quarta-feira, 26 de maio de 2010

MICOSES PROFUNDAS


MICOSES PROFUNDAS
Lucilaide de Oliveira Santos

“Três antibióticos são igual a uma infecção fúngica”.
Lei de Luria (1977)

INTRODUÇÃO

A história natural das micoses sistêmicas em área endêmica inicia-se na infância ou adolescência, quando acontece o primeiro contato com fungo por inalação de propágulos, produzindo lesão pulmonar primária comumente assintomática, com tendência à regressão espontânea, deixando lesões residuais ou quiescentes. A disseminação hematogênica depende da capacidade de resposta do hospedeiro ou da quantidade de propágulos inalados.

Têm-se detectado importante e progressivo aumento das infecções fúngicas sistêmicas, principalmente em pacientes imunossuprimidos. Nos pacientes com SIDA, as micoses sistêmicas merecem atenção especial, pois tendem a se disseminar.

CRIPTOCOCOSE

Nas últimas décadas, a criptococose destacou-se como doença parasitária emergente. A criptococose tem como agente causal o Cryptococcus neoformans, que tem contato inicial com o hospedeiro através da inalação de propágulos viáveis aerossolizados provenientes de fontes saprofíticas ambientais, os quais, no trato respiratório, podem resultar em infecção primária, com formação de complexo gânglio-pulmonar primário e disseminação hematogênica para qualquer órgão, atingindo principalmente o sistema nervoso central.

A interação do hospedeiro com o C. neoformans tem amplo aspecto, que varia da simples colonização, infecção assintomática ou oligossintomática até formas progressivas e disseminadas, geralmente graves, que podem levar ao óbito. O C. neoformans tem a particular capacidade de produzir infecção em ambos hospedeiros imunocompetentes ou gravemente imunodeficientes. Nos hospedeiros imunocompetentes, a infecção primária tem curso auto-limitado, regressivo, e, muitas vezes, subclínico.

Criptococose humana pela variedade gattii ocorre predominantemente em indivíduos não imunocomprometidos, enquanto nos imunodeprimidos, predomina a variedade neoformans. A aparente raridade da forma gattü em indivíduos com SIDA ainda não foi elucidada.

DIAGNÓSTICO CLÍNICO

As manifestações clínicas da criptococose são bastantes polimórficas, portanto, faz-se necessária uma investigação diagnóstica abrangente.

A maioria dos casos diagnosticados de criptococose corresponde, de fato, à forma neurológica. A queixa mais freqüente é cafaléia, exclusivamente, sendo os sinais meníngeos vistos em uma minoria dos casos.

O exame fundoscópico deve ser realizado sempre que o paciente apresentar comprometimento do SNC, principalmente nos casos de hipertensão intracraniana. As alterações mais freqüentemente encontradas são: papiledema, coroidite e neurorretinite.

A forma pulmonar tem como manifestações mais freqüentes tosse produtiva, febre, dor pleurítica, dispnéia, sudorese e emagrecimento.

A forma disseminada é menos freqüente em pacientes imunocompetentes.

DIAGNÓSTICO LABORATORIAL

Os pacientes com suspeita de criptococose devem colher, de rotina, hemograma e bioquímica do sangue (para avaliar comprometimento de outros órgãos). Os pacientes com SIDA deverão ser investigados quanto ao nível de CD4+ e carga viral.

Todos os pacientes com suspeita de criptococose devem ser submetidos à punção lombar, tanto aqueles que apresentam comprometimento primário do SNC, com manifestações menigoencefálicas, quanto os que apresentam outras formas clínicas, com possível comprometimento secundário do SNC.

O líquor pode ser obtido por punção lombar, sendo retirados de 3 a 5 ml (distribuídos em dois frascos estéreis, um frasco deve ser enviado ao Laboratório de Micologia e o outro ao Laboratório de Bacteriologia). Durante a coleta do líquor pode-se perceber pressão liquórica normal ou ligeiramente elevada, o aspecto é freqüentemente claro ou opalescente. A contagem de células é baixa e, na citologia, observa-se predomínio mononuclear. A dosagem de proteína tende a ser moderadamente elevada e a glicose diminuída. A pesquisa direta do fungo com tinta da China (nanquin) ou nigrosina tem tido uma positividade de mais de 80% em pacientes com SIDA e meningoencefalite criptocócica, e 30 a 50% nos pacientes com criptococose sem SIDA. Sempre, entretanto, parte do material deve ser encaminhada ao Laboratório de Micologia para cultura do líquor para fungos em meio Sabouraud.

