A
história da doença de Chagas se inicia com uma tripla descoberta, no
interior de Minas Gerais. Em abril de 1909, Carlos Chagas (1878-1934),
pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), comunicou ao mundo
científico a descoberta de uma nova doença humana. Seu agente causal (o
protozoário que denominou de Trypanosoma cruzi,
em homenagem ao mestre Oswaldo Cruz) e o inseto que o transmitia
(triatomíneo conhecido como “barbeiro”) também haviam sido por ele
identificados, ao final de 1908. O “feito” de Chagas, considerado único
na história da medicina, constitui um marco decisivo na história da
ciência e da saúde brasileiras.
Trazendo
uma contribuição inovadora ao campo emergente da medicina tropical e
dos estudos sobre as doenças parasitárias transmitidas por
insetos-vetores, Chagas traria a público não apenas uma nova entidade
nosológica, mas a realidade sanitária e social do interior do país,
assolado pelas endemias rurais. Enaltecida por Oswaldo Cruz como a maior
das “glórias de Manguinhos”, a descoberta trouxe imediato prestígio e
projeção ao jovem cientista, que receberia várias distinções acadêmicas
no Brasil e no exterior, tendo sido indicado ao Prêmio Nobel por duas
vezes.
Dedicando
sua vida profissional, junto a seus colaboradores, a investigar os
vários e intricados aspectos da nova enfermidade, Chagas deu início a
uma tradição de excelência acadêmica que se espraiaria de Manguinhos
para outros centros científicos no Brasil e no continente americano. Ao
mesmo tempo, chamou a atenção sobre a necessidade do enfrentamento
concreto desta e outras endemias do interior, intimamente associadas à
pobreza, gerando uma mobilização que ocuparia, a partir de então, as
tribunas da política e das instituições de saúde.
A
trajetória da produção de conhecimentos e ações sobre a doença de
Chagas, ainda que iniciada sob a marca do “feito singular” de um
cientista, tem sido, desde 1909, um empreendimento coletivo, a
articular, em distintos contextos históricos e sociais, os cientistas e
outros grupos sociais, na busca por novos conhecimentos e ferramentas
para lidar com este importante problema. Marcado por conquistas e
vitórias, mas também por críticas e incertezas, por conflitos e por
acordos, por trilhas abandonadas e outras continuadas, por continuidades
e descontinuidades, o percurso da doença de Chagas ao longo destes cem
anos nos fala das relações entre ciência, saúde e sociedade.
Este segmento Historia tem
o objetivo de apresentar alguns dos principais marcos nesta trajetória,
abordando a biografia de Carlos Chagas, o processo da descoberta e os
contextos em que ela esteve inserida, a produção dos conhecimentos sobre
a doença, sua importância social e as iniciativas para combatê-la.
Reunindo textos elaborados por historiadores e por alguns dos próprios
médicos e cientistas que fizeram, e ainda fazem, esta história, a
produção da memória sobre o tema é tecida mediante distintos olhares,
perspectivas e abordagens.
A
presença da história, neste Portal, junto aos segmentos que apresentam
os conhecimentos e perspectivas relacionadas à doença hoje, em seus
vários campos disciplinares, materializa a preocupação comum a todos os
que se associam ao legado de Carlos Chagas, com o objetivo de
disseminá-lo entre as novas gerações, nas instituições de ciência, saúde
e educação e nos tantos outros espaços da vida social do país e do
continente americano: suscitar a reflexão sobre o passado, e, a partir
do presente, pensar os desafios que nos convidam a planejar o futuro.
Carlos
Ribeiro Justiniano Chagas, primeiro dos quatro filhos de José
Justiniano Chagas e Mariana Cândida Ribeiro Chagas, nasceu aos 9 de
julho de 1878, na Fazenda Bom Retiro, próximo à pequena cidade de
Oliveira, Minas Gerais. Seus antepassados, de origem portuguesa, tinham
se estabelecido na região havia quase um século e meio. Órfão de pai aos
quatro anos, Chagas passou a infância nessa e em outra fazenda da
família, em Juiz de Fora, onde sua mãe administrava o cultivo do café.
Embora distante dos centros ilustrados do país, a convivência com os
tios maternos (dois advogados e um médico) fez com que o menino
manifestasse, desde cedo, vontade de avançar nos estudos, com particular
interesse pela medicina.
Carlos Chagas aos quatro anos. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Fazenda
Bom Retiro, localizada próximo a Oliveira (Minas Gerais), onde nasceu
Carlos Chagas. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz.
