No entanto, ao falar com eles, notei, para minha surpresa,que esses velhos estavam em uma situação de amparo. Uma idosa disse ‘eu tenho família’. Eu precisei de um tempo para me reformular.” Outra vertente é dos idosos que escolhem morar em uma instituição. Segundo Eloísa,“pertencer a uma entidade religiosa, como a categoria de irmão remido, é o resgate de uma identidade em uma fase da vida com tantas perdas. Há ainda o exemplo da identidade profissional, como é o Retiro dos Artistas, que é um condomínio, um espaço de moradia para os artistas. Outro viés é o étnico, como comunidades de imigrantes – a dos espanhóis, por exemplo – que criam seu ninho. Ter um espaço de moradia para idosos é um dos compromissos dessas comunidades”.

    Fonte: http://desafios2.ipea.gov.br/sites/000/17/edicoes/41/pdfs/rd41not05.pdf

segunda-feira, 16 de julho de 2012

História da doença de Chagas: ciência, saúde e sociedade

A história da doença de Chagas se inicia com uma tripla descoberta, no interior de Minas Gerais. Em abril de 1909, Carlos Chagas (1878-1934), pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), comunicou ao mundo científico a descoberta de uma nova doença humana. Seu agente causal (o protozoário que denominou de Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre Oswaldo Cruz) e o inseto que o transmitia (triatomíneo conhecido como “barbeiro”) também haviam sido por ele identificados, ao final de 1908. O “feito” de Chagas, considerado único na história da medicina, constitui um marco decisivo na história da ciência e da saúde brasileiras.
Trazendo uma contribuição inovadora ao campo emergente da medicina tropical e dos estudos sobre as doenças parasitárias transmitidas por insetos-vetores, Chagas traria a público não apenas uma nova entidade nosológica, mas a realidade sanitária e social do interior do país, assolado pelas endemias rurais. Enaltecida por Oswaldo Cruz como a maior das “glórias de Manguinhos”, a descoberta trouxe imediato prestígio e projeção ao jovem cientista, que receberia várias distinções acadêmicas no Brasil e no exterior, tendo sido indicado ao Prêmio Nobel por duas vezes.
Dedicando sua vida profissional, junto a seus colaboradores, a investigar os vários e intricados aspectos da nova enfermidade, Chagas deu início a uma tradição de excelência acadêmica que se espraiaria de Manguinhos para outros centros científicos no Brasil e no continente americano. Ao mesmo tempo, chamou a atenção sobre a necessidade do enfrentamento concreto desta e outras endemias do interior, intimamente associadas à pobreza, gerando uma mobilização que ocuparia, a partir de então, as tribunas da política e das instituições de saúde.
A trajetória da produção de conhecimentos e ações sobre a doença de Chagas, ainda que iniciada sob a marca do “feito singular” de um cientista, tem sido, desde 1909, um empreendimento coletivo, a articular, em distintos contextos históricos e sociais, os cientistas e outros grupos sociais, na busca por novos conhecimentos e ferramentas para lidar com este importante problema. Marcado por conquistas e vitórias, mas também por críticas e incertezas, por conflitos e por acordos, por trilhas abandonadas e outras continuadas, por continuidades e descontinuidades, o percurso da doença de Chagas ao longo destes cem anos nos fala das relações entre ciência, saúde e sociedade.
 Este segmento Historia tem o objetivo de apresentar alguns dos principais marcos nesta trajetória, abordando a biografia de Carlos Chagas, o processo da descoberta e os contextos em que ela esteve inserida, a produção dos conhecimentos sobre a doença, sua importância social e as iniciativas para combatê-la. Reunindo textos elaborados por historiadores e por alguns dos próprios médicos e cientistas que fizeram, e ainda fazem, esta história, a produção da memória sobre o tema é tecida mediante distintos olhares, perspectivas e abordagens.
A presença da história, neste Portal, junto aos segmentos que apresentam os conhecimentos e perspectivas relacionadas à doença hoje, em seus vários campos disciplinares, materializa a preocupação comum a todos os que se associam ao legado de Carlos Chagas, com o objetivo de disseminá-lo entre as novas gerações, nas instituições de ciência, saúde e educação e nos tantos outros espaços da vida social do país e do continente americano: suscitar a reflexão sobre o passado, e, a partir do presente, pensar os desafios que nos convidam a planejar o futuro. 
Carlos Ribeiro Justiniano Chagas, primeiro dos quatro filhos de José Justiniano Chagas e Mariana Cândida Ribeiro Chagas, nasceu aos 9 de julho de 1878, na Fazenda Bom Retiro, próximo à pequena cidade de Oliveira, Minas Gerais. Seus antepassados, de origem portuguesa, tinham se estabelecido na região havia quase um século e meio. Órfão de pai aos quatro anos, Chagas passou a infância nessa e em outra fazenda da família, em Juiz de Fora, onde sua mãe administrava o cultivo do café. Embora distante dos centros ilustrados do país, a convivência com os tios maternos (dois advogados e um médico) fez com que o menino manifestasse, desde cedo, vontade de avançar nos estudos, com particular interesse pela medicina.

