segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Anemia Ferropriva



1. Introdução

A anemia ferropriva é a causa mais comum de anemia. Acredita-se que 500 milhões de pessoas no mundo apresentem esta patologia, o que corresponde a 30% da população mundial. As maiores taxas de prevalência de deficiência de ferro são encontradas em populações que sofrem de sangramento crônico do trato gastrintestinal (TGI), devido a infecções parasitárias e/ou que apresentam baixo conteúdo de ferro na dieta.


2. Metabolismo do ferro

2.1. Proteínas envolvidas no metabolismo do ferro

O suprimento e o estoque de ferro são mediados por três proteínas principais: transferrina, receptor de transferrina e ferritina, que por sua vez são reguladas por uma quarta classe de proteínas, que são as proteínas regulatórias de ferro (IRPs). A transferrina é uma proteína de transporte e carreia o ferro no plasma e no líquido extracelular para suprir as necessidades teciduais. O receptor de transferrina é uma glicoproteína de membrana que se liga ao complexo ferro-transferrina, mediando a endocitose. O ferro é liberado dentro da célula, o receptor de transferrina volta a superfície celular e a apotransferrina é liberada no plasma. A ferritina é a mais importante proteína de reserva do ferro e é encontrada em todas as células, especialmente naquelas envolvidas na síntese de compostos que contêm ferro (precursores eritróides) e no metabolismo e reserva do ferro (hepatócitos e macrófagos). As IRPs (IRP1 e IRP2) coordenam a expressão intracelular do receptor de transferrina, ferritina e outras proteínas envolvidas no metabolismo do ferro.

2.2. Suprimento de ferro e reservas

A massa total de ferro corporal é normalmente 40-50 mg/Kg; as mulheres tipicamente tem uma quantidade menor. A distribuição do ferro corporal pode ser vista na Tabela 1.

Tabela 1: Distribuição do ferro corporal


Quantidade (mg/Kg)
Homem Mulher
Compartimento funcional
Hemoglobina 31 28
Mioglobina 5 4
Enzimas Heme 1 1
Enzimas não-heme 1 1
Compartimento de transporte
Transferrina <1> <1>
Compartimento de reserva
Ferritina 8 4
Hemossiderina 4 2

Total 50 40

O equilíbrio do ferro é determinado pela diferença do que entra e do que sai do organismo; é fisiologicamente regulado pelo controle da absorção do ferro: a quantidade absorvida de ferro e as reservas de ferro estão reciprocamente relacionadas, isto é, quando as reservas de ferro diminuem, a taxa de absorção de ferro aumenta. Da mesma forma, o nível de eritropoiese também influencia a taxa de absorção de ferro, isto é, a absorção aumenta com o nível de eritropoiese. Normalmente a troca de ferro com o meio é extremamente limitada. A absorção de ferro acontece na parte superior do duodeno e é influenciada pela quantidade e forma do ferro, fatores gastro-intestinais e composição da dieta (exemplo: ácido ascórbico aumenta a absorção do ferro não-heme). Uma vez absorvido, o ferro se liga à transferrina plasmática e a maior parte do ferro em trânsito é captada pelos precursores eritróides na medula óssea e vai compor a hemoglobina das hemácias circulantes. Estas, após cerca de 120 dias são catabolizadas por macrófagos na medula óssea, baço e fígado. O ferro é liberado da hemoglobina e retorna à transferrina plasmática. O restante do turn over diário de ferro corresponde à parcela absorvida no TGI e a uma pequena parcela do ferro que é perdida para o plasma, resultante de hemólise intravascular. Se liga à haptoglobina ou hemopexina e leva ao hepatócito para um retorno eventual à transferrina plasmática. O movimento do ferro para o éritron (todos os elementos eritróides, em todos os estágios de desenvolvimento, na medula óssea, circulação e espaço extravascular) corresponde a 80% do fluxo de ferro ligado à transferrina. O restante corresponde a: troca de ferro com os hepatócitos, movimento entre o plasma, espaço extravascular e tecido, e uma troca externa limitada (absorção e perda pelo TGI).