José
Justiniano Chagas e Mariana Cândida Ribeiro Chagas, pais de Carlos
Chagas. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz.
Aos
oito anos, alfabetizado, foi matriculado no Colégio São Luís, internato
dirigido por jesuítas em Itu, interior de São Paulo. Mas não ficaria
ali por muito tempo. Em maio de 1888, ao ter notícias de que os escravos
recém-libertados estariam depredando fazendas, fugiu do colégio para ir
ao encontro de sua mãe. A indisciplina foi punida com a expulsão e o
menino transferiu-se para o Ginásio São Francisco, em São João del Rey, Minas Gerais. Concluídos os estudos, sua mãe decidiu que ele deveria formar-se em engenharia. Em
1895, ingressou então no curso preparatório da Escola de Minas de Ouro
Preto, tradicional centro de ensino superior. Contudo, os excessos da
vida boêmia custaram-lhe a reprovação nos exames e o retorno a Oliveira.
Com a ajuda do tio médico, venceu a resistência da mãe e mudou-se para a
capital federal, para estudar medicina.
No
Rio de Janeiro, foi morar com outros estudantes mineiros numa pensão no
bairro da Tijuca. Em abril de 1897, matriculou-se na Faculdade de
Medicina, na rua de Santa Luzia, centro da cidade. Chagas
impressionou-se vivamente com a agitação política da capital. O governo
de Prudente de Morais (1894-1898), primeiro presidente civil da
República, buscava superar as turbulências e conflitos que vinham
sacudindo o novo regime, como a revolta de Canudos, no interior da
Bahia. O governo de Campos Sales (1898-1902) selaria a estabilização
política e econômica e estabeleceria as bases da tão propalada
modernização republicana.
Do
ponto de vista cultural, a cidade também vivia um momento de grande
efervescência. O jovem estudante, que assistira logo ao chegar à criação
da Academia Brasileira de Letras, ficou entusiasmado com os novos
escritores e estilos que se projetavam na cena literária. Nos diversos
espaços intelectuais, disseminava-se a crença de que se vivia um novo
tempo, simbolicamente expresso no novo século que se aproximava, em que o
Brasil ingressaria no rol das nações “civilizadas”. Sob os valores do
positivismo e outras teorias cientificistas, a ciência e a técnica eram
exaltadas, pela chamada geração de 1870, como elementos norteadores de
um saber objetivo e eficaz, capaz de prover o bem-estar moral e material
da sociedade.
Foi
sob esta perspectiva que médicos e engenheiros engajaram-se em pensar
soluções para as precárias condições sanitárias da capital federal,
agravadas naquele final de século em função do próprio ritmo da
modernização urbana. As freqüentes epidemias, sobretudo de febre
amarela, que assolavam a zona portuária e o centro da cidade, traziam
fortes prejuízos às atividades econômicas, concentradas na exportação de
café e outros produtos agrícolas e na importação de manufaturas e
capitais. O saneamento urbano era visto como crucial para o progresso do
país e, com esse objetivo, preparava-se a reforma da cidade que seria
realizada nos primeiros anos do século XX.
Foi
nesse contexto que se deu a difusão, no país, da microbiologia, num
processo marcado por controvérsias, debates e acomodações entre os que
aderiam às concepções de Louis Pasteur e Robert Koch e os que defendiam
as teorias climatológicas da tradição higienista. A institucionalização
da medicina tropical na Europa, no contexto de expansão dos interesses
imperialistas, gerava novos conhecimentos sobre o modo de transmissão de
doenças infecciosas como a malária e a febre amarela, especialmente
sobre o papel dos insetos como vetores.
Em
consonância com esta renovação das ciências biomédicas, vários
professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro defendiam, desde a
década de 1880, a
importância de incorporar ao ensino os preceitos e práticas da chamada
medicina experimental, ou seja, da pesquisa científica realizada no
laboratório em busca de novos conhecimentos. Este foi o ambiente em que Chagas realizou seu curso médico, entre 1897 e 1903.
Dois
professores marcaram de maneira decisiva sua formação. Um deles foi
Miguel Couto, com quem Chagas aprendeu a utilizar os métodos e
princípios da medicina experimental para o diagnóstico e o estudo
clínico das doenças que compunham a nosologia brasileira. Couto, de quem
Chagas se tornaria amigo pessoal, incutiu no jovem estudante a
concepção de que a clínica médica deveria ser renovada e subsidiada
pelos novos conhecimentos e técnicas propiciados pelas pesquisas
científicas. Por sua sugestão, Chagas conheceu as obras de Claude
Bernard e de Louis Pasteur.