Carlos Chagas aos quatro anos. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Fazenda Bom Retiro, localizada próximo a Oliveira (Minas Gerais), onde nasceu Carlos Chagas. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

 
José Justiniano Chagas e Mariana Cândida Ribeiro Chagas, pais de Carlos Chagas. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Aos oito anos, alfabetizado, foi matriculado no Colégio São Luís, internato dirigido por jesuítas em Itu, interior de São Paulo. Mas não ficaria ali por muito tempo. Em maio de 1888, ao ter notícias de que os escravos recém-libertados estariam depredando fazendas, fugiu do colégio para ir ao encontro de sua mãe. A indisciplina foi punida com a expulsão e o menino transferiu-se para o Ginásio São Francisco, em São João del Rey, Minas Gerais. Concluídos os estudos, sua mãe decidiu que ele deveria formar-se em engenharia. Em 1895, ingressou então no curso preparatório da Escola de Minas de Ouro Preto, tradicional centro de ensino superior. Contudo, os excessos da vida boêmia custaram-lhe a reprovação nos exames e o retorno a Oliveira. Com a ajuda do tio médico, venceu a resistência da mãe e mudou-se para a capital federal, para estudar medicina.
No Rio de Janeiro, foi morar com outros estudantes mineiros numa pensão no bairro da Tijuca. Em abril de 1897, matriculou-se na Faculdade de Medicina, na rua de Santa Luzia, centro da cidade. Chagas impressionou-se vivamente com a agitação política da capital. O governo de Prudente de Morais (1894-1898), primeiro presidente civil da República, buscava superar as turbulências e conflitos que vinham sacudindo o novo regime, como a revolta de Canudos, no interior da Bahia. O governo de Campos Sales (1898-1902) selaria a estabilização política e econômica e estabeleceria as bases da tão propalada modernização republicana.
Do ponto de vista cultural, a cidade também vivia um momento de grande efervescência. O jovem estudante, que assistira logo ao chegar à criação da Academia Brasileira de Letras, ficou entusiasmado com os novos escritores e estilos que se projetavam na cena literária. Nos diversos espaços intelectuais, disseminava-se a crença de que se vivia um novo tempo, simbolicamente expresso no novo século que se aproximava, em que o Brasil ingressaria no rol das nações “civilizadas”. Sob os valores do positivismo e outras teorias cientificistas, a ciência e a técnica eram exaltadas, pela chamada geração de 1870, como elementos norteadores de um saber objetivo e eficaz, capaz de prover o bem-estar moral e material da sociedade.
Foi sob esta perspectiva que médicos e engenheiros engajaram-se em pensar soluções para as precárias condições sanitárias da capital federal, agravadas naquele final de século em função do próprio ritmo da modernização urbana. As freqüentes epidemias, sobretudo de febre amarela, que assolavam a zona portuária e o centro da cidade, traziam fortes prejuízos às atividades econômicas, concentradas na exportação de café e outros produtos agrícolas e na importação de manufaturas e capitais. O saneamento urbano era visto como crucial para o progresso do país e, com esse objetivo, preparava-se a reforma da cidade que seria realizada nos primeiros anos do século XX.
Foi nesse contexto que se deu a difusão, no país, da microbiologia, num processo marcado por controvérsias, debates e acomodações entre os que aderiam às concepções de Louis Pasteur e Robert Koch e os que defendiam as teorias climatológicas da tradição higienista. A institucionalização da medicina tropical na Europa, no contexto de expansão dos interesses imperialistas, gerava novos conhecimentos sobre o modo de transmissão de doenças infecciosas como a malária e a febre amarela, especialmente sobre o papel dos insetos como vetores.
