domingo, 18 de maio de 2014

ECONOMIA DA SAÚDE



A economia tem um convívio muito difícil com as profissões do campo da saúde. Muitas das razões originam-se nas formas diversas com que cada uma delas considera a assistência à saúde. Tradicionalmente, as profissões de saúde concentram-se na ética individualista, segundo a qual a saúde não tem preço e uma vida salva justifica qualquer esforço. Por outro lado, a economia fixa-se na ética do bem comum ou ética do social. A importância dessas diferenças reside nas atitudes de cada grupo sobre a utilização de recursos. Daí existir espaço para conflito entre economistas e profissionais de saúde no que diz respeito à gestão eficiente dos serviços de saúde. São raros os economistas que se interessam e permanecem interessados pelo setor saúde; em contrapartida, poucos profissionais de saúde entram no campo econômico. No entanto, em alguns países da Europa e América do Norte, o estudo da economia da saúde tem contribuído para a formação e especialização de pessoal para essa área multidisciplinar, e seu conhecimento é essencial para quem trabalha em planejamento e administração de serviços de saúde. Mesmo nesses países é comum a atitude, partida de profissionais de saúde, alguns deles importantes representantes do saber específico, segundo a qual deve ter prioridade a sobrevivência das pessoas, antes de se pensar em estudos sobre custo/eficácia, viabilidade econômico-financeira e outros afins. A economia da saúde, para esses profissionais, parece estar longe da prática diária dos serviços de saúde. Veêm-na como muito abstrata, teórica, rente de instrumentos de intervenção direta no local e momento requeridos pelo pessoal de saúde. Ao lado disso, os economistas puros necessitam fazer o esforço de entender o campo da assistência à saúde. Os serviços de saúde não são apenas organizações distribuidoras de bens e serviços. Assistência à saúde significa, também, auxiliar seres humanos a ultrapassar dificuldades e inconvenientes da vida, o que é quase impossível de traduzir em números. Essas questões introdutórias não são novas; no entanto, o conflito potencial entre a ética da saúde e a ética econômica vem se repetindo,
sem muitas soluções. Desta forma, uma iniciativa como esta, de divulgação do conhecimento próprio da economia da saúde, baseada na experiência adquirida na área, em Portugal e no Brasil, pode estimular o estudo, a pesquisa e a aplicação prática, no setor saúde, do instrumental disponível nas ciências econômicas. Além disso, ao melhor informar o
nível decisório, pode diminuir ou mesmo terminar com o mito da incompatibilidade entre economia e saúde.