Outra
influência decisiva foi a de Francisco Fajardo, um dos pioneiros da
microbiologia no Brasil, que apresentou a Chagas os temas específicos da
medicina tropical. Profundamente sintonizado com os estudos e
problemáticas peculiares a esta disciplina, especialmente no que dizia
respeito à malária, Fajardo colecionava insetos sugadores de sangue e
realizava estudos experimentais sobre o ciclo evolutivo do hematozoário
descoberto por Laveran, com quem mantinha contatos pessoais. No
laboratório de Fajardo, no Hospital da Santa Casa de Misericórdia,
Chagas auxiliava a realização de exames hematológicos e a identificação
das diferentes espécies do parasito da malária, base para o diagnóstico
diferencial das várias formas clínicas da doença. Com o tempo, acumulou
material para suas próprias experiências.
Com
o objetivo de elaborar sua tese de doutoramento, pré-requisito à
qualificação para o exercício da medicina, dirigiu-se em 1902 ao
Instituto Soroterápico Federal, em Manguinhos. Levou
uma carta de apresentação de Fajardo a Oswaldo Cruz, diretor técnico do
Instituto, criado dois anos antes para fabricar soro e vacina contra a
peste bubônica. Dava-se assim o primeiro contato com aquele que seria
seu grande mestre e com a instituição na qual realizaria sua vida
profissional.
O
Instituto de Manguinhos – que a partir de 1908, sob a denominação de
Instituto Oswaldo Cruz, se consolidaria como respeitado centro de
produção de imunobiológicos e de pesquisa e ensino no âmbito da medicina
experimental – atraía os estudantes interessados, como Chagas, no
estudo científico das doenças tropicais. Aceito por Oswaldo Cruz, que
tornou-se seu orientador, Chagas passou a freqüentar o Instituto
diariamente. Em 1903, defendeu sua tese de doutoramento, intitulada Estudos hematológicos no impaludismo,
analisando a importância dos conhecimentos sobre o ciclo evolutivo do
plasmódio para o diagnóstico e o tratamento das várias formas clínicas
da malária.
Apesar
do convite feito por Oswaldo Cruz para integrar a equipe de
pesquisadores de Manguinhos, Chagas preferiu dedicar-se à clínica. Em
1904, foi nomeado médico da Diretoria Geral de Saúde Pública, passando a
trabalhar no hospital de isolamento de Jurujuba, Niterói, destinado a
atender, sobretudo, doentes de peste. Ao mesmo tempo, instalou seu
consultório particular no centro do Rio. Em julho daquele ano, casou-se
com Íris Lobo, filha do senador mineiro Fernando Lobo Leite Pereira.
Dessa união nasceriam Evandro Chagas, em 1905, e Carlos Chagas Filho, em
1910. No ano seguinte, o convite feito por Cruz para chefiar uma campanha de profilaxia da malária seria o primeiro passo de uma reorientação em sua carreira, que o conduziria de volta aos laboratórios de Manguinhos e à descoberta da doença que leva seu nome.
Carlos Chagas e as campanhas contra a malária
Na passagem do século XIX ao XX, no
contexto de difusão da teoria do parasito-vetor constitutiva da
medicina tropical mansoniana, o mundo científico foi marcado por uma
intensa busca por transmissores alados para as doenças, especialmente
insetos sugadores de sangue, como os mosquitos. Para subsidiar as
investigações médicas com conhecimentos especializados sobre as
características biológicas destes insetos, o Museu Britânico
de
História Natural deu início, em 1898, a um amplo levantamento dos
mosquitos existentes em todo o mundo. Como mostram Benchimol e Sá
(2006), o debate sobre os artrópodes vetores de doenças fez da
entomologia médica uma área de conhecimento cada vez mais em evidência. Adolpho Lutz,
então diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo, era a principal
autoridade científica nesta área no Brasil. Em permanente intercâmbio
com os pesquisadores e instituições internacionais, exerceria grande
influência sobre outros cientistas que seguiriam por este caminho.
Oswaldo
Cruz realizava trabalhos de coleta e classificação de insetos do
Brasil, tendo identificado, em 1901, uma nova espécie de anofelino às
margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Em 1906, a
contratação de Arthur Neiva veio reforçar a área no Instituto de
Manguinhos, do qual Lutz se tornaria pesquisador em 1908. Tendo como
referência os trabalhos de Lutz, Cruz e Neiva, Chagas publicou, em 1907,
trabalhos sobre os culicídios brasileiros, com a descrição de novas
espécies.
