terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Medicação psicotrópica e eventos cardiovasculares: existe uma conexão? Resultados do estudo WISE


Autor: Dr. Fernando Cesena

Introdução

Há muito se fala que depressão aumenta o risco de doença cardiovascular. Embora com evidências menos sólidas, ansiedade também é apontada como fator de risco cardiovascular.

A interrelação entre distúrbios emocionais e doenças cardiovasculares é complexa e bidirecional: por um lado, depressão é um fator de risco independente para doença cardiovascular; por outro lado, as cardiopatias podem causar ou deflagrar a instalação de sintomas depressivos.

Discute-se também o quanto este risco cardiovascular aumentado é atribuído ao distúrbio emocional per se e o quanto é devido a outros fatores associados ou secundários à condição psíquica, como, por exemplo, aumento de frequência cardíaca e pressão arterial, estilo de vida não-saudável, má aderência ao tratamento e mesmo o uso de medicamentos psicotrópicos.

Neste sentido, uma subanálise do estudo Women's Ischemia Syndrome Evaluation (WISE),1 recentemente publicada na revista Heart, traz uma oportunidade para uma breve revisão e reflexão a respeito da influência de medicamentos usados em depressão e ansiedade sobre as doenças cardiovasculares.

O estudo

O estudo WISE incluiu mulheres com sintomas de isquemia miocárdica que se submeteram a cateterismo cardíaco. Não foram incluídas, entre outras, mulheres com cardiomiopatia, doença valvar ou congênita significativa, insuficiência cardíaca classe funcional IV (NYHA) ou infarto do miocárdio recente. A idade média das participantes foi em torno de 57 anos.

Este subestudo comparou a evolução clínica de 4 grupos definidos de acordo com o relato de uso de “antidepressivos” e “ansiolíticos, sedativos ou hipnóticos” nas 6 semanas que antecederam o estudo. Assim, os 4 grupos foram:

  • sem medicação (n=352);
  • apenas ansiolíticos (n=67);
  • apenas antidepressivos (n=58);
  • uso combinado de antidepressivos + ansiolíticos (n=39).

Durante um tempo mediano de observação prospectiva de 5,9 anos, ocorreram 81 (15,6%) novos eventos cardiovasculares e 46 (8,8%) mortes por qualquer causa.

Em uma análise não ajustada, o uso de antidepressivo associou-se a eventos cardiovasculares subsequentes (HR 2,16, IC 95% 1,21 a 3,93) e morte (HR 2,15, IC 95% 1,16 a 3,98). Já o uso de ansiolítico isoladamente não se relacionou com pior evolução.

Em uma análise multivariada (regressão de Cox) que incluiu fatores de risco, dados de história clínica e escores de depressão e ansiedade no momento basal, o uso combinado de antidepressivos + ansiolíticos revelou-se um preditor significativo de eventos cardiovasculares (HR 3,98, p = 0, 001) e mortalidade por todas as causas (HR 4,70, p = 0, 003), comparado com quem não usou tais medicamentos.

Quando “história de tratamento de depressão” foi incluída nos modelos estatísticos como uma covariável, a relação entre uso de medicação combinada e eventos cardiovasculares atenuou-se, porém permaneceu estatisticamente significativa (HR 2,7, IC 95% 1,10 a 6,90, p= 0, 04). A relação com mortalidade por todas as causas, no entanto, deixou de ser significativa (HR 2,86, IC 95% 0,82 a 9,96, p=0, 10).

Os autores concluem que fatores relacionados com medicação psicotrópica, como depressão refratária ou a medicação em si, associam-se a eventos adversos em mulheres com suspeita de isquemia miocárdica.

Comentários

Este estudo traz à tona uma discussão de cunho prático inegável: será que medicamentos psicotrópicos elevam o risco cardiovascular?

A pergunta é relevante: é indiscutível que antidepressivos e ansiolíticos são medicamentos de uso frequente, principalmente entre as mulheres. Além disso, são frequentemente prescritos para pacientes com dores no peito, porém sem evidências de coronariopatia obstrutiva. Neste estudo, por exemplo, em torno de 30% das mulheres estavam fazendo uso de antidepressivo e/ou ansiolítico.

