Quando voltamos para casa
O movimento de voltar para casa tem este sentido de acolhida e de cuidado. Imagem-afeto que nos toca como as fotografias que registram o Programa de Volta para Casa que, desde julho de 2003, dá força de lei a mais este passo importante no movimento da reforma psiquiátrica brasileira. Imagem-afeto, imagem-movimento, o tema da saúde mental ganha assim toda a sua consistência entre a clínica, a política e a estética.
No Brasil, o tema da saúde mental se tornou uma questão de natureza “psicossocial”: eis aí um termo que já se tornou consensual entre nós e que nos desafia na experiência da clínica no contemporâneo. A clínica, segunda esta designação, se dá no limite entre o individual e o coletivo. É nesta zona de indiscernibilidade que o movimento da reforma psiquiátrica faz a sua aposta e que os serviços substitutivos ao manicômio afinam os seus dispositivos de intervenção (dispositivos de atenção e de gestão).
Se falamos de um campo em que individual e coletivo se distinguem, mas não se separam é porque outra relação de inseparabilidade se coloca: aquela entre clínica e política.
No campo da reforma, a clínica não pode ser definida como o domínio do privado, dos nossos segredos íntimos, das experiências interiores de um sujeito e que seja diferente e separada da política, entendida como domínio do público (pólis), isto é, domínio onde encontramos os jogos de poder, o embate entre as forças dominantes e as forças dominadas.
Quando se supera as velhas oposições entre clínica e política, entre sujeito e mundo, definimos subjetividade não como uma natureza, uma essência, uma realidade dada. Não estamos falando de alguma coisa que seja sempre idêntica a si. Não estamos falando de uma identidade: a do louco, a do doente mental, a deste indivíduo cujo adoecimento pareceria lhe ameaçar a condição de cidadão. Por subjetividade devemos entender não um estado de coisa ou estrutura, mas um processo – um processo de criação de si e do mundo. Este processo se realiza com múltiplos elementos: o ambiente familiar com suas relações (pai/mãe, mãe/filho, pai/filho etc), a mídia, a violência das cidades, a participação nos movimentos sociais, as políticas públicas de saúde, as artes dentre outros.
A clínica da reforma psiquiátrica é uma experiência de transversalidade, isto é, não há como pensá-la senão de modo transversal ou num plano onde clínica, política, mas também a arte se atravessam. E por que o destaque da interface com a política e a arte? Porque no cotidiano das práticas de gestão e de atenção psicossocial, fomentamos não só modos de produção de bens de consumo como nas oficinas de geração de renda, mas também, e sobretudo, modos de produção da experiência coletiva (as assembléias, as associações, os grupos terapêuticos), modos de produção de outras relações da loucura com a cidade (o AT, os dispositivos residenciais, a luta pelo passe livre, o de volta para casa), modos de produção de outras formas de expressão da loucura (as oficinas expressivas, as rádios e tvs comunitárias), enfim, modos de criação de si e do mundo. Pensamos a inseparabilidade entre a clínica e a política, não podendo negligenciar a interface da clínica com a estética, já que estamos às voltas com processos de criação.
O trabalho dos profissionais de saúde mental é o de cuidar desses processos de criação: ensejá-los e acompanhá-los. E tal cuidado não pode ser confundido com uma ação assistencialista, uma ação do bom profissional definido como “bom homem”. Na verdade, as práticas de atenção/gestão psicossocial são, no campo das políticas públicas de saúde, um exemplo efetivo do SUS que enfrenta os grandes problemas da universalidade do acesso, da integralidade do cuidado e da equidade das ofertas em saúde. Substituir os manicômios, recusar as práticas de atenção pautadas pelo desrespeito aos direitos dos usuários, fomentar o protagonismo, autonomia e a co-responsabilidade dos gestores, trabalhadores, usuários e rede social é tarefa de humanização do SUS. Um SUS mais humano é este que reconhece o outro como legítimo cidadão de direitos, valorizando os diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde. Apostamos na renovação dos modelos de atenção e de gestão no SUS. O movimento da reforma psiquiátrica é atualmente uma política de governo que, assim como o HumanizaSUS, fortalecem as práticas de atenção e de gestão nos fazendo entender que a saúde é um bem público que devemos constantemente, numa ação clínico-estético-política, criar e recriar.