O
desenvolvimento da entomologia médica no Instituto – e a inserção de
Chagas neste processo – estiveram diretamente relacionados com uma
importante frente de ampliação da instituição, acionada por Oswaldo
Cruz. Reproduzindo uma prática comum entre os médicos e microbiologistas
europeus que se deslocavam para a África e a Ásia a fim de combater
epidemias e estudar as doenças tropicais, os pesquisadores de Manguinhos
engajavam-se em expedições científicas a diversos pontos do território
nacional. Tais missões serviam tanto para estudar as condições
sanitárias das distintas regiões, como para debelar crises epidêmicas
que prejudicavam as obras de companhias públicas ou privadas associadas à
modernização do país. Em função da expansão demográfica e econômica, a
realização destas obras, sobretudo das que adentravam matas e regiões
inóspitas, era freqüentemente acompanhada de surtos epidêmicos,
especialmente de malária. Isso se dava em geral quando da construção das
ferrovias, cujas linhas e ramais se multiplicavam pelo território
nacional visando a um escoamento mais eficaz da produção agrícola para
exportação.
Estas viagens reforçavam a
identidade social do Instituto Oswaldo Cruz como instituição
comprometida com a solução de questões de saúde pública de interesse
nacional. Por outro lado, elas funcionavam também como impulsionadoras
da própria pesquisa em torno das novas questões da medicina tropical que
surgiam no ambiente médico-científico. Nestes canteiros de obras, os
pesquisadores realizavam a coleta de materiais, experiências e estudos
sobre temas variados da nosologia brasileira, relacionados tanto a
aspectos médico-sanitários, quanto a questões biológicas concernentes
aos parasitos e vetores. Foi justamente por meio de viagens como estas
que Chagas refez seu vínculo com Manguinhos e com o tema da malária
(estudado por ele em sua tese de doutoramento), desenvolvendo
habilidades e conhecimentos específicos que o levariam à descoberta de uma nova doença tropical em 1909.
Em 1905, a
Companhia Docas de Santos solicitou a Oswaldo Cruz, que chefiava a
Diretoria Geral de Saúde Pública, providências para combater uma
epidemia de malária entre os trabalhadores que construíam uma
hidrelétrica em Itatinga, destinada a abastecer o porto de Santos. Em
função de seus conhecimentos sobre a doença, Chagas foi incumbido de
coordenar as ações de profilaxia. Esta
foi a primeira campanha antipalúdica realizada no Brasil com base nos
conhecimentos sobre o papel dos mosquitos como transmissores.
Em
fevereiro de 1907, missão semelhante foi iniciada por ele, em parceria
com Arthur Neiva, em Xerém, na Baixada Fluminense, onde a doença
prejudicava os trabalhos de captação de água para a capital federal,
realizados pela Inspetoria Geral de Obras Públicas.
Em
junho daquele ano, igualmente por solicitação de Cruz, Chagas partiu
para o norte de Minas Gerais, em nova empreitada contra a malária,
juntamente com Belisário Penna que, como ele, era médico da Diretoria
Geral de Saúde Pública. Na região do rio das Velhas, entre Corinto e
Pirapora, uma epidemia da doença paralisava as obras de prolongamento da
Estrada de Ferro Central do Brasil, cujo objetivo era integrar o Sul ao
Norte do país mediante a ligação do Rio a Belém do Pará. No
povoado de São Gonçalo das Tabocas (onde se construía uma estação da
ferrovia e que, com a inauguração desta em 1908, ganharia o nome de
Lassance, em homenagem a um engenheiro da Central do Brasil), Chagas
instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como
dormitório. Foi no decorrer das atividades desta campanha que se realizou a descoberta da doença que leva seu nome, que o consagraria internacionalmente.
Desde
que pesquisadores ingleses e italianos desvendaram, em 1898/99, o modo
de transmissão da malária pelos mosquitos, estudiosos dedicaram-se, em
diversos países, a estabelecer medidas para a prevenção e o combate à
doença, voltadas para seus dois elementos essenciais: os vetores e o
indivíduo portador do parasito. Em trabalho de 1906, Chagas analisou de
maneira pormenorizada as diferentes estratégias contra a malária.
