A Pancreatite Aguda (P.A.) é um processo inflamatório pancreático, de aparecimento súbito(agudo)e etiologia variada, geralmente acompanhada de importante comprometimento sistêmico. Cessada a causa desencadeante a enfermidade poderá evoluir para a regeneração do órgão, com recuperação clínica, anatômica e fisiológica ou marchar para seqüelas decorrentes da cicatrização do parênquima(pancreatite crônica-PC) ou ainda, o êxito letal.
Em 1963 o simpósio de Marselha classificou as pancreatites em: aguda; aguda recidivante; crônica e crônica recidivante. No final da década de 80, em Atlanta, este conceito foi revisto, sendo desclassificada a forma crônica recidivante. Considerando a evolução anatomofisiopatológica das pancreatites, segundo esta ultima classificação, preferimos substituir o termo recidivante por recorrente. Na pratica clínico-cirúrgica e achados necroscópicos, observamos que surtos recorrentes de PA podem acometer os portadores de pancreatite crônica ou mesmo, reinstalarem- se no transcurso de uma já estabelecida PA. Por outro lado devemos saber distinguir a dor da PA e a decorrente da PC. Nesta última, a dor resulta do comprometimento da inervação simpática e obstrução canicular(litiase pancreática). Na verdade a pancreatite é melhor classificada em aguda ou crônica considerando-se critérios clínicos ou anatomopatológicos, respectivamente..
Embora 85% das PAs tenham uma evolução benigna com lesões limitadas, também podem evoluir rapidamente com gravidade e alta mortalidade. As lesões inflamatórias da P.A. vão do edema até a necrose total da glândula. Isto é, desde a pancreatite edematosa ou intersticial, com ou sem esteatonecrose periglandular, até a pancreatite necro-hemorrágica(PANH). A distinção clínica, baseada na gravidade do quadro, entre ambos os extremos inflamatórios da pancreatite aguda(edema e necrose), pode ser difícil. Pancreatites edematosas podem evoluir rapidamente para o choque hipovolêmico e óbito, enquanto que algumas necro-hemorrágicas transcorrem sem grande comprometimento sistêmico.
A ativação das proenzimas pancreáticas que irão desencadear o processo autofágico glandular, ocorre em resposta a diversas causas. Entretanto a maior incidência etiológica recai sobre a litíase biliar(pancreatite biliar), seguida pelo alcoolismo crônico e a hiperlipidemia. Alguns aspectos analíticos sugerem que as lesões pancreáticas associadas ao alcoolismo crônico são apanágio da pancreatite crônica. Por outro lado, Acosta e Ledesma e, 1974, demonstraram a presença de cálculos nas fezes de doentes com com colelitiase e concomitante pancreatite aguda, mesmo quando não era detectada litiase papilar, durante a cirurgia ou na necrópsia.
Existe ainda a possibilidade de obstrução do canal de Wirsung por Ascaris Lumbrigoide e as pancreatites: traumática(trauma direto e CPRE) e pós- operatórias que apesar de pouco freqüentes têm alta mortalidade. Alertamos que a amilasemia elevada no pós-operatório pode ser observada em cerca de 32% das cirurgias abdominais, sem que haja nehum sintoma ou alteração estrutural da glândula. A obstrução duodenal em alça fechada também pode causar P.A.. Com o advento da colangiopancreatografia endoscópica(CPRE), observou-se que este procedimento freguentemente associa-se com hiperamilasemia. Quando realizada concomitante à papilotomia endoscópica, pode ocorrer grave P.A.. É importante frisar que somente a obstrução do ducto pancreático principal não é o bastante necessário para o desencadeamento da PA. Entre outros fatores relacionados com a P.A., são citados: insuficiência vascular pancreática, porfiria, diabetes sacarino, gravidez, peçonha de escorpião, parotidite epidêmica, hiperparatireoidismo, hepatites virais, corticosteroides, diuréticos, estrógenos e antibióticos. Cerca de 15% das PA são criptogênicas.
