O perfil de morbi-mortalidade é um indicador relativamente sensível das condições de vida e do modelo de desenvolvimento de uma população, sendo o resultante da interação de diversos fatores interdependentes. Os modos de produção econômica e de reprodução humana interagem para determinar a estrutura econômica e demográfica (fertilidade, mortalidade e migração) de uma população. Além disso, fatores ambientais e sócio-culturais devem ser considerados, não sendo possível, portanto, separar o nível de mortalidade de sua estrutura e de sua relação com fatores históricos, sócio-econômicos, demográficos e ambientais. Mesmo dentro de um contexto de turbulências econômicas, políticas e sociais, nosso pais mudou substancialmente nos últimos cinqüenta anos, seja por conta de fatores externos, derivados de um mundo progressivamente globalizado, seja pelo desenvolvimento autônomo de circunstâncias e processos históricos e culturais próprios.
Como exemplo dessas mudanças, podemos ilustrar algumas condições para o entendimento do processo saúde-doença em escala populacional. Os termos da ocupação demográfica do espaço físico se inverteram: de uma população fundamentalmente rural (66%) na década de 50 para condição de um país urbano em 2000, com mais de 80% das pessoas atualmente radicadas nas cidades. O desempenho reprodutivo mudou radicalmente, transitando de um quadro em que as mães tinham um padrão modal de 6-8 filhos, para um estágio em que nascem em média 2,3 filhos para cada mulher. A mortalidade infantil caiu significativamente, de patamares acima de 200 óbitos por mil nascidos vivos em várias regiões na década de 40, para níveis médios nacionais de 20 óbitos por mil nascidos vivos.
A vida média se elevou resultando hoje numa expectativa de sobrevivência de 67 anos em função dos termos dessa nova equação demográfica (baixa fecundidade e reduzida mortalidade infantil e pré-escolar). Antes formada, em sua maior parte, por crianças, adolescentes e jovens, a pirâmide populacional, atualmente já apresenta um perfil próximo dos países desenvolvidos,com uma participação crescente de pessoas com mais de cinqüenta anos nos patamares medianos e superiores de sua estrutura.
Concorrentes à rápida transição demográfica, ocorrida principalmente no período de 1960 a 1980, outras mudanças significativas aconteceram, como na estrutura de ocupações e empregos, onde passamos de um mercado de trabalho fundado na agropecuária e extrativismo, para uma demanda por trabalho concentrada nos setores secundário e terciário da economia. São transformações cruciais, no que se refere à geração de renda, estilos de vida e, especificamente, demandas nutricionais.
Apesar de não haver ocorrido aumentos históricos da renda nominal, o valor relativo do ingresso per capita aumentou significativamente, principalmente nos anos 70, por força da diminuição em mais de 50% do tamanho da família economicamente dependente e da participação crescente da mulher no mercado de trabalho. Infelizmente, a distribuição social da renda não melhorou, mantendo-se ou até aumentando o diferencial entre ricos e pobres, fazendo com que o nosso pais hoje, seja um dos três mais injustos do mundo no que se refere à distribuição social das riquezas produzidas. Sendo esse um aspecto importante na compreensão do cenário epidemiológico dos problemas alimentares/nutricionais configurado nas disparidades regionais de renda, com as regiões mais pobres (Norte e Nordeste) desfrutando de pouco mais de 1/4 da renda individual disponível nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul.
Tal como ocorreu anteriormente na Europa, o declínio do coeficiente de mortalidade geral não é o único aspecto notável no Brasil nos últimos 50 anos; também a redução da mortalidade infantil, o aumento da expectativa de vida da população e a modificação do seu perfil epidemiológico são observados. Este processo, chamado de transição epidemiológica, caracteriza-se pela evolução progressiva de um perfil de alta mortalidade por doenças infecciosas para outro onde predominam os óbitos por doenças cardiovasculares, neoplasias, causas externas e outras doenças consideradas crónico-degenerativas. Em nosso país, entretanto, a situação ambiental está em contínuo processo de degradação, ocorrendo à transição epidemiológica marcada pela prevalência das condições de morbi-mortalidade, porém com permanência de certas doenças infecto-parasitárias devido à falta de infra-estrutura urbana básica concorrente com o crescimento de doenças crônicas não infecciosas, com o surgimento de novas doenças sexualmente transmissíveis e com o crescimento da violência urbana devido ao uso de drogas e a outros fatores comportamentais, como o stress da vida cotidiana.