Em consonância com esta renovação das ciências biomédicas, vários professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro defendiam, desde a década de 1880, a importância de incorporar ao ensino os preceitos e práticas da chamada medicina experimental, ou seja, da pesquisa científica realizada no laboratório em busca de novos conhecimentos. Este foi o ambiente em que Chagas realizou seu curso médico, entre 1897 e 1903.
Dois professores marcaram de maneira decisiva sua formação. Um deles foi Miguel Couto, com quem Chagas aprendeu a utilizar os métodos e princípios da medicina experimental para o diagnóstico e o estudo clínico das doenças que compunham a nosologia brasileira. Couto, de quem Chagas se tornaria amigo pessoal, incutiu no jovem estudante a concepção de que a clínica médica deveria ser renovada e subsidiada pelos novos conhecimentos e técnicas propiciados pelas pesquisas científicas. Por sua sugestão, Chagas conheceu as obras de Claude Bernard e de Louis Pasteur.
Outra influência decisiva foi a de Francisco Fajardo, um dos pioneiros da microbiologia no Brasil, que apresentou a Chagas os temas específicos da medicina tropical. Profundamente sintonizado com os estudos e problemáticas peculiares a esta disciplina, especialmente no que dizia respeito à malária, Fajardo colecionava insetos sugadores de sangue e realizava estudos experimentais sobre o ciclo evolutivo do hematozoário descoberto por Laveran, com quem mantinha contatos pessoais. No laboratório de Fajardo, no Hospital da Santa Casa de Misericórdia, Chagas auxiliava a realização de exames hematológicos e a identificação das diferentes espécies do parasito da malária, base para o diagnóstico diferencial das várias formas clínicas da doença. Com o tempo, acumulou material para suas próprias experiências.
Com o objetivo de elaborar sua tese de doutoramento, pré-requisito à qualificação para o exercício da medicina, dirigiu-se em 1902 ao Instituto Soroterápico Federal, em Manguinhos. Levou uma carta de apresentação de Fajardo a Oswaldo Cruz, diretor técnico do Instituto, criado dois anos antes para fabricar soro e vacina contra a peste bubônica. Dava-se assim o primeiro contato com aquele que seria seu grande mestre e com a instituição na qual realizaria sua vida profissional.
O Instituto de Manguinhos – que a partir de 1908, sob a denominação de Instituto Oswaldo Cruz, se consolidaria como respeitado centro de produção de imunobiológicos e de pesquisa e ensino no âmbito da medicina experimental – atraía os estudantes interessados, como Chagas, no estudo científico das doenças tropicais. Aceito por Oswaldo Cruz, que tornou-se seu orientador, Chagas passou a freqüentar o Instituto diariamente. Em 1903, defendeu sua tese de doutoramento, intitulada Estudos hematológicos no impaludismo, analisando a importância dos conhecimentos sobre o ciclo evolutivo do plasmódio para o diagnóstico e o tratamento das várias formas clínicas da malária.
Apesar do convite feito por Oswaldo Cruz para integrar a equipe de pesquisadores de Manguinhos, Chagas preferiu dedicar-se à clínica. Em 1904, foi nomeado médico da Diretoria Geral de Saúde Pública, passando a trabalhar no hospital de isolamento de Jurujuba, Niterói, destinado a atender, sobretudo, doentes de peste. Ao mesmo tempo, instalou seu consultório particular no centro do Rio. Em julho daquele ano, casou-se com Íris Lobo, filha do senador mineiro Fernando Lobo Leite Pereira. Dessa união nasceriam Evandro Chagas, em 1905, e Carlos Chagas Filho, em 1910. No ano seguinte, o convite feito por Cruz para chefiar uma campanha de profilaxia da malária seria o primeiro passo de uma reorientação em sua carreira, que o conduziria de volta aos laboratórios de Manguinhos e à descoberta da doença que leva seu nome.