2.3. Estágios no desenvolvimento da deficiência de ferro

A deficiência de ferro é geralmente o resultado final de um longo período de balanço de ferro negativo. Conceitualmente, podemos delinear três estágios no desenvolvimento da deficiência de ferro. O primeiro estágio, também chamado de pré-latente, é caracterizado pela depleção das reservas de ferro nos hepatócitos, macrófagos do fígado, baço e medula óssea, sem no entanto haver diminuição do ferro sérico. Neste momento a taxa de absorção intestinal de ferro aumenta. O segundo estágio, também chamado de latente, existe quando as reservas já estão depletadas, mas o nível de hemoglobina ainda permanece normal. Neste estágio, já é possível detectar algumas anormalidades: diminuição da saturação de transferrina, aumento da protoporfirina eritrocitária livre (PEL) e aumento do TIBC (capacidade total de ligação do ferro). O VGM (volume globular médio) permanece normal, mas podem ser detectadas algumas hemácias microcíticas no exame do sangue periférico. Finalmente, quando os níveis de hemoglobina caem abaixo do limite da normalidade, verifica-se a anemia ferropriva, o terceiro estágio. (Tabela 2)

Tabela 2: estágios de desenvolvimento da deficiência de ferro


Normal Pré-latente Latente Anemia ferropriva
Ferro medular Normal Reduzida Ausente Ausente
Ferritina sérica (g/L) Normal Reduzida <> <>
Saturação de transferrina Normal Normal <> <>
PEL Normal Normal Aumentado Muito Aumentado
Hemoglobina Normal Normal Normal Diminuída
VGM Normal Normal Normal Reduzida
Outros
Aumento da absorção de ferro
Alterações epiteliais


3. Etiologia e patogênese

A causa mais comum de aumento das necessidades de ferro que leva à anemia ferropriva é a perda de sangue; em homens e mulheres na pós-menopausa a anemia ferropriva quase inevitavelmente significa perda sangüínea pelo TGI. No TGI, qualquer lesão hemorrágica pode ser responsável por esta perda: hérnia hiatal, varizes esofageanas, esofagite, gastrite, duodenite, úlcera péptica, sangramento intra-hepático, doença inflamatória intestinal, diverticulose, hemorróidas e pólipos adenomatosos. Além disso, a anemia ferropriva é geralmente o primeiro sinal de malignidade do TGI. Ademais, a ingestão crônica de antiinflamatórios, corticoesteróides, salicilatos e álcool pode causar ou contribuir para esta perda de sangue. Mundialmente, a causa mais freqüente de perda de sangue é a infecção por ancilostomídeo; acredita-se que aproximadamente 1 bilhão de pessoas estejam infectadas. Em mulheres, a perda sangüínea menstrual é geralmente responsável pelo aumento das necessidades de ferro. Outras causas genito-urinárias de sangramento incluem neoplasias uterinas e hemoglobinúria resultante de hemoglobinúria paroxística noturna ou hemólise intravascular crônica. Raramente, a perda sangüínea pelo trato respiratório resultante de hemoptise recorrente crônica pode produzir anemia ferropriva. Em crianças e adolescentes as necessidades de ferro podem exceder o suprimento de ferro disponível na dieta. Outros exemplos de necessidades aumentadas de ferro são a gravidez e a lactação. Em alguns casos, o suprimento inadequado de ferro na dieta pode contribuir para o desenvolvimento de anemia ferropriva. Em crianças ou mulheres com hipermenorréia ou múltiplas gestações, o risco de anemia ferropriva pode ser aumentado pelo consumo de dietas com quantidade insuficiente de ferro biodisponível, isto é, aquelas com pouco ou nenhum ferro na forma heme ou grande quantidade de inibidores da absorção. Para crianças mais velhas, homens e mulheres na pós-menopausa, a dieta quase nunca é a explicação para a deficiência de ferro; e outras causas, principalmente perda sangüínea, devem ser pesquisadas. Raramente, uma absorção de ferro prejudicada é a causa da deficiência de ferro.