O pâncreas exócrino é formado por células acinares que sintetizam enzimas digestivas que são “ empacotadas” na forma de pro-enzimas em granulos de zimogênio e transportadas para os ductos centro-acinares. Estes se unem formando ductos maiores que finalmente deságuam no ducto principal(Wirsung) e daí, através da ampola de Vater alcançam o duodeno. A secreção pancreática é estimulada pela secreção de dois hormônios produzidos no duodeno: a SECRETINA, secretada pela presença de ácido no duodeno, estimula a produção de suco pancreático rico em HCO3- a COLECISTOQUINIMA PANCREOZIMINA - secretada em resposta a presença de ácido-graxos e amino-acidos no duodeno. Estimula a liberação pancreática rica em enzimas, mormente a amilase, lipase e tripsina.
A fisiopatogenia, de maneira sucinta, expressa-se inicialmente pelo desencadeamento de mecanismo autodigestivo, após ativação da pro-enzima tripsinogênio em tripsina. Isto provoca verdadeira reação em cadeia, transformando outras pro-enzimas em enzimas ativas, altamente citolíticas.: quimiotripsina, elastase, fosfolipases, calicreina e abundante formação de radicais livres.
O sintoma clássico é a dor em barra mesogástrica, irradiada para o dorso (“em punhalada”) , flancos e ombros, acompanhada de vômitos e abdome flácido sem sinais de irritação peritoneal (devido à localização retroperitoneal da glândula). Nos casos que evoluem com a formação de flegmão peripancreático ou a forma necro-hemorrágica, geralmente há diminuição dos ruídos hidro-aéreos e distensão abdominal devido ao íleo paralítico e, possivelmente sinais clínicos de irritação peritoneal. As formas mais graves podem apresentar ascite, com característica de “caldo de galinha”e presença de espermacete ou mesmo ascite hemorrágica (PANH). Pode ocorrer contaminação bacteriana, com formação de abscessos intracavitários e peritonite. Excepcionalmente vamos observar os clássicos sinais de Gray Turner e de Cullen denotando infiltração hemorrágica do retroperitoneo ou a paniculite nodular liquefativa. A febre não costuma estar presente nas formas não complicadas.
Laboratorialmente devemos pesquisar a amilasemia que, apesar de ser importante dado, não é específico da P.A. e nem retrata proporcionalmente a gravidade das lesões pancreática. A amilasemia normal não exclui a PA., mesmo na vigência da forma necro-hemorrágica. As PAs que cursam com hipertrigliceridemia, com frequência não apresentam elevação da amilasemia. Na PA, a amilase pancreática e a lipase iniciam sincronicamente a ascensão plasmática. Contudo a amilase ascende mais rápido e tem curta duração plasmática( meia vida plasmática =02Hs.). Eleva-se exponencialmente nas primeira 12 hs. após o início dos sintomas, normalizando-se por volta do 5º dia. A persistência de níveis plasmáticos de amilase acima do normal após 10 dias, geralmente prognostica a existência de pseudo cisto de pâncreas. A macro-amilasemia, infarto mesentérico e a perfuração de ulcera péptica, cursam com hiperamilasemia e podem causar confusão no diagnóstico da PA. A lipase é mais duradoura no plasma, persistindo após o desaparecimento da amilase. Também pode estar elevada em outras enfermidades abdominais e sua determinação sérica é bem mais complexa. A tripsina é encontrada apenas no pâncreas(especificidade), ocorrendo elevação sérica na PA. Associada à fosfolipase A2, relaciona-se intimamente com indicadores de prognóstico na PA. Contudo a utilização laboratorial-clínica destas enzimas(tripisina e fosfolipase A2) é limitada pelo alto custo e complexidade do método.
Alguns consideram a relação depuração urinária da amilase e de creatinina como método laboratorial seguro para o diagnóstico da PA. Outros têm dosado a amilasse pancreática marcada(isoamilases). Consideramos ambos os métodos trabalhosos, caros e de utilidade limitada na prática clínica diária. O cálcio sérico abaixo de 8mg/dl, segundo Ranson, é indicativo de mau prognóstico.