Carlos Chagas e as campanhas contra a malária

Na passagem do século XIX ao XX, no contexto de difusão da teoria do parasito-vetor constitutiva da medicina tropical mansoniana, o mundo científico foi marcado por uma intensa busca por transmissores alados para as doenças, especialmente insetos sugadores de sangue, como os mosquitos. Para subsidiar as investigações médicas com conhecimentos especializados sobre as características biológicas destes insetos, o Museu Britânico
de História Natural deu início, em 1898, a um amplo levantamento dos mosquitos existentes em todo o mundo. Como mostram Benchimol e Sá (2006), o debate sobre os artrópodes vetores de doenças fez da entomologia médica uma área de conhecimento cada vez mais em evidência. Adolpho Lutz, então diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo, era a principal autoridade científica nesta área no Brasil. Em permanente intercâmbio com os pesquisadores e instituições internacionais, exerceria grande influência sobre outros cientistas que seguiriam por este caminho.
Oswaldo Cruz realizava trabalhos de coleta e classificação de insetos do Brasil, tendo identificado, em 1901, uma nova espécie de anofelino às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Em 1906, a contratação de Arthur Neiva veio reforçar a área no Instituto de Manguinhos, do qual Lutz se tornaria pesquisador em 1908. Tendo como referência os trabalhos de Lutz, Cruz e Neiva, Chagas publicou, em 1907, trabalhos sobre os culicídios brasileiros, com a descrição de novas espécies.
O desenvolvimento da entomologia médica no Instituto – e a inserção de Chagas neste processo – estiveram diretamente relacionados com uma importante frente de ampliação da instituição, acionada por Oswaldo Cruz. Reproduzindo uma prática comum entre os médicos e microbiologistas europeus que se deslocavam para a África e a Ásia a fim de combater epidemias e estudar as doenças tropicais, os pesquisadores de Manguinhos engajavam-se em expedições científicas a diversos pontos do território nacional. Tais missões serviam tanto para estudar as condições sanitárias das distintas regiões, como para debelar crises epidêmicas que prejudicavam as obras de companhias públicas ou privadas associadas à modernização do país. Em função da expansão demográfica e econômica, a realização destas obras, sobretudo das que adentravam matas e regiões inóspitas, era freqüentemente acompanhada de surtos epidêmicos, especialmente de malária. Isso se dava em geral quando da construção das ferrovias, cujas linhas e ramais se multiplicavam pelo território nacional visando a um escoamento mais eficaz da produção agrícola para exportação.
Estas viagens reforçavam a identidade social do Instituto Oswaldo Cruz como instituição comprometida com a solução de questões de saúde pública de interesse nacional. Por outro lado, elas funcionavam também como impulsionadoras da própria pesquisa em torno das novas questões da medicina tropical que surgiam no ambiente médico-científico. Nestes canteiros de obras, os pesquisadores realizavam a coleta de materiais, experiências e estudos sobre temas variados da nosologia brasileira, relacionados tanto a aspectos médico-sanitários, quanto a questões biológicas concernentes aos parasitos e vetores. Foi justamente por meio de viagens como estas que Chagas refez seu vínculo com Manguinhos e com o tema da malária (estudado por ele em sua tese de doutoramento), desenvolvendo habilidades e conhecimentos específicos que o levariam à descoberta de uma nova doença tropical em 1909.
Em 1905, a Companhia Docas de Santos solicitou a Oswaldo Cruz, que chefiava a Diretoria Geral de Saúde Pública, providências para combater uma epidemia de malária entre os trabalhadores que construíam uma hidrelétrica em Itatinga, destinada a abastecer o porto de Santos. Em função de seus conhecimentos sobre a doença, Chagas foi incumbido de coordenar as ações de profilaxia. Esta foi a primeira campanha antipalúdica realizada no Brasil com base nos conhecimentos sobre o papel dos mosquitos como transmissores.
Em fevereiro de 1907, missão semelhante foi iniciada por ele, em parceria com Arthur Neiva, em Xerém, na Baixada Fluminense, onde a doença prejudicava os trabalhos de captação de água para a capital federal, realizados pela Inspetoria Geral de Obras Públicas.