Não é tarefa fácil distinguir o quanto a elevação do risco cardiovascular é atribuída ao processo patológico de base e o quanto pode ser efeito de medicamentos psicotrópicos. Os dois fatores se superpõem, exigindo ajustes estatísticos que são sempre passíveis de críticas.

Neste sentido, este estudo tem a virtude de procurar controlar rigorosamente os níveis de ansiedade e depressão de base, bem como história de tratamento para depressão, a fim de obter uma resposta mais “limpa” acerca do efeito de medicamentos psicotrópicos sobre eventos cardiovasculares.

Desta forma, para avaliar sintomas depressivos foi utilizado o Beck Depression Inventory (BDI), um questionário bem validade composto por 21 itens. Já o nível de ansiedade foi avaliado pelo State Trait Personality Inventory, também já adequadamente validado.

Mesmo controlando a análise estatística para estes escores de níveis de ansiedade e depressão, e para história de tratamento de depressão, o uso combinado de antidepressivo + ansiolítico mostrou-se preditor independente de eventos cardiovasculares.

Outros estudos também mostraram resultados consistentes com esta análise do WISE, ou seja, uma associação entre uso de antidepressivos e aumento de eventos cardiovasculares e/ou mortalidade, mesmo após ajustes para fatores confundidores.

Em uma análise do Nurses' Health Study, por exemplo, o uso de antidepressivo associou-se a um risco maior que 3 vezes de morte súbita cardíaca em um grupo grande de mulheres (n >63.000) que inicialmente não apresentavam sinais de doença arterial coronária.2

Em outro estudo, o uso de antidepressivos associou-se a um risco aumentado de morte ou hospitalização por motivo cardiovascular, mesmo após controle para sintomas depressivos e fatores de risco, em pacientes com insuficiência cardíaca seguidos por um tempo mediano de 3 anos.3


O tipo de antidepressivo importa? Tricíclicos versus inibidores seletivos da recaptação de serotonina

Uma das grandes limitações deste estudo foi não ter diferenciado o uso de antidepressivos tricíclicos dos inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS). Isto porque os tricíclicos têm sido associados, há muito tempo, a prolongamento do intervalo QT, arritmias malignas e morte súbita cardíaca.

Já o uso dos ISRS parece ser mais seguro e até possivelmente benéfico. Em uma análise secundária post hoc do estudo ENRICHD, envolvendo 1.834 pacientes deprimidos após infarto agudo do miocárdio, o risco de morte ou infarto recorrente foi, significativamente menor em quem fez uso de ISRS comparado a quem não usou tal medicação.4

Em estudos randomizados de curto prazo (12 ou 24 semanas), citalopram e sertralina mostraram-se seguros em pacientes com doença arterial coronária, incluindo infarto do miocárdio ou angina instável recente.5,6

Um aspecto bastante interessante é que existem evidências de que a depressão se associa a aumento da reatividade plaquetária, embora isto seja assunto controverso.7,8 Existem também evidências de que os ISRS podem diminuir a hiperatividade plaquetária em pacientes deprimidos.7,9


Limitações

A principal limitação desta análise é tratar-se de um estudo que observou uma coorte prospectivamente e não um estudo que randomizou pacientes para diferentes tratamentos. Assim, os diferentes grupos apresentavam diferenças em suas características basais que podem ter influenciado os resultados finais, apesar dos devidos ajustes estatísticos.

Por exemplo, o grupo que fez uso de antidepressivo + ansiolítico apresentava maior proporção de pacientes com infarto do miocárdio prévio (29% contra 16% no grupo sem medicação), o que pode ter contribuído para um risco cardiovascular maior. No entanto, um escore de severidade da doença arterial coronária não foi diferente entre os grupos no momento basal.

Outra limitação foi a constituição dos grupos de acordo com informação auto-referida pelos pacientes, sendo considerado apenas o relato de uso de medicação psicotrópica nas 6 semanas que antecederam o estudo, e não o uso de tais medicamentos do decorrer do mesmo.

Conclusões

Este estudo permite traçar algumas reflexões sobre a relação entre doença cardiovascular e depressão/ansiedade, condições extremamente comuns na prática clínica. Em primeiro lugar, nunca é demais enfatizar a importância de estar atento para o diagnóstico de distúrbios psíquicos, principalmente depressão, seja em pacientes com doença cardíaca estabelecida, seja naqueles em prevenção primária, já que estas alterações se associam a pior prognóstico cardiovascular.