“Poder-se-á sintetizar num duplo intuito a profilaxia do impaludismo:
impedir que o homem doente contamine o culicídio transmissor, evitar que
o culicídio parasitado infecte o homem são. [...] A profilaxia será,
por isso mesmo, anticulicídica, quando aplicada ao mosquito, e
germicida, quando à destruição do hematozoário na fase endógena da
evolução dele”.
As
ações contra os vetores contemplavam métodos de natureza ofensiva e
defensiva. O primeiro era o combate direto aos anofelinos, por meio de
campanhas, de feição militar, visando a sua eliminação. As “brigadas
contra os mosquitos”, termo cunhado pelo inglês Ronald Ross, deveriam
atacá-los em seu estágio larval aquático, tanto por meio de aplicação de
substâncias tóxicas (como o petróleo) nas coleções de água, quanto pela
drenagem dos terrenos alagadiços que pudessem servir-lhes de habitat.
As medidas defensivas consistiam na proteção individual e coletiva
contra os mosquitos, por meio de cortinados nas camas e telas nas portas
e janelas das casas. As ações dirigidas ao parasito davam-se mediante a
administração de quinina (medicamento extraído da casca da árvore
quina) aos doentes, visando eliminar o hematozoário.
Nas
campanhas que comandou, Chagas procurou colocar tais diretrizes em
prática, implementado a quininização preventiva e a proteção dos
indivíduos contra os mosquitos. Expressando a articulação entre as novas
teorias da microbiologia e da medicina tropical e os interesses da
saúde pública, ele enfatizava que os estudos sobre as distintas fases do
ciclo evolutivo do hematozoário e sobre os hábitos dos vetores típicos
em cada região eram fundamentais para subsidiar as medidas de combate à
malária. Os conhecimentos clínicos e epidemiológicos também eram de
grande relevância, acentuava, sobretudo porque os doentes constituíam o
reservatório do parasito e, conseqüentemente, fontes de contaminação do
mosquito e de propagação da doença.
Desde
sua primeira experiência em Itatinga, Chagas formulou o princípio de
que o ataque direto aos anofelinos não deveria restringir-se às ações
antilarvárias, tanto pela dificuldade em realizá-las nos locais onde
obras de saneamento eram impraticáveis, quanto porque,
em sua concepção, os insetos deveriam ser combatidos principalmente em
sua forma adulta, alada, dentro das habitações. Observando os hábitos
dos anofelinos, ele considerou a malária uma infecção essencialmente
domiciliária, ou seja, é nos domicílios que ocorrem, na maior parte das
vezes, a contaminação do mosquito pelo doente parasitado e a infecção do
indivíduo são. Assim, a destruição dos mosquitos deveria ser feita
mediante a fumigação de inseticidas nestes ambientes, como o enxofre e o
piretro. Expurgos domiciliários com tais substâncias vinham sendo
feitos para o combate aos vetores da febre amarela na capital federal
desde 1903.
Tal
método, que décadas mais tarde seria utilizado em larga escala com o
advento dos inseticidas sintéticos de ação residual, como o DDT, foi
aplicado em Itatinga, com resultado muito favorável na apreciação de
Chagas, ainda que este assinalasse a necessidade de conjugá-lo a outras
medidas preventivas, em especial a aplicação de quinina. Segundo Carlos
Chagas Filho, esta contribuição pioneira de seu pai para os estudos e a
profilaxia da malária só seria reconhecida plenamente no I Congresso
Internacional de Malariologia, realizado em Roma, em 1925.
Carlos Chagas e a descoberta de uma nova tripanossomíase humana
Simone Petraglia Kropf
Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Expansão, 20040-361, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Email: simonek@coc.fiocruz.br
Em
junho de 1907, Carlos Chagas foi designado por Oswaldo Cruz, que
chefiava o Instituto de Manguinhos e a Diretoria Geral de Saúde Pública,
para combater uma epidemia de malária que paralisava as obras de
prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil em Minas Gerais, na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora. No
povoado de São Gonçalo das Tabocas (onde se construía uma estação da
ferrovia e que, com a inauguração desta em 1908, ganharia o nome de
Lassance, em homenagem a um engenheiro da Central do Brasil), ele
instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava
como dormitório. Enquanto coordenava a campanha de profilaxia, coletava
espécies da fauna brasileira, motivado por seu crescente interesse pela
entomologia e pela protozoologia. Num contexto de difusão internacional
das teorias da medicina tropical, estas eram áreas que assumiam grande importância no projeto de Oswaldo Cruz de transformar o Instituto de Manguinhos
num renomado centro de medicina experimental. Em 1908, ao examinar o
sangue de um sagüi, Chagas identificou um protozoário do gênero Trypanosoma, que batizou de Trypanosoma minasense. A nova espécie era um parasito habitual, não patogênico, do macaco.