Em junho daquele ano, igualmente por solicitação de Cruz, Chagas partiu para o norte de Minas Gerais, em nova empreitada contra a malária, juntamente com Belisário Penna que, como ele, era médico da Diretoria Geral de Saúde Pública. Na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora, uma epidemia da doença paralisava as obras de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil, cujo objetivo era integrar o Sul ao Norte do país mediante a ligação do Rio a Belém do Pará. No povoado de São Gonçalo das Tabocas (onde se construía uma estação da ferrovia e que, com a inauguração desta em 1908, ganharia o nome de Lassance, em homenagem a um engenheiro da Central do Brasil), Chagas instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como dormitório. Foi no decorrer das atividades desta campanha que se realizou a descoberta da doença que leva seu nome, que o consagraria internacionalmente.
Desde que pesquisadores ingleses e italianos desvendaram, em 1898/99, o modo de transmissão da malária pelos mosquitos, estudiosos dedicaram-se, em diversos países, a estabelecer medidas para a prevenção e o combate à doença, voltadas para seus dois elementos essenciais: os vetores e o indivíduo portador do parasito. Em trabalho de 1906, Chagas analisou de maneira pormenorizada as diferentes estratégias contra a malária. “Poder-se-á sintetizar num duplo intuito a profilaxia do impaludismo: impedir que o homem doente contamine o culicídio transmissor, evitar que o culicídio parasitado infecte o homem são. [...] A profilaxia será, por isso mesmo, anticulicídica, quando aplicada ao mosquito, e germicida, quando à destruição do hematozoário na fase endógena da evolução dele”.
As ações contra os vetores contemplavam métodos de natureza ofensiva e defensiva. O primeiro era o combate direto aos anofelinos, por meio de campanhas, de feição militar, visando a sua eliminação. As “brigadas contra os mosquitos”, termo cunhado pelo inglês Ronald Ross, deveriam atacá-los em seu estágio larval aquático, tanto por meio de aplicação de substâncias tóxicas (como o petróleo) nas coleções de água, quanto pela drenagem dos terrenos alagadiços que pudessem servir-lhes de habitat. As medidas defensivas consistiam na proteção individual e coletiva contra os mosquitos, por meio de cortinados nas camas e telas nas portas e janelas das casas. As ações dirigidas ao parasito davam-se mediante a administração de quinina (medicamento extraído da casca da árvore quina) aos doentes, visando eliminar o hematozoário.
Nas campanhas que comandou, Chagas procurou colocar tais diretrizes em prática, implementado a quininização preventiva e a proteção dos indivíduos contra os mosquitos. Expressando a articulação entre as novas teorias da microbiologia e da medicina tropical e os interesses da saúde pública, ele enfatizava que os estudos sobre as distintas fases do ciclo evolutivo do hematozoário e sobre os hábitos dos vetores típicos em cada região eram fundamentais para subsidiar as medidas de combate à malária. Os conhecimentos clínicos e epidemiológicos também eram de grande relevância, acentuava, sobretudo porque os doentes constituíam o reservatório do parasito e, conseqüentemente, fontes de contaminação do mosquito e de propagação da doença.
Desde sua primeira experiência em Itatinga, Chagas formulou o princípio de que o ataque direto aos anofelinos não deveria restringir-se às ações antilarvárias, tanto pela dificuldade em realizá-las nos locais onde obras de saneamento eram impraticáveis, quanto  porque, em sua concepção, os insetos deveriam ser combatidos principalmente em sua forma adulta, alada, dentro das habitações. Observando os hábitos dos anofelinos, ele considerou a malária uma infecção essencialmente domiciliária, ou seja, é nos domicílios que ocorrem, na maior parte das vezes, a contaminação do mosquito pelo doente parasitado e a infecção do indivíduo são. Assim, a destruição dos mosquitos deveria ser feita mediante a fumigação de inseticidas nestes ambientes, como o enxofre e o piretro. Expurgos domiciliários com tais substâncias vinham sendo feitos para o combate aos vetores da febre amarela na capital federal desde 1903.
 Tal método, que décadas mais tarde seria utilizado em larga escala com o advento dos inseticidas sintéticos de ação residual, como o DDT, foi aplicado em Itatinga, com resultado muito favorável na apreciação de Chagas, ainda que este assinalasse a necessidade de conjugá-lo a outras medidas preventivas, em especial a aplicação de quinina. Segundo Carlos Chagas Filho, esta contribuição pioneira de seu pai para os estudos e a profilaxia da malária só seria reconhecida plenamente no I Congresso Internacional de Malariologia, realizado em Roma, em 1925.