Vínculos entre Economia e Saúde
Economia e saúde estão interligadas de várias formas; seu estudo e pesquisa sistemática e a aplicação de instrumentos econômicos a questões tanto estratégicas como operacionais do setor saúde deram origem à economia da saúde. No entanto, a definição do objeto desta disciplina não aconteceu até a década de 70. Isto porque parte de seu conteúdo, tradicionalmente, desdobrou-se em tópicos de uma outra disciplina, o planejamento em saúde. A partir dessa época, os instrumentos analíticos próprios das ciências econômicas começaram a fazer parte do currículo dos cursos de especialização em administração de serviços de saúde, tendo em vista a sua aplicação mais rotineira no setor. Até hoje permanece em discussão o nome dessa disciplina. De acordo com o grau de comprometimento teórico de cada grupo acadêmico, encontramos várias denominações: aspectos econômicos da saúde, saúde e economia, planejamento econômico-sanitário, economia política da saúde. A forma mais comumente encontrada é economia da saúde, que julgamos ter maior precisão para denominar esta área de especialização tão recente.
As condições de vida das populações e suas conseqüências sobre a saúde são objeto de estudo e pesquisa sistemática há muito mais tempo. Esses trabalhos procuram relacionar fatores socioeconômicos e indicadores de saúde, como, por exemplo, renda e mortalidade infantil, isto é, demonstrar que quanto menor a renda familiar, maior o número de mortes de crianças até o primeiro ano de vida. Ou então, comprovar que a prevalência da tuberculose diminuiu com a urbanização, indicando uma associação estatística positiva entre a melhoria da habitação e dos serviços públicos e a redução dos casos existentes de tuberculose numa determinada comunidade.
Dentro dessa linha, outros trabalhos mostram o impacto do desenvolvimento econômico no nível de saúde de uma população, ou ainda: a
distribuição geográfica dos recursos dedicados à saúde; estudos comparativos entre sistemas de saúde de vários países; estudos sobre resultados de programas específicos de intervenção na comunidade; estudos sobre financiamento e gastos globais com saúde. Outro tipo de trabalho é a análise econômica de bens e serviços específicos, como, por exemplo, a análise do custo-efetividade de um novo medicamento, ou da viabilidade econômico financeira de uma nova tecnologia médica. Todos esses trabalhos demonstram o potencial do conhecimento econômico aplicado à saúde.
A economia da saúde discute muitas das controvérsias existentes no setor. Uma delas refere-se à relação existente entre desenvolvimento econômico e nível de saúde. Em 1961, o estatuto da Aliança para o Progresso afirmava que saúde constitui um requisito essencial e prévio ao desenvolvimento econômico. Neste caso, saúde vem antes, ou seja, existiria uma relação de causa e efeito, na qual saúde é um pré-requisito. No entanto, como já vimos, é difícil conseguir consenso em torno dessas afirmações. A aplicação dos princípios das teorias do crescimento e do desenvolvimento ao campo da saúde tornam mais objetivos os debates sobre o tema. Historicamente, os vínculos entre saúde e desenvolvimento foram estudados em correlações estatísticas de variáveis de ambos os temas. Esse enfoque é simplista, pois considera que as duas partes da equação são de fato separadas. Atualmente, prefere-se ver a saúde como parte do processo de desenvolvimento, sobretudo estudando-se a organização do trabalho e os modos de produção. Nesse sentido, o papel do Estado é fundamental para explicar a evolução dos níveis de saúde como parte integrante da situação social, e não só pela sua intervenção no setor saúde — que pode resultar em benefício para a população e também apresentar maus resultados. Nas situações de crise do Estado, essas relações tornam-se muito evidentes e exteriorizam-se nas crises de acesso, de custos e de eficácia dos serviços de saúde.
Uma das mais importantes áreas de interesse da economia da saúde é o estudo da função distributiva dos sistemas de saúde. Daí os trabalhos sobre as desigualdades existentes nos serviços de saúde, tendo em vista a eqüidade possível. A eqüidade em saúde é um tema muito discutido; em geral conota eqüidade de acesso aos serviços, mas atinge desde equidade geográfica a eqüidade por classe social, por faixa etária ou grupo sócio-cultural, até a eqüidade de utilização e a eqüidade de resultados terapêuticos. Os trabalhos nessa área têm orientado a definição de políticas e prioridades de saúde de muitas regiões e países. Outra controvérsia diz respeito ao direito à saúde. Muitos países
ocidentais incluem em suas constituições saúde como um direito do cidadão. A falta de consenso inicia-se pela expectativa de se alcançar a saúde, sem a participação efetiva do indivíduo, de seus hábitos e modo de vida, como se saúde fosse um bem disponível independente das consequências das ações individuais. Tendo em vista recursos orçamentários limitados, a discussão chega à questão das prioridades da aplicação de recursos. Por exemplo, metade da verba anual de determinado órgão público de saúde foi destinada ao controle do câncer. Esse programa traz benefícios para a população em geral? Ou então dedica-se essa verba a programas de assistência primária à saúde, atingindo a maioria da população carente? Seria admissível que alguns têm mais direito à
saúde que outros? Atribuir um preço à vida e uma escala de valores monetários para diferentes estados de saúde minimizariam essas dúvidas. No entanto, a natureza dessa discussão requer a participação de equipes profissionais multidisciplinares, justificando a aplicação de princípios econômicos para orientar a tomada de decisão. Mais uma questão importante e controversa: serão os serviços de saúde providos pelo setor público ou pela iniciativa privada? A busca por uma solução muitas vezes ignora a forma como essa provisão de serviços será financiada. Há a corrente que defende a provisão de serviços pelo Estado, com um sistema de saúde nacionalizado, a exemplo do existente defendem a livre competição entre prestadores e fornecedores de bens e serviços de saúde, conferindo às forças do mercado o poder de controlar as relações entre os agentes envolvidos. Entre essas duas posições opostas, existem outras aproximações e correntes, tornando a controvérsia "sistema público ou sistema privado" um dos assuntos mais discutidos por especialistas da área. Como resultado dessas discussões, surgem múltiplas formas de combinação de recursos públicos e privados que estão sendo testadas e implementadas em grande escala.
As transformações ocorridas no Leste Europeu e a volta à economia de mercado como estratégia político-social enfraqueceram o movimento por sistemas de saúde nacionalizados. Ao mesmo tempo, nota-se desinteresse geral pela preservação e até pelo aperfeiçoamento dos serviços de saúde governamentais existentes. Temas como eficiência e eficácia de hospitais governamentais raramente atraem a atenção de especialistas da área. Como resultado, nota-se a relativa ausência de propostas para o setor público de saúde. Ao mesmo tempo, cresce o número de adeptos da privatização dos serviços de saúde, muitas vezes desatentos à natureza do processo proposto. Entra a economia da saúde como recurso orientador dessa discussão, contribuindo para o entendimento da situação encontrada. Um grande número de países não suporta financiar um sistema público de saúde, que em grande parte apresenta produtividade e desempenho baixos. Segmentos da população pressionam por alternativas mais adequadas
aos tradicionais serviços oferecidos, conduzindo a uma séria busca pela combinação ideal de recursos públicos e privados. Alguns países admitem que o setor privado preencha os vazios tecnológicos e operacionais existentes nos sistemas oficiais, conferindo ao setor privado maior responsabilidade pelo funcionamento geral do sistema. Em outros, a privatização buscada parece ter o objetivo de livrar os governos do setor saúde, da confusão e da miríade de problemas nele contidos. Aspectos como o financiamento dos serviços, a segmentação do mercado, a demanda existente e o impacto de novos investimentos, todos temas comuns à economia da saúde, reúnem elementos essenciais à orientação das decisões no setor.