Segundo, o médico há de ser judicioso ao prescrever medicamentos psicotrópicos. Sempre deve ser aventada a possibilidade de terapias adjuntas, envolvendo uma equipe multidisciplinar, bem como referir o paciente para colegas especialistas.

Conclusões mais definitivas devem vir com estudos randomizados nos quais medicamentos específicos estão sendo testados contra controles em populações com características bem definidas, tendo como desfechos eventos cardiovasculares ou óbito. Por exemplo, estudos randomizados estão investigando sertralina e escitalopram em pacientes com insuficiência cardíaca. 10,11.

Por enquanto, esta subanálise do estudo WISE reforça a recomendação de cautela ao prescrever medicamentos psicotrópicos, principalmente antidepressivos tricíclicos.


Referências

  1. Krantz DS, Whittaker KS, Francis JL, Rutledge T, Johnson BD, Barrow G, et al. Psychotropic medication use and risk of adverse cardiovascular events in women with suspected coronary artery disease: outcomes from the Women's Ischemia Syndrome Evaluation (WISE) study. Heart 2009;95(23):1901-6.
  2. Whang W, Kubzansky LD, Kawachi I, Rexrode KM, Kroenke CH, Glynn RJ, et al. Depression and risk of sudden cardiac death and coronary heart disease in women: results from the Nurses' Health Study. J Am Coll Cardiol 2009;53(11):950-8.
  3. Sherwood A, Blumenthal JA, Trivedi R, Johnson KS, O'Connor CM, Adams KF Jr, et al. Relationship of depression to death or hospitalization in patients with heart failure. Arch Intern Med 2007;167(4):367-73.
  4. Taylor CB, Youngblood ME, Catellier D, Veith RC, Carney RM, Burg MM, et al; ENRICHD Investigators. Effects of antidepressant medication on morbidity and mortality in depressed patients after myocardial infarction. Arch Gen Psychiatry 2005;62(7):792-8.
  5. Lespérance F, Frasure-Smith N, Koszycki D, Laliberté MA, van Zyl LT, Baker B, et al; CREATE Investigators. Effects of citalopram and interpersonal psychotherapy on depression in patients with coronary artery disease: the Canadian Cardiac Randomized Evaluation of Antidepressant and Psychotherapy Efficacy (CREATE) trial. JAMA 2007;297(4):367-79. Erratum in: JAMA. 2007 Jul 4;298(1):40.
  6. Glassman AH, O'Connor CM, Califf RM, Swedberg K, Schwartz P, Bigger JT Jr, et al; Sertraline Antidepressant Heart Attack Randomized Trial (SADHEART) Group. Sertraline treatment of major depression in patients with acute MI or unstable angina. JAMA 2002;288(6):701-9. Erratum in: JAMA 2002 Oct 9;288(14):1720.
  7. von Känel R. Platelet hyperactivity in clinical depression and the beneficial effect of antidepressant drug treatment: how strong is the evidence? Acta Psychiatr Scand 2004;110(3):163-77.
  8. Parakh K, Sakhuja A, Bhat U, Ziegelstein RC. Platelet function in patients with depression. South Med J 2008;101(6):612-7.
  9. Schlienger RG, Meier CR. Effect of selective serotonin reuptake inhibitors on platelet activation: can they prevent acute myocardial infarction? Am J Cardiovasc Drugs 2003;3(3):149-62.
  10. Jiang W, O'Connor C, Silva SG, Kuchibhatla M, Cuffe MS, Callwood DD, et al; SADHART-CHF Investigators. Safety and efficacy of sertraline for depression in patients with CHF (SADHART-CHF): a randomized, double-blind, placebo-controlled trial of sertraline for major depression with congestive heart failure. Am Heart J 2008;156(3):437-44.
  11. Angermann CE, Gelbrich G, Störk S, Fallgatter A, Deckert J, Faller H, et al; MOOD-HF Investigators. Rationale and design of a randomised, controlled, multicenter trial investigating the effects of selective serotonin re-uptake inhibition on morbidity, mortality and mood in depressed heart failure patients (MOOD-HF). Eur J Heart Fail 2007;9(12):1212-22.