A prova de aglutinação do látex no líquor, quando disponível, pode ajudar no diagnóstico específico. O teste tem aproximadamente 95% de sensibilidade e especificidade.

Radiografia simples de tórax pode mostrar comprometimento pulmonar, com nódulos subpleurais, derrame pleural ou cavitações, bem como a presença de linfoadenopatia hilar e para-hilar. Radiografia de seios anteriores da face pode evidenciar sinusopatia e lesões osteolíticas.

Ultrassonografia abdominal se faz necessária para definir a presença de linfoadenomegalias abdominais ou retroperitoneais, presença de massas, nódulos ou visceromegalias na cavidade abdominal.

Tomografia computadorizada de tórax nos casos sugestivos de criptococoma. Tomografia computadorizada de crânio nos casos sugestivos de massa encefálica compressiva, com aumento da pressão intracraniana, dilatação ventricular ou hidrocefalia. Ressonância nuclear magnética de crânio está indicada quando houver indecisão sobre os achados da tomografia computadorizada.

A broncoscopia com lavado brônquico deve ser realizada nos pacientes com suspeita de criptococose pulmonar, em centro de referência de Pneumologia, sendo o lavado bronco-alveolar coletado em frasco estéril e encaminhado ao Laboratório de Micologia e Laboratório de Bacteriologia da FMT/IMT-AM.

Estão indicadas também biópsias de lesão cutânea, linfonodo, pulmão ou fígado. O material deve ser acondicionado em dois tubos (um com salina enviado para o Laboratório de Micologia e outro com formol a 10% para o Laboratório de Anatomia Patológica).

Hemocultura, mielograma e mielocultura também são úteis para o diagnóstico. O material deve igualmente ser enviado para os Laboratórios de Micologia e Bacteriologia.

Outros materiais biológicos podem ser colhidos, como escarro, lavado gástrico ou urina.

TRATAMENTO

Ao ser instituída a terapia, deve ser levada em consideração a forma clínica da doença, as condições predisponentes à micose, bem como a biodisponibilidade da droga. A relação custo-benefício é outro fator a ser considerado, principalmente nos pacientes que necessitam de tratamento prolongado ou de esquema de manutenção e supressão a longo prazo.

  • Anfotericina B (0,7-1mg/kg/dia IV, com dose máxima diária de 50mg). A duração do tratamento deve se estender até que duas culturas consecutivas do líquor (com intervalo de um mês entre elas) sejam negativas para fungo ou dose máxima acumulada de 3g; a dose de manutenção deve ser feita continuamente com fluconazol, nos pacientes com SIDA (6mg/dia 1x/dia, até 300mg/dia);
  • Anfotericina B em dose de ataque (1mg/kg/dia) por 15 dias, continuada com fluconazol (6mg/dia 1x/dia, até 400mg/dia) por 45 dias ou até a negativação das culturas;
  • Fluconazol (6-12mg/dia 1x/dia, 400-800mg/dia) para os casos em que não haja condições de uso de anfotericina B;
  • Itraconazol (200-400mg/dia, 6-12 semanas) nos casos de criptococose exclusivamente pulmonar, devendo ser mantido nos pacientes com SIDA (100mg/dia).

Nos casos em que for necessário suspender a anfotericina B, por conta de seus inúmeros efeitos colaterais, quando disponível, deve-se utilizar a anfotericina B lipossomal. Os efeitos colaterais mais significativos da Anfotericina B são: hipocalemia, febre, calafrios, náuseas, vômitos, tremores e cefaléia; os efeitos mais tardios são insuficiência renal, anemia, flebotrombose, arritmia cardíaca e até parada cardíaca.

HISTOPLASMOSE

A histoplasmose é uma micose causada pelo fungo Histoplasma capsulatum, adquirido por inalação de propágulos fúngicos. Apresenta sintomatologia variada, mas pode acometer primariamente os pulmões. Ocasionalmente, outros órgãos são afetados, evoluindo com doença disseminada, sendo esta forma mais comum em pacientes com SIDA.

DIAGNÓSTICO CLÍNICO

HISTOPLASMOSE PULMONAR PRIMÁRIA AGUDA: a infecção assintomática ocorre em 90% dos indivíduos após contato com o fungo; corresponde à primo-infecção pulmonar sintomática, com sintomatologia variável, desde sintomas leves e inespecíficos que regridem espontaneamente até quadro grave de insuficiência respiratória, com necessidade de ventilação mecânica. Os sintomas principais são febre, cefaléia, mal-estar, tosse não-produtiva, dor sub-esternal não-pleurítica, perda de peso, mialgia e fadiga. O exame radiológico pode estar normal ou alterado.