Estação
da Estrada de Ferro Central do Brasil em Lassance, Minas Gerais.
Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Carlos
Chagas e Belisário Penna no prédio da Estrada de Ferro Central do
Brasil. Lassance, [1908]. Penna é o primeiro da direita para a esquerda,
seguido de Chagas. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de
Oswaldo Cruz.
Naquele período, o estudo dos tripanossomas
atraía a atenção dos pesquisadores no campo da medicina tropical,
especialmente depois que se comprovou que, além de doenças animais, tais
protozoários causavam enfermidades humanas, como a tripanossomíase
africana. Tradicionalmente conhecida como doença do sono, esta
enfermidade causava grande preocupação entre os países europeus que
tinham colônias naquele continente.
Além
da busca de novos parasitos, Chagas estava atento a artrópodes que
pudessem servir-lhes de vetores. Numa viagem a Pirapora, ele e Belisário
Penna (seu companheiro na missão de combate à malária) pernoitaram,
junto com os engenheiros da ferrovia, num rancho às margens do riacho
Buriti Pequeno. O chefe da comissão de engenheiros, Cornélio Homem
Cantarino Mota, mostrou-lhes então um percevejo hematófago muito comum
na região, conhecido vulgarmente como barbeiro, pelo hábito de picar o
rosto de suas vítimas enquanto dormiam. Era abundante nas choupanas de
pau-a-pique da região, escondendo-se nas frestas e buracos das paredes
de barro durante o dia e atacando seus moradores à noite.
Carlos
Chagas e Belisário Penna com a equipe que trabalhava no prolongamento
da Estrada de Ferro Central do Brasil, na região do rio das Velhas,
Minas Gerais. [1908]. Sentados,
da direita para a esquerda: Carlos Chagas, Belisário Penna, Cornélio
Homem Cantarino Mota - chefe da comissão de engenheiros - e o médico
Bahia da Rocha. Em
pé, os engenheiros Amaral Teborge, José de Oliveira Fonseca e Joaquim
Silvério de Castro Barbosa. Departamento de Arquivo e Documentação da
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Cafua em Lassance. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Sabendo da importância dos insetos sugadores de sangue como transmissores de doenças parasitárias, Chagas examinou alguns barbeiros
e encontrou em seu intestino formas flageladas de um protozoário, com
certas características que o fizeram pensar que poderia tratar-se de um
parasito natural do inseto ou então de uma fase evolutiva de um
tripanossoma de vertebrado. No caso desta segunda hipótese, poderia ser o
próprio T. minasense, sendo o barbeiro o vetor que o transmitiria aos sagüis.
O barbeiro. Estampa de Castro Silva, publicada em: Chagas, Carlos. “Nova tripanossomíase humana. Estudos sobre a morfologia e o ciclo evolutivo do Schizotrypanum cruzi n. gen., n. sp., agente etiológico de nova entidade mórbida do homem”, Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, 1(2): 159-218, agosto de 1909.
Por
não dispor em Lassance de condições laboratoriais para elucidar a
questão, uma vez que os macacos da região estavam infectados pelo minasense,
Chagas enviou a Manguinhos alguns daqueles insetos. Oswaldo Cruz os fez
se alimentarem em sagüis criados em laboratórios (e portanto livres de
qualquer infecção) e, cerca de um mês depois, comunicou a Chagas que
encontrara formas de tripanossoma no sangue de um dos animais, que havia
adoecido. Voltando ao Instituto, Chagas constatou que o protozoário não
era o T. minasense, mas uma nova espécie de tripanossoma, que batizou então de Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre. A
nota anunciando esta descoberta foi redigida em Manguinhos em 17 de
dezembro de 1908 e publicada na revista do Instituto de Doenças
Tropicais de Hamburgo (Archiff für Schiffs-und Tropen-Hygiene), no início de 1909.