4. Manifestações clínicas

O paciente com anemia ferropriva pode apresentar: (1) sinais e sintomas da doença de base responsável pela anemia ferropriva, (2) manifestações comuns a todas as anemias (palidez, tonteiras, palpitações, cefaléia, irritabilidade, fraqueza) ou (3) assintomático, somente com alterações laboratoriais. O paciente pode ou não apresentar os sinais e sintomas considerados altamente específicos para anemia ferropriva: pagofagia (consumo excessivo de gelo) ou outra perversão do apetite, coiloníquia e escleras azuis. A presença e a proeminência de sintomatologia depende do grau e do tempo para o desenvolvimento da anemia. Como a anemia ferropriva geralmente é de instalação insidiosa, ocorre adaptação circulatória e respiratória, permitindo uma tolerância a níveis baixos de hemoglobina. O paciente com anemia ferropriva pode também apresentar glossite, estomatite angular, estenose esofagenana e atrofia gástrica.


5. Avaliação laboratorial

A anemia ferropriva é uma anemia microcítica e hipocrômica na maior parte dos casos. O grau de alteração dos índices hematimétricos (VGM, HCM e CHCM) é relacionado, em parte, com a duração e a gravidade da anemia. Na deficiência de ferro de curta duração, os índices podem estar normais. A hematoscopia pode revelar anisocitose e um certo grau de poiquilocitose. O número de leucócitos é geralmente normal, mas em casos extremos pode ser encontrada neutropenia. O número de plaquetas está geralmente aumentado. O exame da medula óssea (mielograma) vai revelar uma hiperplasia do setor eritróide com alguns eritroblastos menores e com citoplasma escasso. A coloração para ferro (azul da Prússia) demonstrará ausência das reservas de ferro.

A Tabela 2 mostra os estágios de desenvolvimento da anemia ferropriva e as alterações laboratoriais em cada uma destas fases.


6. Diagnóstico diferencial

A anemia ferropriva é a única anemia microcítica e hipocrômica em que as reservas de ferro estão ausentes. Se as reservas ainda estão presentes, o diagnóstico de anemia ferropriva é excluído, e se as reservas estão ausentes, o diagnóstico é confirmado.

Na maioria dos casos, a avaliação dos indicadores indiretos é suficiente (ferro baixo, TIBC aumentado, ferritina <12>

As patologias que podem ser consideradas diagnóstico diferencial para as anemias microcíticas e hipocrômicas são: anemia de doença crônica, talassemias e outras hemoglobinopatias, anemia sideroblástica e defeitos na absorção, transporte e utilização do ferro (exemplo: atransferrinemia congênita). A anemia de doença crônica é a causa mais comum de anemia em pacientes hospitalizados e se desenvolve durante semanas em pacientes com algum quadro infeccioso, inflamatório ou neoplasia. A anemia é geralmente leve a moderada. A anemia pode ser normocítica / microcítica e normocrômica /hipocrômica. As características laboratoriais que podem ajudar a diferenciá-la da anemia ferropriva são: TIBC normal ou diminuído e concentração do receptor de transferrina normal (está aumentada na anemia ferropriva). A ferritina está normal ou alta na anemia de doença crônica.


7. Tratamento

O objetivo inicial do tratamento é reparar o déficit de hemoglobina e repor as reservas de ferro medular. Entretanto, a correção deste déficit é somente uma parte do tratamento; é importante identificar e corrigir a doença de base que causou a anemia ferropriva.

O tratamento de escolha é a reposição com ferro oral (sal de ferro, 3-4 vezes por dia, dose total diária: 150-200 mg de ferro elementar), principalmente entre as refeições, o que maximiza a absorção; a preparação de sulfato ferroso é a mais utilizada.
Espera-se um aumento de 2g/dl da hemoglobina após três semanas de tratamento que deve ser mantido até 4-6 meses de normalização do nível de hemoglobina para a reposição das reservas de ferro. Os efeitos colaterais mais comuns são no TGI, que pode ser minimizado com a administração do ferro durante as refeições, ou utilização de preparações com menor quantidade de ferro, ou ainda reduzindo a freqüência de administração para dose única diária. Virtualmente todos os pacientes podem ser tratados por via oral. Desta forma, a terapia parenteral, com riscos de reações adversas, deve ser reservada aos pacientes que permanecem intolerantes apesar de modificações no regime de doses ou pacientes com sangramento crônico incontrolável ou má-absorção de ferro.

fonte:http://www.medcenter.com/