O Programa De Volta para Casa
O Programa de Volta para Casa foi instituído pelo Presidente Lula, por meio da assinatura da Lei Federal 10.708 de 31 de julho de 2003 e dispõe sobre a regulamentação do auxílio-reabilitação psicossocial a pacientes que tenham permanecido em longas internações psiquiátricas.
O objetivo deste programa é contribuir efetivamente para o processo de inserção social dessas pessoas, incentivando a organização de uma rede ampla e diversificada de recursos assistenciais e de cuidados, facilitadora do convívio social, capaz de assegurar o bem-estar global e estimular o exercício pleno de seus direitos civis, políticos e de cidadania.
Além disso, o De Volta para Casa atende ao disposto na Lei 10.216 que determina que os pacientes longamente internados ou para os quais se caracteriza a situação de grave dependência institucional, sejam objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida.
Em parceria com a Caixa Econômica Federal, o programa conta hoje com mais de 2600 beneficiários em todo o território nacional, os quais recebem mensalmente em suas próprias contas bancárias o valor de R$240,00.
Em conjunto com o Programa de Redução de Leitos Hospitalares de longa permanência e os Serviços Residenciais Terapêuticos, o Programa de Volta para Casa forma o tripé essencial para o efetivo processo de desinstitucionalização e resgate da cidadania das pessoas acometidas por transtornos mentais submetidas à privação da liberdade nos hospitais psiquiátricos brasileiros.
O auxílio-reabilitação psicossocial, instituído pelo Programa de Volta para Casa, também tem um caráter indenizatório àqueles que, por falta de alternativas, foram submetidos a tratamentos aviltantes e privados de seus direitos básicos de cidadania.
Residências Terapêuticas
Os Serviços Residenciais Terapêuticos, também conhecidos como Residências Terapêuticas, são casas, locais de moradia, destinadas a pessoas com transtornos mentais que permaneceram em longas internações psiquiátricas e impossibilitadas de retornar às suas famílias de origem.
As Residências Terapêuticas foram instituídas pela Portaria/GM nº 106 de fevereiro de 2000 e são parte integrante da Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Esses dispositivos, inseridos no âmbito do Sistema Único de Saúde/SUS, são centrais no processo de desinstitucionalização e reinserção social dos egressos dos hospitais psiquiátricos.
Tais casas são mantidas com recursos financeiros anteriormente destinados aos leitos psiquiátricos. Assim, para cada morador de hospital psiquiátrico transferido para a residência terapêutica, um igual número de leitos psiquiátricos deve ser descredenciado do SUS e os recursos financeiros que os mantinham devem ser realocados para os fundos financeiros do estado ou do município para fins de manutenção dos Serviços Residenciais Terapêuticos. Em todo o território nacional existem mais de 470 residências terapêuticas.
A reforma psiquiátrica brasileira e a política de saúde mental
A humanidade convive com a loucura há séculos e, antes de se tornar um tema essencialmente médico, o louco habitou o imaginário popular de diversas formas. De motivo de chacota e escárnio a possuído pelo demônio, até marginalizado por não se enquadrar nos preceitos morais vigentes, o louco é um enigma que ameaça os saberes constituídos sobre o homem.
Na Renascença, a segregação dos loucos se dava pelo seu banimento dos muros das cidades européias e o seu confinamento era um confinamento errante: eram condenados a andar de cidade em cidade ou colocados em navios que, na inquietude do mar, vagavam sem destino, chegando, ocasionalmente, a algum porto.
No entanto, desde a Idade Média, os loucos são confinados em grandes asilos e hospitais destinados a toda sorte de indesejáveis – inválidos, portadores de doenças venéreas, mendigos e libertinos. Nessas instituições, os mais violentos eram acorrentados; a alguns era permitido sair para mendigar.
No século XVIII, Phillippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, propõe uma nova forma de tratamento aos loucos, libertando-os das correntes e transferindo-os aos manicômios, destinados somente aos doentes mentais. Várias experiências e tratamentos são desenvolvidos e difundidos pela Europa.
O tratamento nos manicômios, defendido por Pinel, baseia-se principalmente na reeducação dos alienados, no respeito às normas e no desencorajamento das condutas inconvenientes. Para Pinel, a função disciplinadora do médico e do manicômio deve ser exercida com firmeza, porém com gentileza. Isso denota o caráter essencialmente moral com o qual a loucura passa a ser revestida.