Carlos Chagas e a descoberta de uma nova tripanossomíase humana


Simone Petraglia Kropf
Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Expansão, 20040-361, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Em junho de 1907, Carlos Chagas foi designado por Oswaldo Cruz, que chefiava o Instituto de Manguinhos e a Diretoria Geral de Saúde Pública, para combater uma epidemia de malária que paralisava as obras de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil em Minas Gerais, na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora. No povoado de São Gonçalo das Tabocas (onde se construía uma estação da ferrovia e que, com a inauguração desta em 1908, ganharia o nome de Lassance, em homenagem a um engenheiro da Central do Brasil), ele instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como dormitório. Enquanto coordenava a campanha de profilaxia, coletava espécies da fauna brasileira, motivado por seu crescente interesse pela entomologia e pela protozoologia. Num contexto de difusão internacional das teorias da medicina tropical, estas eram áreas que assumiam grande importância no projeto de Oswaldo Cruz de transformar o Instituto de Manguinhos num renomado centro de medicina experimental. Em 1908, ao examinar o sangue de um sagüi, Chagas identificou um protozoário do gênero Trypanosoma, que batizou de Trypanosoma minasense. A nova espécie era um parasito habitual, não patogênico, do macaco. 

Estação da Estrada de Ferro Central do Brasil em Lassance, Minas Gerais. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Carlos Chagas e Belisário Penna no prédio da Estrada de Ferro Central do Brasil. Lassance, [1908]. Penna é o primeiro da direita para a esquerda, seguido de Chagas. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz.


            Naquele período, o estudo dos tripanossomas atraía a atenção dos pesquisadores no campo da medicina tropical, especialmente depois que se comprovou que, além de doenças animais, tais protozoários causavam enfermidades humanas, como a tripanossomíase africana. Tradicionalmente conhecida como doença do sono, esta enfermidade causava grande preocupação entre os países europeus que tinham colônias naquele continente.
Além da busca de novos parasitos, Chagas estava atento a artrópodes que pudessem servir-lhes de vetores. Numa viagem a Pirapora, ele e Belisário Penna (seu companheiro na missão de combate à malária) pernoitaram, junto com os engenheiros da ferrovia, num rancho às margens do riacho Buriti Pequeno. O chefe da comissão de engenheiros, Cornélio Homem Cantarino Mota, mostrou-lhes então um percevejo hematófago muito comum na região, conhecido vulgarmente como barbeiro, pelo hábito de picar o rosto de suas vítimas enquanto dormiam. Era abundante nas choupanas de pau-a-pique da região, escondendo-se nas frestas e buracos das paredes de barro durante o dia e atacando seus moradores à noite.

Carlos Chagas e Belisário Penna com a equipe que trabalhava no prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil, na região do rio das Velhas, Minas Gerais. [1908]. Sentados, da direita para a esquerda: Carlos Chagas, Belisário Penna, Cornélio Homem Cantarino Mota - chefe da comissão de engenheiros - e o médico Bahia da Rocha. Em pé, os engenheiros Amaral Teborge, José de Oliveira Fonseca e Joaquim Silvério de Castro Barbosa. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Cafua em Lassance. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.


Sabendo da importância dos insetos sugadores de sangue como transmissores de doenças parasitárias, Chagas examinou alguns barbeiros e encontrou em seu intestino formas flageladas de um protozoário, com certas características que o fizeram pensar que poderia tratar-se de um parasito natural do inseto ou então de uma fase evolutiva de um tripanossoma de vertebrado. No caso desta segunda hipótese, poderia ser o próprio T. minasense, sendo o barbeiro o vetor que o transmitiria aos sagüis.

O barbeiro. Estampa de Castro Silva, publicada em: Chagas, Carlos. “Nova tripanossomíase humana. Estudos sobre a morfologia e o ciclo evolutivo do Schizotrypanum cruzi n. gen., n. sp., agente etiológico de nova entidade mórbida do homem”, Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, 1(2): 159-218, agosto de 1909.


Por não dispor em Lassance de condições laboratoriais para elucidar a questão, uma vez que os macacos da região estavam infectados pelo minasense, Chagas enviou a Manguinhos alguns daqueles insetos. Oswaldo Cruz os fez se alimentarem em sagüis criados em laboratórios (e portanto livres de qualquer infecção) e, cerca de um mês depois, comunicou a Chagas que encontrara formas de tripanossoma no sangue de um dos animais, que havia adoecido. Voltando ao Instituto, Chagas constatou que o protozoário não era o T. minasense, mas uma nova espécie de tripanossoma, que batizou então de Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre. A nota anunciando esta descoberta foi redigida em Manguinhos em 17 de dezembro de 1908 e publicada na revista do Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo (Archiff für Schiffs-und Tropen-Hygiene), no início de 1909.

Vista de Lassance tomada do alto de um vagão da Estrada de Ferro Central do Brasil. Lassance, 1909. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.