Nas regiões brasileiras, a evolução da mortalidade proporcional por grupos de causas no período de 1930 a 1985, ilustra o processo de mudança gradativa da importância de cada grupo e as variações regionais ao longo do tempo. Em 1985, embora as doenças do aparelho circulatório tenham se tornado a primeira causa de morte em todas as regiões brasileiras, elas correspondiam a 37% no Sul, Centro-Oeste e Sudeste, a 28% no Nordeste, e a 22% na região Norte, enquanto as doenças infecciosas e parasitárias correspondiam a 16% na região Norte, a 14% no Nordeste, a 8% no Centro-Oeste, a apenas 5% na região Sul, e a 4% no Sudeste. Já as neoplasias correspondiam a 17% de todas as mortes na região Sul, a 14% no Sudeste, a 11% no Centro-Oeste, a 10% na região Norte, e a 9% no Nordeste. Enquanto isto, as causas externas correspondiam a 17% no Centro-Oeste, a 12% na região Norte e no Sudeste, a 11% no Sul, e a 10% no Nordeste.
O perfil epidemiológico em 1930 era bastante diferente: as doenças infecciosas eram a primeira causa de morte em todas as regiões, correspondendo a 60% das causas na região Norte, a 49% no Nordeste, a 43% no Sudeste, a 40% no Centro-Oeste, e a 39% na região Sul. Naquela época, as doenças do aparelho circulatório eram responsáveis por apenas 13% dos óbitos no Sul, 12% no Sudeste e Nordeste, e 9% na região Norte. Já as causas externas, ao contrário do que hoje se observa, tinham pouca relevância: correspondiam a 3% das mortes no Sudeste, a 2% no Norte, Nordeste e Sul, e a apenas 1% na região Centro-Oeste.
No período de 1990 a 2006 no Brasil, a manutenção em um pouco mais de 60% dos óbitos informados foi devida a três grupos de causas: doenças do aparelho circulatório (com tendência de decréscimo, variando de 34,3% a 30,0%), neoplasias (com tendência de acréscimo, variando de 12,4% a 15,4%) e causas externas (de 15,1 a 19,9%) A tendência da mortalidade proporcional do País para as causas externas e neoplasias foi reflexo daquela observada para todas as regiões, sendo que, para as doenças do aparelho circulatório, houve um decréscimo nas Regiões Sul (de 37,4% para 33,1%) e Sudeste (de 35,6% para 32,7%) e estabilidade das proporções em torno de 30% para as Regiões Centro-Oeste e Nordeste e em torno de 24% para o Norte. No período, as doenças do aparelho circulatório ocuparam o primeiro lugar em todas as Regiões. Em seguida, situavam-se as causas externas nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, sendo que as neoplasias estavam em segundo lugar nas Regiões Sul e, desde 1999, no Sudeste. As doenças infecciosas e parasitárias diminuíram no período sua participação nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e mantiveram os níveis quase estáveis no Sul e Sudeste, não ultrapassando os 7,3% em 2004 em todas as regiões. As doenças do aparelho respiratório e as afecções originadas no período perinatal diminuíram sua participação em todas as regiões. Como conseqüência das perdas e ganhos observados para os grupos de causas definidas, houve um ganho geral na participação percentual do grupo intitulado “demais causas” para todas as regiões.
No entanto, apesar de ser observada a queda da morbi-mortalidade por doenças infecciosas no Brasil a transição epidemiológica não é uniforme, encontrando-se em alguns estados em fase intermediária e em outros quase se completando. Entretanto mesmo em regiões onde a transição se encontra quase completa, as doenças infecciosas ainda assumem relevância em pequenos bolsões de pobreza, tendo em vista que estas apresentam maior prevalência em áreas de precária infra-estrutura e entre as populações mais pobres.