Vista de Lassance tomada do alto de um vagão da Estrada de Ferro Central do Brasil. Lassance, 1909. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Em
Manguinhos, Chagas iniciou estudos sistemáticos sobre o ciclo evolutivo
do novo parasito que, em cumprimento a dois dos postulados de Koch,
mostrou-se capaz de infectar experimentalmente cães, cobaias e coelhos e
de ser cultivado em agar-sangue. O
barbeiro, por sua vez, passou a ser minuciosamente investigado por
Arthur Neiva, também pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz. Em busca de
outros hospedeiros vertebrados do T. cruzi
e suspeitando que o homem pudesse ser um deles – hipótese reforçada por
seus conhecimentos sobre a malária, também transmitida por um inseto
hematófago domiciliário e causada por um hematozoário –, Chagas retornou
a Lassance. Sobre o raciocínio que empreendeu naquele momento, relatou,
em trabalho publicado na revista Brasil Médico em 1910:
“Leváramos, como idéia diretriz, a noção de constituírem os domicílios humanos o habitat predileto,
senão exclusivo, do hematófago, assim como o fato, amplamente
verificado, de ser o sangue humano a alimentação por excelência dele.
Seria razoável pensar, daí, numa condição infectuosa intra-domiciliária e
que o vertebrado hospedeiro do parasito fosse algum animal doméstico ou
o próprio homem”.
Esta
hipótese também explicaria certos fenômenos mórbidos que havia
observado na região e que não se encaixavam no quadro nosológico
conhecido.
Em
Lassance, Chagas empreendeu exames sistemáticos de sangue nos
moradores. Ao examinar animais domésticos, verificou a presença do T. cruzi
no sangue de um gato. No dia 14 de abril de 1909, encontrou finalmente o
parasito no sangue de uma criança febril. Em nota prévia publicada no Brasil Médico, uma das principais revistas médicas do país, anunciou a descoberta:
“Num
doente febricitante, profundamente anemiado e com edemas, com plêiades
ganglionares engurgitadas, encontramos tripanossomas, cuja morfologia é
idêntica à do Trypanosoma cruzi.
Na ausência de qualquer outra etiologia para os sintomas mórbidos
observados e ainda de acordo com a experimentação anterior em animais,
julgamos tratar-se de uma tripanossomíase humana, moléstia ocasionada
pelo Trypanosoma cruzi, cujo transmissor é o Conorrhinus sanguissuga”.
Estágios do Trypanosoma cruzi. Estampa de Castro Silva, publicada em: Chagas, Carlos. “Nova tripanossomíase humana. Estudos sobre a morfologia e o ciclo evolutivo do Schizotrypanum cruzi n. gen., n. sp., agente etiológico de nova entidade mórbida do homem”, Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, 1(2): 159-218, agosto de 1909.
Berenice,
uma menina de dois anos, era o primeiro caso daquela que seria
considerada a partir de então uma nova doença humana. O fato foi
divulgado também mediante publicações nos Archiff für Schiffs-und Tropen-Hygiene e no Bulletin de la Société de Pathologie Éxotique.
Aos 22 de abril, ao mesmo tempo em que o Brasil Médico
trazia em suas páginas a descoberta feita no norte de Minas, o feito
foi comunicado, em sessão da Academia Nacional de Medicina, por Oswaldo
Cruz, que leu um trabalho escrito por Chagas. A imprensa deu destaque ao
episódio, reverenciado como uma das “glórias de Manguinhos”.
A
descoberta e os primeiros estudos da nova entidade mórbida tiveram um
impacto decisivo na carreira científica de Chagas, que alcançou grande
proeminência no mundo científico, com efeitos diretos em sua inserção na
vida institucional de Manguinhos. Em março de 1910, Oswaldo Cruz
realizou concurso para preencher a vaga de “chefe de serviço” aberta com
a saída de Henrique da Rocha Lima. Este foi um evento de grande
importância para a instituição, pois o ocupante do cargo era visto como o
mais provável candidato à sucessão de Oswaldo Cruz. Chagas obteve a
primeira colocação e os trabalhos que havia publicado sobre a nova
doença tiveram grande peso para tanto.