Em Manguinhos, Chagas iniciou estudos sistemáticos sobre o ciclo evolutivo do novo parasito que, em cumprimento a dois dos postulados de Koch, mostrou-se capaz de infectar experimentalmente cães, cobaias e coelhos e de ser cultivado em agar-sangue. O barbeiro, por sua vez, passou a ser minuciosamente investigado por Arthur Neiva, também pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz. Em busca de outros hospedeiros vertebrados do T. cruzi e suspeitando que o homem pudesse ser um deles – hipótese reforçada por seus conhecimentos sobre a malária, também transmitida por um inseto hematófago domiciliário e causada por um hematozoário –, Chagas retornou a Lassance. Sobre o raciocínio que empreendeu naquele momento, relatou, em trabalho publicado na revista Brasil Médico em 1910:

“Leváramos, como idéia diretriz, a noção de constituírem os domicílios humanos o habitat predileto, senão exclusivo, do hematófago, assim como o fato, amplamente verificado, de ser o sangue humano a alimentação por excelência dele. Seria razoável pensar, daí, numa condição infectuosa intra-domiciliária e que o vertebrado hospedeiro do parasito fosse algum animal doméstico ou o próprio homem”.

Esta hipótese também explicaria certos fenômenos mórbidos que havia observado na região e que não se encaixavam no quadro nosológico conhecido.
            Em Lassance, Chagas empreendeu exames sistemáticos de sangue nos moradores. Ao examinar animais domésticos, verificou a presença do T. cruzi no sangue de um gato. No dia 14 de abril de 1909, encontrou finalmente o parasito no sangue de uma criança febril. Em nota prévia publicada no Brasil Médico, uma das principais revistas médicas do país, anunciou a descoberta:

“Num doente febricitante, profundamente anemiado e com edemas, com plêiades ganglionares engurgitadas, encontramos tripanossomas, cuja morfologia é idêntica à do Trypanosoma cruzi. Na ausência de qualquer outra etiologia para os sintomas mórbidos observados e ainda de acordo com a experimentação anterior em animais, julgamos tratar-se de uma tripanossomíase humana, moléstia ocasionada pelo Trypanosoma cruzi, cujo transmissor é o Conorrhinus sanguissuga”.  
            
Estágios do Trypanosoma cruzi. Estampa de Castro Silva, publicada em: Chagas, Carlos. “Nova tripanossomíase humana. Estudos sobre a morfologia e o ciclo evolutivo do Schizotrypanum cruzi n. gen., n. sp., agente etiológico de nova entidade mórbida do homem”, Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, 1(2): 159-218, agosto de 1909.


Berenice, uma menina de dois anos, era o primeiro caso daquela que seria considerada a partir de então uma nova doença humana. O fato foi divulgado também mediante publicações nos Archiff für Schiffs-und Tropen-Hygiene e no Bulletin de la Société de Pathologie Éxotique.
           Aos 22 de abril, ao mesmo tempo em que o Brasil Médico trazia em suas páginas a descoberta feita no norte de Minas, o feito foi comunicado, em sessão da Academia Nacional de Medicina, por Oswaldo Cruz, que leu um trabalho escrito por Chagas. A imprensa deu destaque ao episódio, reverenciado como uma das “glórias de Manguinhos”.
A descoberta e os primeiros estudos da nova entidade mórbida tiveram um impacto decisivo na carreira científica de Chagas, que alcançou grande proeminência no mundo científico, com efeitos diretos em sua inserção na vida institucional de Manguinhos. Em março de 1910, Oswaldo Cruz realizou concurso para preencher a vaga de “chefe de serviço” aberta com a saída de Henrique da Rocha Lima. Este foi um evento de grande importância para a instituição, pois o ocupante do cargo era visto como o mais provável candidato à sucessão de Oswaldo Cruz. Chagas obteve a primeira colocação e os trabalhos que havia publicado sobre a nova doença tiveram grande peso para tanto. 
   
Carlos Chagas atendendo a menina Rita. Lassance, início da década de 1910. Por muito tempo pensou-se que tal menina era Berenice, o primeiro caso identificado da nova doença. Ao fundo, vê-se o vagão da Estrada de Ferro Central do Brasil, que lhe servia de alojamento e laboratório em Lassance. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.