No Serviço de Cirurgia de Urgência & do Trauma da FCM/PUCAMP(SCUT), no protocolo da PA realizamos a dosagem da proteína C reativa( PCR), que apesar de não ser específica desta doença , sua elevação é sinal inconteste de prognóstico reservado. Muitos outros serviços adotam este critério em substituição aos critérios de Ranson, o qual estabelece 11 parâmetros: a) na admissão - idade> 55 anos, leucocitose > 16000mm3, glicemia> 200mg/dl, LDH > 350IU/L, TGO > 250 sigma FranKel U/dl; b) nas primeiras 48 Hs. - queda do Ht > 10%, Nitrogênio ureico do sangue > 5mg/dl, calcemia <> 6000ml. Os pacientes com menos de tres sinais têm bom prognóstico. Os que exibem mais de tres sinais, evoluem com maiores complicações e risco de morte.
O hemograma geralmente exibe leucocitose. O Ht. inicialmente pode estar elevado refletindo a hemoconcentração provocada pelo sequestro para o 3º espaço. A hiperglicemia é frequente, possivelmente pelo aumento do glucagon e hipoinsulinemia. Em pacientes com dor abdominal, achados laboratoriais inespecíficos, tais como: Ht elevado, hipocalcemia, hiperglicemia e hiperlipidemia, devem nos fazer suspeitar da PA. A metalbuminemia, resultante da destruição extravascular da hemoglobina, é um achado laboratorial que indica a existência de PANH. Nos pacientes : alcóolatras, ictéricos, hepatopatas e os que tem história de litíase biliar, devemos pesquisar os índices de bilirrubinas, fosfatase alcalina, Gama GT, TGO,TGP, TPAP e albuminemia.
O estudo radiológico simples do torax e abdome, poderá demonstrar sinais não específicos como:derrames pleurais, BCP, pulmão de choque; distensão: gástrica, alças de delgado e cólons caracterizando o íleo; a evidência da clássica “alça em sentinela”; o abaixamento da moldura do cólon transverso e ou desvio da “bolha gástrica”(no caso de pseudocisto); amputação radiográfica do cólon; o apagamento da sombra do pessoa e da gordura periperitoneal por infiltração do retroperitôneo ou ascite; calcificações no HCD sugerindo colelitiase ou mesmo de localização mesogástrica devido a possível calcificacões no grande omento e no canal pancreático; gás peripancreático extraluminal(bolhas de sabão) presente no abscesso pancreático; ar livre em cavidade por perfuração de víscera ôca(ação lítica enzimática principalmente no cólon transverso); impressões digitais”nas alças de delgado produzidas por isquemia mesentérica(por trombose). A ultrassonografia pode restar prejudicada na avaliação das vias biliares e do pâncreas devido a interposição aérea dos cólons, alças e câmara gástrica.
Sem dúvidas, o melhor método de imagens de grande valor prognóstico e de orientação na contuda, é a TC. Esta técnica de imagem diagnostica 100% dos casos de pancreatite e há muito se estabeleceu como “padrão ouro”. Baltazar e Ranson idealizaram uma classificação que vai de 1 a 5 e é largamente utilizada na avaliação da PA quanto ao prognóstico e à indicação operatória. O grau I(Baltazar I) seria a elevação das enzimas sem correspondente alteração morfológica( forma e volume) da glândula. O “B II”é representado pelo aumento de volume(edema) mantendo -se o contorno anatômico pancreático; “B III” - edema associado à uma coleção peripancreática(esteato necrose peripancreática); “B IV” - edema, contôrno glandular irregular em algumas áreas e mais de uma coleção peri- pancreática; “BV”- pancreas com contornos imprecisos, destruição de parênquima, flegmão(coleção) peri-pancreático difuso( P.A. necro-hemorrágica).
A laparoscopia, em casos selecionados, tem inconteste utilidade. O ECG deve ser realizado, mesmo em pacientes jovens, em virtude da comprovada liberação do fator depressor específico do miocárdio e pepitídios vasoativos, nas formas graves da PA.
Após os exames laboratoriais dirigidos para a pesquisa do dano pancreático, outras avaliações paralelas devem ser empreendidas: Hemograma, glicemia, eletrólitos, gasometria arterial, dosagem de bilirrubinas séricas, transacionasses, fosfatase alcalina, proteinograma, ureia, creatinina e urina I.
Qual o tratamento recomendado para o alívio da dor associada à pancreatite crônica?