HISTOPLASMOSE PULMONAR CRÔNICA: curso sub-clínico, com quadro semelhante à reativação da tuberculose (com evolução arrastada ao longo de meses ou anos), sintomatologia variável (tosse produtiva, perda de peso, febre baixa e hemoptise). O exame radiológico mostra infiltrado pulmonar intersticial em lobos superiores e espessamento pleural.

HISTOPLASMOSE DISSEMINADA: pode ser assintomática, com disseminação progressiva primária (em pacientes imunodeprimidos) ou reativação de um foco quiescente. A forma aguda cursa com febre alta, perda de peso, caquexia, tosse e dispnéia, hepatoesplenomegalia, linfoadenomegalia, lesões cutâneas e mucosas e a radiografia de tórax mostra infiltrado micronodular intersticial bilateral, semelhante à tuberculose miliar. A forma crônica evolui com astenia, diminuição de peso, lesões cutâneas e mucosas; hepatoesplenomegalia é quase sempre ausente e os pulmões podem estar comprometidos, com infiltrado intersticial. É possível encontrar insuficiência supra-renal. Os casos graves podem cursar com falência cárdio-respiratória, insuficiência hepática e renal, coagulopatia de consumo e síndrome do choque. Todo órgão é passível de ser acometido: fígado, linfonodos (linfadenite), medula óssea (pancitopenia), coração (endocardite ou pericardite), SNC (meningite crônica, cerebelite ou histoplasmoma), trato digestório (diarréia crônica), pele e trato urinário (pielonefrite crônica).

DIAGNÓSTICO LABORATORIAL

Os métodos de diagnóstico mais utilizados entre nós são a visualização direta do fungo em material de biópsia ou outro material biológico, hemocultura ou cultura dos materiais biológicos (demora entre 4 e 8 semanas). Recomenda-se a pesquisa direta do fungo no creme leucocitário (encaminhar 5ml de sangue com anti-coagulante ao Laboratório de Micologia). Métodos sorológicos ou de detecção do antígeno do fungo podem ajudar no diagnóstico, quando disponíveis.

TRATAMENTO

O tratamento da histoplasmose pulmonar aguda é feito com itraconazol (200-400mg/dia VO, por 6-12 semanas); nos casos mais graves, utiliza-se a anfotericina B (0,7mg/kg/dia IV por 12 semanas) e a manutenção é feita com itraconazol (200-400mg/dia VO), nos pacientes com SIDA.

Na histoplasmose pulmonar crônica, os casos leves são tratados com itraconazol (200-400mg/dia VO, por 12 a 24 meses) e os casos graves com anfotericina B (0,7mg/kg/dia IV, por 12 a 24 meses), a manutenção é feita com itraconazol (200-400mg/dia), nos pacientes com SIDA.

Na histoplasmose disseminada, os pacientes são tratados como casos graves sempre, com anfotericina B (0,7-1mg/kg/dia IV, por 12 semanas) e a manutenção é feita com itraconazol (200-400mg/dia VO), nos pacientes com SIDA.

Somente usar fluconazol ou cetonazol se não houver outras opções disponíveis.

LEITURA SUGERIDA

1. WHEAT, L. J.; GOLDMAN, M.; SAROSI, G. State-of-the-art review of pulmonary fungal infections. Semin Respir Infect, v. 17, n. 2, p.158-81, 2002.

2. STEVENS, D. A. Diagnosis of fungal infections: Current status. J Antimicrob Chemother, v. 49 Sup. 1, p.11-9, 2002.

3. MOCHERLA, S.; WHEAT, L. J. Treatment of histoplasmosis. Semin Respir Infect, v. 16, n. 2, p.141-8, 2001.

4. CANO, M. V.; HAJJEH, R. A. The epidemiology of histoplasmosis: A review. Semin Respir Infect, v. 16, n. 2, p.109-18, 2001.

5. PERFECT, J. R.; CASADEVALL, A. Cryptococcosis. Infect Dis Clin North Am, v. 16, n. 4, p.837-74, 2002.

6. JOHNSON, R. A. HIV disease: Mucocutaneous fungal infections in HIV disease. Clin Dermatol, v. 18, n. 4, p.411-22, 2000.

7. BOSWELL, G. W.; BUELL, D.; BEKERSKY, I. Ambisome (liposomal amphotericin B): A comparative review. J Clin Pharmacol, v. 38, n. 7, p.583-92, 1998.