Até o momento não existem evidências comprovadas de que a promoção do setor privado de saúde cause um ganho de eficiência em qualquer nível do sistema de saúde. Parece que o maior impacto no desempenho do setor viria de mudanças estruturais mais profundas, atingindo a organização e os processos produtivos do setor. Daí a conclusão que se pode vislumbrar, de que o movimento pela privatização dos serviços de saúde tem raízes ideológicas, no predomínio, observado atualmente, de uma visão mais individualista da organização social.

Desde o início, a filantropia participou da maioria dos sistemas de saúde no mundo, em parte condicionando sua estrutura e modo de funcionamento. Instituições filantrópicas são ainda responsáveis pela prestação de serviços em muitos países; em outros, o governo assumiu o papel de provedor, ou, muitas vezes, de principal financiador de um sistema de prestação de serviços de saúde sem fins lucrativos. No entanto, a filantropia no século XIX era diferente da filantropia atual, caso se
possam denominar de filantrópicas as instituições de saúde que são isentas de impostos e taxas em troca da assistência gratuita de um percentual de sua clientela. Um hospital filantrópico típico reserva uma ala especial para pacientes não pagantes — entre 20 e 30% de seus leitos disponíveis —, enquanto gera receita no restante de sua capacidade operacional.
Por outro lado, instituições públicas que, tradicionalmente, ofereciam serviços gratuitos criaram mecanismos de cobrança em áreas físicas especialmente criadas para pacientes privados. Pagar pelo serviço recebido, mesmo que apenas em parte, tem o efeito de diminuir a utilização que, deixada totalmente gratuita, parece estimular o consumo desnecessário de serviços. Daí surgirem as "taxas moderadoras", mecanismo utilizado para conter a demanda por recursos escassos. A maioria dos países europeus, tradicionalmente com sistemas públicos de saúde, cobra taxas por serviços prestados pelos hospitais governamentais. Entre outros mecanismos inovadores encontrados nos serviços públicos de saúde temos: administração privada de hospitais públicos; associações entre hospitais públicos e fundações privadas, como mecanismo de fuga da burocracia estatal; privatização de serviços como laboratório clínico e radiologia; e co-gestão de hospitais privados pelo poder público. Os mecanismos de regulamentação do mercado da saúde ainda estão nos estágios iniciais de concepção e aplicação. Aí existe mais uma área de interesse para a economia da saúde, ou seja, criar condições de melhoria das deficiências peculiares ao mercado dos serviços de saúde.
Sem a pretensão de esgotar o assunto, algumas dessas deficiências são: enorme participação estatal no setor saúde, como agente financiador dos serviços ou como prestador direto; a soberania do consumidor, imprescindível pelo menos teoricamente para o funcionamento do mercado, torna-se prejudicada diante da doença, do desconhecimento e da incerteza que a acompanham; a participação sempre crescente, no pagamento dos serviços, de terceiros que também desconhecem regras elementares do setor; e os determinantes e limites éticos e sociais do funcionamento das organizações de assistência à saúde. O estudo da demanda de serviços de saúde tem aspectos muito específicos, segundo as diferentes interpretações, quais sejam: o preço que se paga por esses serviços, quem exerce a demanda (consumidores, prestadores, governo), o impacto de investimentos realizados sobre a demanda (a conhecida lei de Roemer, que afirma que um novo serviço de saúde tem a capacidade de gerar sua própria demanda, mesmo em mercados saturados), e a prioridade dada à saúde pela população. Por outro lado, a oferta de serviços de saúde se faz copiando a tecnologia criada nos países do Primeiro Mundo. Grandes interesses comerciais movem essa tendência, principalmente nas áreas de medicamentos e equipamentos médico-hospitalares. Não existe interesse em buscar tecnologia apropriada às condições existentes na localidade. Da mesma forma, os
estudos críticos a esse respeito não mostram coerência e muito menos propostas viáveis de serem implementadas. Mais que nunca o papel do Estado na regulamentação da oferta e da demanda de serviços de saúde é fundamental. O setor saúde parece ter sido esquecido, ou então existem interessados em manter o status quo. Outros setores terciários da economia já possuem mecanismos regula -
dores claros e eficientes. Por todas essas razões, é importante sublinhar o papel da economia para o estudo da dinâmica do mercado de serviços de saúde. A economia da
saúde lança mão da colaboração multidisciplinar para entender o significado das necessidades de serviços de saúde e as relações entre oferta e demanda. Também reconhece que a percepção dos processos patológicos é diferente para cada grupo social, afetando e sendo afetada pelo comportamento desses grupos em cada contexto. Cabe também analisar o papel influenciador que exercem os interesses comerciais, sejam de fabricantes de medicamentos ou equipamentos, sejam as diferentes formas de apresentação de planos e seguros-saúde e o papel dos médicos e diversos tipos de prestadores na decisão de consumo de serviços pelos pacientes.