O tratamento da dor associada à pancreatite crônica varia desde a administração de suplementos enzimáticos orais até a neurocirurgia; a abordagem dependerá da fisiopatologia da dor. Para esclarecer essa discussão, consideremos que nosso hipotético paciente não obteve resposta com o tratamento farmacológico tradicional, incluindo reposição de enzima pancreática oral e analgesia com narcóticos (em minha experiência, moduladores não-narcóticos da dor, desde antiinflamatórios não-esteroidais até fenitoína e gabapentina, são inadequados para controlar a dor pancreática grave). Quando há obstrução ao fluxo de suco pancreático (secreção exócrina), dilatação endoscópica, colocação de próteses nas estenoses, esfincterotomia pancreática, e retirada de cálculos podem melhorar a dor. Embora a cirurgia seja o padrão-ouro para tratamento da dor em pancreatite crônica, a terapia endopancreática é, freqüentemente, uma tentativa válida em um primeiro momento. No meu ponto de vista, esse procedimento funciona como uma ponte para cirurgia, principalmente, se levarmos em consideração as complicações da pancreatite crônica que se torna aguda.1,2
Pelo menos um terço dos pacientes submetidos à endoterapia necessita de cirurgia devido à continuidade da dor. Um cirurgião experiente em pâncreas deve ser o pilar central do tratamento multidisciplinar da dor pancreática. O tratamento cirúrgico padrão para a drenagem pancreática em pancreatite crônica é a pancreatojejunostomia lateral (conhecida como procedimento de Puestow), no qual a glândula é aberta longitudinalmente e uma alça de delgado anastomosada látero-lateralmente ao ducto dilatado.
Infelizmente, os resultados da colocação de prótese endoscópica não se assemelham ao desfecho da cirurgia de drenagem. Considerando que a dor é devido à inflamação do parênquima pancreático, drenar somente o ducto não irá melhorá-la. A ressecção de parte (normalmente a cauda) do pâncreas para doença localizada é outra opção. Normalmente, este procedimento é combinado a um procedimento de drenagem. A pancreatectomia total para controle da dor em pancreatite crônica parece ser uma intervenção muito agressiva, mas está tornando-se cada vez mais comum.3 Se o paciente puder ser identificado antes do aparecimento do diabetes mellitus, coleta de células das ilhotas e autotransplante podem evitar essa complicação. No entanto, em minha experiência, a maioria dos pacientes submetidos à pancreatectomia e ao autotransplante de ilhotas para pancreatite crônica desenvolve pelo menos diabetes moderado dependente de hipoglicemiantes orais ou (mais comumente) de insulina venosa. Contudo, esses pacientes consideram esta “troca” (diabetes em troca de alívio da dor) vantajosa.
O ultra-som endoscópico (USE) oferece uma intervenção de baixo risco para os pacientes com pancreatite crônica: a neurólise celíaca guiada por USE. Um grupo de terminações nervosas, que se supõe serem responsáveis pela sinalização álgica, é temporariamente bloqueado com alguns centímetros cúbicos de bupivacaína, anestésico local, e triancinolona, um corticóide de ação prolongada.4 Os resultados são variáveis, imprevisíveis e altamente dependentes de quem faz o procedimento, mas, mesmo nos melhores casos, os benefícios variam de meses a um ano de alívio da dor (ou, mais comumente, redução). Como regra, desencorajamos o bloqueio celíaco permanente em pacientes jovens com doença benigna. Isto é realizado por radiologistas intervencionistas em pacientes portadores de câncer pancreático com dor grave. O benéfico de curto prazo neste caso supera os potenciais efeitos colaterais debilitantes de um bloqueio celíaco permanente como hipotensão postural. A neurólise celíaca guiada por ultra-som endoscópico pode ser repetida muitas vezes sem prejuízo de outras opções de tratamento como cirurgia. Em raros casos, neurocirurgia (por exemplo, esplancnectomia transtorácica, rizotomia) pode ser necessária para resolver a dor grave não responsiva a outros procedimentos. Finalmente, deve ser lembrado que a piora da dor da pancreatite crônica pode significar uma complicação, tal como o desenvolvimento de um pseudocisto, de uma estenose biliar, ou mesmo de um câncer de pâncreas. O risco de malignidade é alto em pancreatite familiar (genética),5 e é uma indicação para pancreatectomia total profilática em jovens identificados como de risco.
Fonte:http://www.medcenter.com/medscap /Content.aspx?id=8450