Em 26 de outubro de 1910, Chagas foi admitido solenemente como membro titular da Academia Nacional de Medicina, onde proferiu uma conferência apresentando seus estudos clínicos e farto material sobre a doença, inclusive imagens cinematográficas feitas em Lassance. No ano seguinte, um evento marcou a divulgação da descoberta e da nova doença no cenário científico internacional. No pavilhão brasileiro da Exposição Internacional de Higiene e Demografia, realizada em Dresden, Alemanha, a doença de Chagas foi apresentada com destaque, despertando grande interesse do público. Tal projeção expressava a importância que o tema assumia como carro-chefe e vitrine das pesquisas do Instituto Oswaldo Cruz. Outro marco importante da repercussão internacional da descoberta foi a conquista, por Chagas, em 1912, do Prêmio Schaudinn, concedido de quatro em quatro anos pelo Instituto de Doenças Tropicais de Hamburgo ao melhor trabalho em protozoologia.

Sala do pavilhão brasileiro na Exposição Internacional de Higiene e Demografia, realizada em junho de 1911 em Dresden, Alemanha. Dresden, junho de 1911. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Diploma do Prêmio Schaudinn, conferido a Carlos Chagas pelo Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo, Alemanha. Hamburgo, 22 jun. 1912. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.


Graças à repercussão da descoberta e dos estudos de Chagas, Oswaldo Cruz obteve junto ao governo federal verbas especiais para equipar um pequeno hospital em Lassance, visando sediar os estudos clínicos sobre a nova doença, e para dar início, em Manguinhos, à construção de um hospital destinado às pesquisas e acompanhamento dos casos clínicos identificados no norte de Minas Gerais e em outras regiões do país. Sob a liderança de Chagas e com a colaboração de vários pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (como Gaspar Vianna, Arthur Neiva, Astrogildo Machado, Eurico Villela, Carlos Bastos de Magarinos Torres, entre outros), a nova tripanossomíase passou a ser estudada em seus vários aspectos, como as características biológicas do vetor, do parasito e de seu ciclo evolutivo, o quadro clínico e a patogenia, as características epidemiológicas, os mecanismos de transmissão e as técnicas de diagnóstico.

Hospital em Lassance. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Carlos Chagas e pacientes no Hospital Oswaldo Cruz, em Manguinhos. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.


Assumindo centralidade na agenda de pesquisas do Instituto Oswaldo Cruz e no próprio processo de institucionalização da atividade científica no país, a descoberta da doença de Chagas passou a ser tratada pelos contemporâneos e pela memorialística médica, até o presente, como um mito glorificador da ciência brasileira. Uma das considerações que se tornariam mais recorrentes quanto à importância da descoberta como “feito único” da ciência nacional foi o caráter incomum da seqüência sob a qual ela ocorreu, já que se partiu da identificação do vetor e do agente causal para em seguida determinar a doença a eles associada. Outro aspecto singular foi o fato de o mesmo pesquisador haver descoberto, num curto intervalo de tempo, um novo vetor, um novo parasito e uma nova entidade mórbida.
A historiografia sobre a descoberta da doença de Chagas ressalta sua inscrição no contexto de afirmação e institucionalização da medicina tropical européia, tanto em função dos referenciais teóricos que a viabilizaram, quanto pela contribuição que a própria descoberta trouxe para a consolidação da nova especialidade médica criada na Inglaterra por Patrick Manson nos últimos anos do século XIX. Sá (2005) aponta, por exemplo, a importância do estudo do T. cruzi para a elucidação de questões relativas à relação parasito-vetor no caso das infecções causadas por tripanossomas. 
Outro aspecto salientado pelos historiadores é a importância da descoberta como fonte de legitimação, visibilidade e recursos – materiais e simbólicos – para o Instituto Oswaldo Cruz. Stepan (1976), Benchimol e Teixeira (1993) enfatizam que ela propiciou a consolidação da protozoologia como área de concentração das pesquisas na instituição e impulsionou o seu reconhecimento na comunidade científica internacional como renomado centro de investigação sobre doenças tropicais. Kropf (2006) chama a atenção para que se, por um lado, a descoberta contribuiu para dar sentido e reforçar o projeto institucional de Manguinhos, ela própria ganhou sentidos particulares como “grande feito da ciência nacional” em função dos significados associados a este projeto, que se apresentava publicamente como destinado a associar excelência acadêmica e compromisso social em identificar e solucionar os problemas sanitários do país.
Fonte: http://www.fiocruz.br/chagas/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=1