No campo da nutrição a transição epidemiológica específicamente representa uma abordagem de mudanças mais abrangentes no perfil de morbi-mortalidade que expressa, por sua vez, modificações mais gerais nos ecossistemas de vida coletiva: habitação e saneamento; hábitos alimentares; níveis de ocupação e renda; dinâmica demográfica; acesso e uso social das informações; escolaridade; utilização dos serviços de saúde; aquisição de novos estilos de vida e outros desdobramentos. Corresponde na prática, à passagem de um estágio de atraso econômico e social para uma etapa superior representativa do desenvolvimento humano, em grande parte baseado em valores da chamada civilização ocidental. Numa visão simplista, a transição nutricional pode ser configurada como um processo que seria caracterizado por quatro etapas:
1. desaparecimento, como evento epidemiológico significativo da desnutrição edematosa, aguda e grave, com elevada mortalidade, quase sempre precipitada por uma doença infecciosa de elevado impacto patogênico, como o sarampo, atuando sobre uma criança já previamente desnutrida;
2. desaparecimento do marasmo nutricional, caracterizado pela perda elevada e até extrema dos tecidos moles (massa adiposa e muscular, principalmente), de instalação lenta, habitualmente associado a doenças infecciosas de duração prolongada, como a otite crônica, pielonefrites, tuberculose, diarréias protraídas e extensas piodermites;
3 o aparecimento do binômio sobrepeso/obesidade, em escala populacional; e,
4. a última etapa da transição, se configura na correção do déficit estatural. Seria o capítulo conclusivo do processo, só podendo ser avaliado mediante seu seguimento numa perspectiva de tendências seculares.
No Brasil no final da década de 80, a obesidade começa a ser sinalizada como um problema emergente em populações adultas no país, sendo que o problema do sobrepeso/obesidade ainda não tem sido pouco considerado em nível das ações de saúde no Brasil, embora tenha sido enfaticamente valorizado no documento sobre a política nacional de alimentação e nutrição. Entretanto a desnutrição também ainda subsiste em bolsões de pobreza associada muitas vezes a doenças infecciosas, estando estas por sua vez, associadas a questões ambientais.
Em síntese: as ações setoriais de saúde ainda não apresentam o grau de agilidade e o nível de eficácia para responder, com presteza, aos desafios que o quadro mutante do cenário epidemiológico brasileiro demanda. Pois, o Brasil ainda se apresenta muito dividido por setores e fragmentado em suas ações, desvinculando o social do econômico. Entretanto a política nacional de saúde vem contribuindo para a melhoria da qualificação do Sistema Único de Saúde, tendo em seu arcabouço princípios como universalidade, integralidade e eqüidade, diretrizes de descentralização e organização hierarquizada, e a promoção da saúde que constitui uma visão ampliada no nível nacional tendo como ponto central sua preocupação com o processo gradual de melhoria da qualidade de vida. Melhoria que só se efetivará através da utilização de estratégias e iniciativas capazes de operacionalizar sua interação por intermédio da elaboração de políticas públicas saudáveis, que exigem a ação intersetorial e de uma nova institucionalidade social. Esta por sua vez, se materializa através de propostas como a Estratégia da Saúde da Família, que tem em sua lógica central a operacionalização de conceitos como a territorialização, vinculação, responsabilização e resolutividade com um olhar integral sobre o ambiente em suas dimensões físicas, socioculturais e biopsicossociais, nas quais estão inseridos os indivíduos e suas famílias.
A precariedade dos domicílios, a deterioração da qualidade de vida, o impacto dos ambientes insalubres na saúde e o distanciamento da comunidade científica da realidade são provas vivas da necessidade de aumentar a eficácia e eficiência das políticas públicas de saúde. Atualmente a população urbana brasileira chega a 80% da população total, sendo que metade desta vive em favelas. Os 10% mais ricos no Brasil têm renda 22 vezes maior que os 40% dos mais pobres. Entretanto, se compararmos o Brasil com a América Latina, esta cifra é 19 vezes maior, o que comprova que em relação à América Latina, o Brasil apresenta maiores contrastes, onde 80% dos mais ricos possuem saneamento básico, enquanto 32% dos 40% mais pobres não têm esse benefício.
Na atualidade, saúde tem sido definida não apenas como a ausência de doenças e sim como um estado que se identifica como uma multiplicidade de aspectos, com dimensões física, social e psicológica. Esta relacionada ao modo de viver das pessoas e suas interações com o meio ambiente e não somente com a idéia preponderante do determinismo biológico e genético. A saúde, portanto esta associada com a capacidade de apreciar a vida e de resistir aos desafios do cotidiano. Nessa perspectiva, a habitação aparece como base para promoção da saúde familiar. O ponto central do conceito de habitação saudável é a preocupação com processo gradual de melhoria da qualidade de vida. O desafio está na consolidação da intervenção sobre os fatores determinantes da saúde humana (a biologia, o meio ambiente e estilos de vida) no espaço construído, sendo estes fatores, na habitação, as principais causas de enfermidade e morte. Para enfrentar esse desafio é necessário articular as políticas públicas de habitação, saúde, educação, meio ambiente e infra-estrutura urbana construindo alianças intersetoriais, em uma visão holística, integradora e multidisciplinar, sendo nesse contexto a estratégia de saúde da família o caminho mais adequado para alcançar a promoção da saúde em nível local, sendo o ponto principal de intervenção e inicial de articulação.