No entanto, com o passar do tempo, o tratamento moral de Pinel vai se modificando e esvazia-se das idéias originais do método. Permanecem as idéias corretivas do comportamento e dos hábitos dos doentes, porém como recursos de imposição da ordem e da disciplina institucional. No século XIX, o tratamento ao doente mental incluía medidas físicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias e sangrias.
Aos poucos, com o avanço das teorias organicistas, o que era considerado como doença moral passa a ser compreendido também como uma doença orgânica. No entanto, as técnicas de tratamento empregadas pelos organicistas eram as mesmas empregadas pelos adeptos do tratamento moral, o que significa que, mesmo com uma outra compreensão sobre a loucura, decorrente de descobertas experimentais da neurofisiologia e da neuroanatomia, a submissão do louco permanece e adentra o século XX.
A partir da segunda metade do século XX, impulsionada principalmente por Franco Basaglia, psiquiatra italiano, inicia-se uma radical crítica e transformação do saber, do tratamento e das instituições psiquiátricas. Esse movimento inicia-se na Itália, mas tem repercussões em todo o mundo e muito particularmente no Brasil.
Nesse sentido é que se inicia o movimento da Luta Antimanicomial que nasce profundamente marcado pela idéia de defesa dos direitos humanos e de resgate da cidadania dos que carregam transtornos mentais.
Aliado a essa luta, nasce o movimento da Reforma Psiquiátrica que, mais do que denunciar os manicômios como instituições de violências, propõe a construção de uma rede de serviços e estratégias territoriais e comunitárias, profundamente solidárias, inclusivas e libertárias.
No Brasil, tal movimento inicia-se no final da década de 70 com a mobilização dos profissionais da saúde mental e dos familiares de pacientes com transtornos mentais. Esse movimento se inscreve no contexto de redemocratização do país e na mobilização político-social que ocorre na época.
Importantes acontecimentos como a intervenção e o fechamento da Clínica Anchieta, em Santos/SP, e a revisão legislativa proposta pelo então Deputado Paulo Delgado por meio do projeto de lei nº 3.657, ambos ocorridos em 1989, impulsionam a Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Em 1990, o Brasil torna-se signatário da Declaração de Caracas a qual propõe a reestruturação da assistência psiquiátrica, e, em 2001, é aprovada a Lei Federal 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
Dessa lei origina-se a Política de Saúde Mental a qual, basicamente, visa garantir o cuidado ao paciente com transtorno mental em serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, superando assim a lógica das internações de longa permanência que tratam o paciente isolando-o do convívio com a família e com a sociedade como um todo.
A Política de Saúde Mental no Brasil promove a redução programada de leitos psiquiátricos de longa permanência, incentivando que as internações psiquiátricas, quando necessárias, se dêem no âmbito dos hospitais gerais e que sejam de curta duração. Além disso, essa política visa à constituição de uma rede de dispositivos diferenciados que permitam a atenção ao portador de sofrimento mental no seu território, a desinstitucionalização de pacientes de longa permanência em hospitais psiquiátricos e, ainda, ações que permitam a reabilitação psicossocial por meio da inserção pelo trabalho, da cultura e do lazer.
A mostra fotográfica que aqui se apresenta traz a força documental das imagens, que, para além das palavras, prova que a mudança do modelo de atenção aos portadores de transtornos mentais não apenas é possível e viável, como, de fato, é real e acontece.
Em parceria, a Coordenação Nacional de Saúde Mental e o Programa de Humanização no SUS, ambos do Ministério da Saúde, registraram o cotidiano de 24 casas localizadas em Barbacena/MG, nas quais residem pessoas egressas de longas internações psiquiátricas e que, por suas histórias e trajetórias de abandono nos manicômios, mais parecem personagens do impossível.
Antes, destituídos da própria identidade, privados de seus direitos mais básicos de liberdade e sem a chance de possuir qualquer objeto pessoal (os poucos que possuíam tinham que ser carregados junto ao próprio corpo), esses sobreviventes agora vivem. São personagens da cidade: transeuntes no cenário urbano, vizinhos, trabalhadores e também turistas, estudantes e artistas. Compuseram e compõem novas histórias no mundo.
Essa mostra fotográfica de beneficiários do Programa de Volta para Casa e moradores de Serviços Residenciais Terapêuticos é, acima de tudo, uma homenagem aos que transpuseram os muros dos hospitais, da sociedade e os seus próprios.
FONTE: http://www.ccs.saude.gov.br