Carlos Chagas atendendo a menina Rita. Lassance, início da década de 1910. Por
muito tempo pensou-se que tal menina era Berenice, o primeiro caso
identificado da nova doença. Ao fundo, vê-se o vagão da Estrada de Ferro
Central do Brasil, que lhe servia de alojamento e laboratório em
Lassance. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Em
26 de outubro de 1910, Chagas foi admitido solenemente como membro
titular da Academia Nacional de Medicina, onde proferiu uma conferência
apresentando seus estudos clínicos e farto material sobre a doença,
inclusive imagens cinematográficas feitas em Lassance. No
ano seguinte, um evento marcou a divulgação da descoberta e da nova
doença no cenário científico internacional. No pavilhão brasileiro da
Exposição Internacional de Higiene e Demografia, realizada em Dresden,
Alemanha, a doença de Chagas foi apresentada com destaque, despertando
grande interesse do público. Tal projeção expressava a importância que o
tema assumia como carro-chefe e vitrine das pesquisas do Instituto
Oswaldo Cruz. Outro marco importante da repercussão internacional da
descoberta foi a conquista, por Chagas, em 1912, do Prêmio Schaudinn,
concedido de quatro em quatro anos pelo Instituto de Doenças Tropicais
de Hamburgo ao melhor trabalho em protozoologia.
Sala
do pavilhão brasileiro na Exposição Internacional de Higiene e
Demografia, realizada em junho de 1911 em Dresden, Alemanha. Dresden,
junho de 1911. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz.
Diploma
do Prêmio Schaudinn, conferido a Carlos Chagas pelo Instituto de
Moléstias Tropicais de Hamburgo, Alemanha. Hamburgo, 22 jun. 1912.
Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Graças
à repercussão da descoberta e dos estudos de Chagas, Oswaldo Cruz
obteve junto ao governo federal verbas especiais para equipar um pequeno
hospital em Lassance, visando sediar os estudos clínicos sobre a nova
doença, e para dar início, em Manguinhos, à construção de um hospital
destinado às pesquisas e acompanhamento dos casos clínicos identificados
no norte de Minas Gerais e em outras regiões do país. Sob a liderança
de Chagas e com a colaboração de vários pesquisadores do Instituto
Oswaldo Cruz (como Gaspar Vianna, Arthur Neiva, Astrogildo Machado,
Eurico Villela, Carlos Bastos de Magarinos Torres, entre outros), a nova
tripanossomíase passou a ser estudada em seus vários aspectos, como as
características biológicas do vetor, do parasito e de seu ciclo
evolutivo, o quadro clínico e a patogenia, as características
epidemiológicas, os mecanismos de transmissão e as técnicas de
diagnóstico.
Hospital em Lassance. Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Carlos
Chagas e pacientes no Hospital Oswaldo Cruz, em Manguinhos.
Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Assumindo
centralidade na agenda de pesquisas do Instituto Oswaldo Cruz e no
próprio processo de institucionalização da atividade científica no país,
a descoberta da doença de Chagas passou a ser tratada pelos
contemporâneos e pela memorialística médica, até o presente, como um
mito glorificador da ciência brasileira. Uma das considerações que se
tornariam mais recorrentes quanto à importância da descoberta como
“feito único” da ciência nacional foi o caráter incomum da seqüência sob
a qual ela ocorreu, já que se partiu da identificação do vetor e do
agente causal para em seguida determinar a doença a eles associada.
Outro aspecto singular foi o fato de o mesmo pesquisador haver
descoberto, num curto intervalo de tempo, um novo vetor, um novo
parasito e uma nova entidade mórbida.
A
historiografia sobre a descoberta da doença de Chagas ressalta sua
inscrição no contexto de afirmação e institucionalização da medicina
tropical européia, tanto em função dos referenciais teóricos que a
viabilizaram, quanto pela contribuição que a própria descoberta trouxe
para a consolidação da nova especialidade médica criada na Inglaterra
por Patrick Manson nos últimos anos do século XIX. Sá (2005) aponta, por
exemplo, a importância do estudo do T. cruzi para a elucidação de questões relativas à relação parasito-vetor no caso das infecções causadas por tripanossomas.
Outro
aspecto salientado pelos historiadores é a importância da descoberta
como fonte de legitimação, visibilidade e recursos – materiais e
simbólicos – para o Instituto Oswaldo Cruz. Stepan (1976), Benchimol e
Teixeira (1993) enfatizam que ela propiciou a consolidação da
protozoologia como área de concentração das pesquisas na instituição e
impulsionou o seu reconhecimento na comunidade científica internacional
como renomado centro de investigação sobre doenças tropicais. Kropf
(2006) chama a atenção para que se, por um lado, a descoberta contribuiu
para dar sentido e reforçar o projeto institucional de Manguinhos, ela
própria ganhou sentidos particulares como “grande feito da ciência
nacional” em função dos significados associados a este projeto, que se
apresentava publicamente como destinado a associar excelência acadêmica e
compromisso social em identificar e solucionar os problemas sanitários
do país.
Fonte: http://www.fiocruz.br/chagas/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=1
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