Há ainda que se considerar que no setor saúde, o termo “AMBIENTE” é muito mais abrangente, pois inclui todos os macro determinantes das doenças que estão "fora" das pessoas, sejam ambientais (do ponto de vista tradicional), sociais ou econômicos. Assim, em saúde todos esses fatores são classificados como AMBIENTAIS. Usando uma definição da Organização Mundial de Saúde nesse sentido “ambiente” é compreendido como "a totalidade de elementos externos que influem nas condições de saúde e qualidade de vida dos indivíduos ou de comunidades". Desta forma, para se relacionar os problemas de saúde com seus determinantes deve-se unir dados de saúde, referidos à população, a dados ambientais, referidos a algo "externo" à população (incluindo muito mais elementos, como aqueles de natureza social, cultural e econômica, que vão muito além da visão tradicional de ambiente), cada um dos quais oriundos de diferentes sistemas de informação.
Do ponto de vista do modelo tendo o ambiente como determinante da saúde, a habitação se constitui em um espaço de construção da saúde e consolidação do seu desenvolvimento. A família tem seu assento na habitação e, com isto, a habitação é o espaço essencial, o veículo da construção e desenvolvimento da Saúde da Família. É necessária a articulação das políticas públicas, de habitação, saúde, meio ambiente e infra-estrutura urbana para o enfrentamento do desafio da consolidação da intervenção sobre os fatores determinantes da saúde no espaço construído. Demandando a formação de alianças intersetoriais em uma visão holística integradora e multidisciplinar, onde a participação comunitária tem um papel essencial para o enfrentamento das questões locais da precariedade das relações do meio ambiente e o homem em seu habitar. Uma habitação saudável inclui o seu entorno, incorporando múltiplas dimensões (cultural, econômica, ecológica e de saúde humana), numa concepção integradora considerando os usos que fazem da habitação os seus habitantes. Incluindo os estilos de vida e condutas de risco, sendo, portanto uma concepção sociológica.
Outro conceito importante para ser desenvolvido é o da atenção primária ambiental, sendo considerada esta uma estratégia de ação ambiental preventiva e participativa, que reconhece o direito das pessoas a viverem em um meio ambiente saudável e de serem informadas sobre os riscos ambientais em relação a sua saúde e bem-estar. Por definição, a vigilância ambiental em saúde se configura como um conjunto de ações que proporcionem o conhecimento e a detecção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes do meio ambiente que interferem na saúde humana, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle dos fatores de riscos e das doenças ou agravos relacionados à variável ambiental. A vigilância ambiental em saúde se aplica no âmbito da habitação a partir do monitoramento e estabelecimento de valores-limite de exposição para estressores ambientais no domicílio e conduzem a uma proposta de medidas de intervenção e controle para otimização sanitária do ambiente.
No âmbito da atenção primária devemos encontrar aquelas medidas de proteção ou recuperação de baixa complexidade, chamadas ações ambientais primárias, que fazem parte da vigilância ambiental em saúde, sempre em combinação com os demais componentes da Vigilância em Saúde (Vigilâncias epidemiológica e sanitária) tais como: medidas educativas voltadas a riscos ambientais; vigilância e monitoramento da contaminação simples dos ambientes de trabalho e dos domicílios; vigilância e monitoramento da qualidade e disponibilidade de água potável; controle de vetores transmissores de doenças. Ficando claro o caráter indissociável das ações de vigilância ambiental em saúde dos demais componentes da vigilância em saúde, em função da amplitude do termo ambiente aplicado a saúde que tem seu foco na vida humana. Ainda sob o ponto de vista da integralidade articulando ações de promoção, vigilância, prevenção e assistência, fica claro locus operandi das Ações de Vigilância em Saúde (incluindo indissociavelmente as ações de vigilância ambiental) no âmbito da atenção básica.
FONTE: http://teiasmesquita.ning.com/profiles/blogs/transicao-epidemiologica-amp